16 de set. de 2009

A ESPADA


Caio Martins

Aproveitando propício momento, fora atrás do sonho ainda muito menina, uma criança. A “Primavera de Praga” sucumbira sob os tanques soviéticos, havia desencontros e confusões, agitação e tristeza por toda a Tchecoslováquia. Passou sua figura miúda e leve por manifestantes, soldados, chuva de pedras e nuvens de gás lacrimogêneo. Encontrou a ladeira de pedras antigas e a porta de ferro batido, as escadarias de carvalho e, numa sala soturna, iluminada por candeeiro a óleo, o velho sumido em trapos. A mão da mãe a soltou.

- Vim buscar a espada! - disse, num idioma inóspito e que lhe era estranho.

O velho indicou-lhe onde. Pesada, corroída pelo tempo, a madeira do cabo desaparecera há décadas, talvez, mais de século. Beijou a mão ressequida e frágil, pegaram a conquista e saíram apressadas. A relíquia passou alfândegas com funcionários relapsos e cansados de alguns países até, finalmente, chegar em casa. Levou-a, anos depois, a ferreiro perdido no fim do mundo, nas serras de Minas, e pediu-lhe a reconstrução. Esse também, sem palavras vãs, pegou, sopesou e pediu-lhe um mês. Estremecera de emoção. O pai, companheiro da empreitada, também.

Nos trinta dias, pegou-a. Perfeita, polida, o cabo de raiz de jacarandá amoldando-se em suas mãos pequenas como se juntos tivessem nascido. Pagou em ouro, moeda trazida de outras eras e herdadas em gerações. Lauma respirou fundo, intangível, verificando a arma ancestral milímetro a milímetro em busca de imperfeições inexistentes, e pegou o caminho de volta. Completara o ciclo. Teria, agora, vinte e um anos passados, de tê-la em ritual milenar, repor sua marca e intensidade para, finalmente, dotar-se do último elemento para a definitiva consagração espiritual.

Mas, havia um homem, frágil e perdido de si e do mundo, que lhe entrara pela pele e tornara-se, ao mesmo tempo, numa promessa de amor e perspectiva de um desastre. Daniel... reduzido, de líder emblemático e moderno guerreiro, a espantalho lamentoso por ter-lhe cruzado o caminho, na hora errada, um anjo perdido; fêmea primitiva e oblíqua, para quem o mundo começava e terminava nas genitálias e, pela graça e beleza, seduzia instintivamente os alfas de sua espécie. Letícia...

Conseguisse centrar-se, seria sua própria salvação, a libertaria para seguir sua saga e seus caminhos. Não podia permitir-se odiá-la, porém, odiava. Na sua linhagem e tradição, eram-lhe vedados humanos sentimentos banais; paixão e ódio, rancor e mágoas, desejo e medo... Filha do equilíbrio e da sabedoria, Lauma chorara apenas uma vez, quando aquele homem fraco a inundara de tanto carinho que perdera, além do controle, a férrea vontade e certeza de sexo ser como singela busca de alimento, madrugada em curso, num assalto à geladeira. Letícia era promíscua, indecorosa, irresponsável, indecente, impudica, compulsiva... E Daniel, um fraco. Ela? Uma vestal...

Teria de purificar-se e elevar-se, pôr-se acima e distante de inconsistências e vulnerabilidades cuja única função era pô-la à prova. A espada, de ferro batido e transformado em aço na têmpera em um ser vivo, quiçá um guerreiro, há séculos, era sua garantia de poderes tais que, num momento relapso, ao putear contra um homem, matara por tabela o cãozinho da família, oculto sob o carro. A espada lhe daria o controle e a sintonia de seu lado destrutivo. Seria sua garantia, na verdade contra si mesma, e sorte de muita gente.

Limpou-a cuidadosamente, em minúcias. Empunhou e cedeu ao peso. Não era para batalhas, em tempos ditos civilizados. Depositou-a carinhosamente num altar na parede norte de seu quarto, entre cristais - alguns preciosos - envolta em villuto carmim sob um atilho de seda azul, o mesmo que, trançado, lhe segurara os cabelos quando conhecera Daniel. Satisfeita, determinada e feliz, foi à cata dos elementos que utilizaria em sua liturgia, na noite em que a lua seria apenas uma curva imperceptível na escuridão do céu. Ervas, pedras, metais, terra, fogo, água e banhada em ar, outros segredos e mistérios.

Sentou-se na cozinha, espichando as pernas e braços, espreguiçando-se prazerosamente. O gato subiu-lhe em cima e, ronronando alto, aninhou-se-lhe no colo. Sentia-se bem, apenas a memória do corpo incomodando sutilmente com reprises do sexo desbragado com um homem instável que, curto tempo atrás, a fizera sentir-se estupidamente mulher pela primeira vez na vida.

- Sabe que mais, gatinho? A sua dona está ficando louca...

(img: cvm - têmpera - trecho de “zero-hora: um anjo perdido” - 1996)

5 comentários:

  1. O misterioso mundo do inconsciente; bruxas, espadas mágicas, caminhos desconhecidos. Passeio perigoso: pode voltar-se curado ou totalmente enlouquecido.

    Abraços.

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  2. Guilherme Jr.18/9/09 05:36

    Já comentada no Prosa e Verso de Boteco, mas a cada leitura aparece um significado novo. O autor usa quase sempre o discurso indireto e simbólico, há que ler as mensagens subjacentes. "Zero-hora: um anjo perdido", com alguns trechos mostrados aqui, deve ser romance pleno de misticismo e magia. Deveria ser publicado.

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  3. Estou admirada com o que li. Literatura de primeira. Passo a acompanhar teu blog e vou te linkar!
    esmaques pra ti!

    Marisete Zanon

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  4. Anjo..

    "estupidamente mulher.."..
    estupidamente boquiaberta em ler aqui e a cada lida, abre-se horizontes no mesmo texto, detalhes que ficaram secretados na primeira leitura, me fiz ler em duas, me fiz ler em três, e fui galgando palavras que me seduziram

    Perdoe-me as demoradas ausências, mas o carinho é o que bate sempre, mesmo quando não podemos dizer..
    pois aqui venho e digo, que sua amizade e compartilhar suas palavras pra mim é uma honra..
    e um dia te sequestro pra beber um capuccino comigo. rs

    beijos e ótimo sábado
    Chris

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  5. Jorge:pois é, meu querido amigo... De fato, só escapa o gato...
    Guilherme, "Zero-Hora" travou no fechamento. As personagens recusam todos os finais propostos... Busca-se editora.
    Marisete: feliz em ver "a estranha" aqui. Muito bem vinda para arejar um pouco os modismos de dinossauro.
    Chris: bichinho, não perdoo as ausências, curtas ou demoradas, e é uma alegria tê-la por aqui. Pode planejar o sequestro e preparar o "capuccino", convidamos o Sader e vamos rachar de rir falando bobagens.
    A todos, muito carinho.

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Na busca da excelência aprende-se mais com os inimigos que com os amigos. Estes festejam todas nossas besteiras e involuímos. Aqueles, criticam até nossos melhores acertos e nos superamos.

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