19 de dez. de 2012

Benvindo, 2013

Até março, meus amigos! Grato por suas presenças neste ano que finda; que "os laços não sejam lassos" e, "o amor, sempre festeiro"...
A todos desejo paz, saúde, harmonia e caminhos abertos.
Abração!

18 de dez. de 2012

Avatares

Caio Martins



















(img.: cvm-lucienne2001)


Ter-te transcorrido
como se fora um mago
devastando limites
de teus segredos
medos
universos
até gritares de impúdícia
os olhos feito lagos...

Só para, depois
- nos bares -
ver-te
de alto a baixo me olhares
desde convulsas galáxias,
chamares audaz
meu nome
como se foras dona
destas esquinas...

Avatares...
Loucas fantasias
de menina...

12 de dez. de 2012

Relíquia de guerra

 Caio Martins

Pegou a arma, relíquia de guerra,  e botou em cima da mesa. Reiúna, como diria seu já falecido e estimado compadre Trindade, que lhe dera couto e abrigo no passado, pondo a enorme estatura épica de ébano e parca artilharia contra as patrulhas do governo. Pois, fora um insurreto, um insurgente, um rebelado...  Dizia-se, a sorrir, velho, muito velho...

A moçoila, monitor à frente, ouvia e gravava - quase catatônica - as histórias de embates, combates, guerras, num rol de violência nos quais astúcias e manhas traçavam, em segundos, táticas e estratégias mais que exemplares: deslumbrantes! Afinal, sempre sobrevivera. Salvara-se de homéricas pancadarias, tiroteios, prisões, cercos, enfim... era um guerreiro. Não se salvara, incidentalmente, das mulheres de sua vida. Sempre estavam presentes, às vezes com muito espalhafato. Que paixões avassaladoras... que freges de tremendo sacana...
   
Dissera ser, ela, a primeira e única a ouvir seus causos, nos quais afirmava a fidelidade  a si mesmo e seus códigos de honra. A cara, um labirinto de rugas. Os olhos baços, com aquele cansaço antigo de quem já percorreu e viveu - ida e volta - a história do mundo. As mãos nem tão firmes, mas ainda capazes de carinhos e desatinos inimagináveis. Elegante. Era, para uma jovem fêmea ativa da espécie, um interessante macho solitário, renuente ao rebanho.

Fumava, o desgraçado... um após o outro. Tomava cachaça braba e, no arrepio das modas circundantes de amplas e abundantes ofertas gratuitas, pagava putas. Dizia, cínico, que não pelo serviço, mas, para que se fossem. Politicamente incorreto; porém, algum sentido oculto e definitivo, premente e sub-reptício, a atraía poderosamente. Mais que o necessário.

Pergunta-lhe, então, de mulher em sua vida. Remontando a placa lateral do revólver, ele pára e sorri, fixando mirada astuta  na câmera do notebook. E após compungido silêncio, barulhento como briga de facas, lhe devolve a pergunta: "- Por que?" Mais que em linha virtual sente-se em campo físico, material. Fora pega... Não por um moleque, descartável com simples e sonoro “- Vaza, mané!”. Mas, por um predador oportunista e experimentado, conhecedor de jogos que não mais são jogados pelas manhas, sensibilidade e inteligência exigidas. Ah! - saberia das coisas.

Prudente seria apertar o botão “off” e sair da entrevista, mas o sentido clandestino não permite. O temor? Por que, aceita a pauta, pusera-se a cuidar de arma enquanto não respondia, mas, virando suas perguntas pelo avesso, dizia somente o que queria? Seria um fato extraordinário - embora pavoroso - se o sujeito se suicidasse ante a câmera. Indícios. Não vacila: suplica-lhe o endereço, veemente, a voz uma oitava acima, já vestindo caríssima blusa de fio de garrafas “pet” recicladas, subindo acrobática nos saltos de policarbonato e exigindo-lhe, com autoridade que jamais pensara ter, que a esperasse. Não descarta o imperioso batom vermelho.

Encontra a porta aberta. No meio da sala de ares solenes de antiquário, a mesa posta à luz de velas, com rosas vermelhas gloriosas exibindo-se impudicas, sombreando um "cabernet" raríssimo à espera e, da cozinha, um cheiro irresistível de delícias inimagináveis vindas da "rotisserie" da esquina... fora, mais que traída, atraída. Mas, afinal, dava-lhe introito de Musa, tratando-a como se à última esperança de Balzac, em harmonia com a ascensão emblemática de Beatriz ao paraíso de Dante. E afinal, ao receber galante beijo na mão, vê ter porte altivo e superior, de quem se basta e providencia, de um cavalheiro intemporal. De quem realmente sabe das coisas... Rituais.

Diria, tempos depois e famosa, que um dia e por acaso, vésperas de Ano Novo, conhecera um homem que a levara a ser muito mais que prosaica mulher. Guardaria a relíquia de guerra como troféu da paixão feérica e deixar-lhe-ía  parcas  lágrimas e rosa vermelha única, no último ritual.

(scs - 12/12/12 - img: sean connery-highlander)


4 de dez. de 2012

A mulher dos homens

Caio Martins

Ao Luiz Zampronha.

Chegou como se fora: quieta, calada e hirta. Ao abrir-lhe a porta do tugúrio num décimo andar perdido no alfineteiro de prédios, somente ouvira: “- Posso?” - e lhe abrira a porta sem perguntas. Nem amigos, nem parceiros, nem amantes. Agora entrava - passado quase um ano - como houvesse sido ontem e o tempo não houvesse transcorrido.

Esparramado na judiada poltrona de couro vinda de brechó, a vê entrar no quarto, deixar a mochila num canto, despir-se e enfiar-se na ducha. Na pia da cozinha, metade de pizza já fria e uma lata de cerveja barata vazia, a térmica com café e um bule esmaltado, de antiquário.
 
Observa-a lavar-se prolixamente, feito gata. Prevê o resto: sairia do chuveiro e após secar-se viria à outra poltrona modernosa, restos de um casamento desfeito, de amigos. Viria enrolada numa toalha, outra enrodilhada na cabeça. Sentaria e esperaria perguntas que jamais seriam feitas. Depois, nada encontrando na geladeira, comeria a pizza e beberia o café devagarinho, olhos fixos no vetusto tapete esfiapado. Assim foi.
 
Mudos, não se olham, como estivessem ali desde sempre. Era da noite, das madrugas, dos palcos e arsenais eletrônicos, do assédio de ansiosas “princesas” solitárias e gratuitas ao som ríspido e frenético e áspero de tendências pesadas estrangeiras, imitador de imitadores talvez, mas, tinha seu brilho. No apartamento fora de moda não havia mais drogas há tempos. As conhecia a todas, correra infindos riscos e delas se livrara. Não, quanto à mulher.

Promíscua, vivia unicamente na busca do sexo por dinheiro, não mais sabia com quem ou quantos estivera, sem referências ou memórias. Outras eram suas noites e madrugadas, em serventias transformadas em lenda. Sempre voltava, indiferente e alheia se encontraria outra em seu lugar. Nisso, viraria “prima em viagem” no início, depois expulsaria a bola da vez e, por curto tempo, se apossaria do pedaço. Essa, a questão: sempre voltava...
 
Finalmente se encaram. Não mostram alegria ou tristeza, rancor ou amor, afeto ou ternura. Talvez, uma réstia de solidariedade pelo sentimento de, não se pertencendo, serem tão iguais. Nada com ela aprendera, nada lhe ensinara. Nada pedira, nada dera.   
- Estou cansada... posso ficar uns dias?
- Sabe que pode... algum problema?
- Não... só preciso um pouco de paz. Um abraço... às vezes estar só assusta...
Liga para um amigo e pede que o substitua uns dias numa banda qualquer, diz-lhe que fique com o cachê, que está com tendinite e os ouvidos zunindo demais, precisa... de um pouco de paz. Agradece e desliga.
- Vem cá!

Ela vem, se lhe aninha no colo, miúda e quietinha. Ajeita-se, familiar, suspira profundamente e logo adormece. Tira-lhe cuidadosamente a toalha dos cabelos e aciona o DVD, vasculha e vê-se improvisando um blues ao qual nenhum B.B. King poria defeito. O intitulara “A mulher dos homens”, o compusera de estalo da última vez que ela se fora. Observa-se “quebrando tudo” na “Fender Stratocaster 62” com prazer, esquecido e aquecido pela prostituta em seus braços. Beija-a suavemente na testa, percebe que sorri. Na sequência cai num sono leve, dele saindo por um carinho na face. Olham-se sem intensidade, talvez curiosos. Ela inverte a posição, acalenta-lhe o rosto ao peito, solene e séria:
- Eu te amo!
- Eu sei...

(img: viejo autorretrado con monica - fabian pérez - scs/12/12) 


Luiz Zampronha: Improviso




12 de set. de 2012

Arlequim

Caio Martins

Para Márcia, MIlton e Jorge
















(img: cvm - farofa03-2001)

Não darei definições;
já nada explico ou justifico
do que faço.

Apenas trago as mãos
plenas de silêncios, cansaço
cicatrizes, calor de luta,
a ternura de um abraço.

Enfim, amigos,
sempre fui e seguirei
sendo assim mesmo...

Meio anti-herói
meio palhaço!



Carinhoso - de Pixinguinha, com Marisa Monte e Paulinho da viola.




10 de set. de 2012

Anjos safados

Caio Martins
















(img: lori - fabian perez)


Não fossem teus senões, teu pejo
teu poeta roubaria um beijo...
Marcaria por teu corpo
expressões digitais, arranhões
uma que outra mordida...

O amor, amor
sufoca, às escondidas...

E vens, como perdida
vestal sem ancestrais
sussurrar o que de cor eu sei:
“- Aceita-me de volta... Pensei
que estivesses com raiva de mim...”

Exalas tanta tristeza
tanta dor e solidão, enfim...

O amor tangencia as órbitas
caóticas de teus anelos
e pisa firme nos freios.

Para! Respira fundo, esfria
chuta a porta, quita
metafísicas, te chama de vadia
metamórfica, sirigaita
e assassina a Poesia.

Enfim, findo o barulho
revéns, tomaste um banho
me tomas da mão, roubas um beijo
e vou...

Anjos safados,
tua sedução e meu desejo.

Nosso amar, amor, perdeu 
o rumo
o pudor e o prumo...

(scs - 10/09/12)

23 de ago. de 2012

ALUAR

Caio Martins

Para Jeanne.
















(img: cvm - nicportman-huble)


A lua, meu amor
torta
corta os céus, mero traço.

Apenumbras...

Em que pese, te percorro a passo
beijo a beijo, impune
me sorves, absolves
e tua volúpia paira instantes
em meus braços.

Luminescências tardias,
imperceptível halo cravam
meus olhos, tua alma,
finas lâminas incertas.

Não era a paixão que querias
nem o amor que eu desejava...

Mas, incontida, ris!
Estilhaças a madrugada
com os cristais de teu riso...
já nada mais preciso
já nada mais importa...  

Em breve, amor, a lua
refringente e oclusa e fria
estará morta.

(scs - 23/08/12)

26 de jul. de 2012

METAMÓRPHOSIS

Caio Martins










(img: paola en el sofá - fabian pérez)
 


Não, não canso de olhar-te nua
imortal, etereal, imprecisa
perfeição de cinzas inconcisas  
na semiluz a espiar da rua.

Imóvel, pulsa em minha palma
teu seio e em minha pele
teu calor e cheiro e calma
de mulher que se resvala...

Como ficas linda e sem nome
quando após a posse, em ulo,
desabas, já nada te consome...  

Deixo-te dormir infinda e quieta
enroscada em mim feito em casulo
antes que te faças borboleta...

(scs - 26/07/12)

9 de jul. de 2012

AQUARELA

Caio Martins.
















(img: cvm - laura -1999)
 


Desenho-te em tintas fortes
e percorro traço a traço
teu corpo inexplicável
de fêmea, flor, formas
frágeis transparências.

E vens, tão nua espalhas
pincéis, palhetas, potes
telas, trapos, imagens
me desenhas insensata
numa imensa confusão
de pernas e bocas e abraços...

É quando, quase sem querer
gravas teu lamento em minha pele
recebes meu murmúrio entre teus seios,
nada mais que um homem
nada além de uma mulher.

(em "mulher - imagens e poemas" - 1999 - fundação pró-memória.)

17 de mai. de 2012

ANJO NEGRO

Caio Martins
 












(img: niko tavernise - portman - cisne negro)

Anjo negro, avassalo
escalo, formo e conformo
teus sentires, teu prazer.

Cubro-te com noite vã
baça e lassa e terçã
lasciva e ímpia e farta.

Mas, partirás de mim, mero
exilado ébrio das trevas
clandestino de teus nichos.

Virá o inferno, luz do dia
que o meu fascínio corrói
e irás lívida e leve e livre...

Eu? Restarei desfeito
borrão imprevisível
entre a alvura dos lençóis...

(scs - 12/05/12)



20 de mar. de 2012

MUSAS VIVAS, MUSAS MORTAS...

Caio Martins

Para Jeanne.


Tomou uma, do frasco portátil de inox... carecia levantar a coragem. Foi à cozinha e pegou do lixo uma lata vazia de leite condensado, lavou prolixamente. Ao carro, um alicate e dobrou uma pestana irrepreensível. Tinha um cinzeiro! Voltou à redação e ao computador decidido. Acendeu o primeiro cigarro. Heresia, ali até a palavra fumar era vetada. Aos que reclamaram, não vacilou na resposta: “- Praputaquepariu!!!” - e o susto os calou. Não era assim, era sempre gentil. Algum mistério havia... Então, rasgou a pauta e selecionou mentalmente as canções e as cantoras que magicamente lhes davam vida, as suas Musas. Não escreveria sobre as ciborgues no cio e o lixo eletrônico da atualidade para a página de cultura do jornaleco nanico.

Achou, num site de postagens de vídeos, Clara Nunes com “Canto das três raças”, de Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte. E já o nó apertou feio no gogó... A ouvira pela primeira vez estando fugido em país inóspito, depois de uma guerra. O “brazil”, ainda era o Brasil, mesmo que envolto em chumbo naqueles idos de 1974. Clara clareara o exílio externo, o interno. A alegria de Clara, a beleza, a graça, a sensualidade, a voz... e a revivência daquela fase jamais transcrita, dos tempos em que se julgava imortal. Suspirou fundo, de cortar o coração. Clara era morta... Clara não estava mais...

Buscou frenético, para recuperar-se e despedir-se do verão, “As rosas não falam”, de Cartola, com Beth Carvalho, felizmente viva... E o efeito foi devastador... Por injunções temerárias sabe-se lá de que raio de divindades, passaram-lhe, uma a uma, as mulheres amadas, as paixões perdidas, os grandes amores idos... não voltariam ao jardim. Engoliu vezes em seco, o nó apertando devagar, sem pressa, poderoso... Mais uma, para recuperar a coragem.

Socorreu-se de outra sobrevivente, Maria de Fátima Palha de Figueiredo, a sua querida "Fafá de Belém", primeira a deslumbrá-lo quando regressara do exílio e após a prisão em Viracopos pelo DOPS e Polícia Federal, fins de 1979 e antes da anistia anestésica. A vira na TV, na casa de amigos, fuzarcando  o “Estrela Radiante”, de Walter Queiroz, e saíra cantando “ylaiê, aê ilê ilá” pela sala, tomado pela adorável gordinha. E cantava junto agora, empolgado, apontando dedo para o céu, a cadeira estalando, o povo perplexo.

Passou então para a também respirante Gal Costa - escolheu “Força Estranha”, de Caetano Veloso. E sentiu, novamente, aquele sopro de esperança, aquele tesão de viver surgido nas ruínas das separações com os encontros tantos num país do qual não entendia mais nada - ano da graça de 1981 - e que não o detonaram por pouco. Agora, sim! Poderia ouvir e escrever sobre outras, sem que lhe partissem - o delírio, a emoção e o sentimento - a compostura e a dignidade em público. Era cria de tempos em que homem tinha, obrigatoriamente, de ser durão.

Buscou “A noite de meu bem”, de Dolores Duran, há tanto tempo encantada... e lá se foi a valentia para o ralo. Novamente, as ausências e os buracos delas decorrentes pegaram pesado na veia... Dela, o jornalista Antônio Maria dissera: "Dolores Duran falou de sentimentos como ninguém, em todas as línguas. Seu idioma era o amor!" E arrastava, subrepticiamente, a sensibilidade a níveis críticos, comovendo como o diabo... Dolores fora, lá pelas bandas de 1960, inspiradora de seus primeiros trágicos versos de “amor”: “Quando tiveres nas mãos macias/ outras que não sejam minhas mãos/ fuja desse mundo de ilusão/ onde essas mãos são sempre frias"...

Compungido, a estatura feita trapos, o pranto na boca do bote, a ausência daquela que mais o seduzira bateu duro e forte, impiedosa e cruamente... Elis... Pegou “Cadeira Vazia”, de Lupicínio Rodrigues... Daí, congelou... O vídeo ruim todavia lhe mostrava a intensidade da emoção da sua Musa morta “entre um agudo/ que comove o verso torpe/ e uma porção de cocaína...” - e novamente ela lhe dominava o cérebro, nervos, músculos... era visceral, orgânico, o fascínio de Elis... O som, em que aceitável, doía nos ossos... Aquela cadeira estaria eternamente vazia...

Terminou de escrever, enviou ao editor, derrubou o sistema, tomou longa mais-uminha até secar o frasco e o jogou no lixo, acendeu o undécimo cigarro e, altivo mesmo que trocando pernas, saiu levando seu cinzeiro e tropeçando em seus fantasmas pela rua... Não mais foi visto.

(img: clara-nunes - arquivos. sc do sul - 20/03/2012)

5 de mar. de 2012

O VESTIDO

Caio Martins
Por dentro, em cada célula, ainda a dor. A perda asquerosa fora imprevista e atingira surpresando, sem aviso ou notificação. Se fora... assim de simples... Nem uma palavra, um gesto, indícios e não havia mais a voz aliciadora, as mãos irreverentes, o corpo conhecido, a muralha contra o mundo. Nem o riso, nem o pranto. Nem o afeto, o carinho, a paixão: só lembranças, como em luto. Odiava a comiseração grudenta dos amigos - que não pedira - e o arzinho pérfido dos inimigos - que execrava. Uma linda mulher - e assim se sabia - subitamente só, abandonada, desprotegida e vulnerável : sentira-se, autopiedosa, como se nua e suja no meio da praça.

Olha novamente o convite de festa, garboso cartão dourado com letras negras rebuscadas, brega na forma e medíocre no conteúdo. Tensa, quase o rasga. Vêm-lhe, então, aos sentidos as faces dos amigos, dos quais se desentendera para não ver-lhes as caras compungidas e nem ouvir consolações indesejadas. Escolhera o isolamento e o silêncio. Metera-se na toca para lamber as feridas, feito qualquer bicho do mato. De repente, algo agita-se-lhe por dentro. Como por magia vai ao espelho e encara os olhos claros... Vê-se pálida, mas, em nada diminuída nos traços. Despe-se num ritual apressado e preciso. Tudo está lá, como sempre...


Alguns telefonemas, veste roupa corriqueira e, agitada, enfrenta o trânsito feroz, mesmo num sábado de verão esplendoroso. Horas depois regressa, passado o frenesi. A mulher que a acompanha, levando farto pacote, conhece seus gostos, manhas e chiliques há anos, sabe o que fazer. Desarmam o pacote em silêncio, iniciando cerimonial de vestais, iniciadas. Exigira sobriedade na maquiagem destacando, porém, o batom grená bem delineado e as sombras quase violetas nas pálpebras, com leve toque prateado do contorno superior. Ligeiro “brush” colorindo as bochechas, e só isso. “A bela, na singelez, se revela”, lhe dissera um poeta.

A lingerie, sofisticada, é a mais cômoda. Então, cerimonialmente, o vestido. Sente arrepios quando  desliza como seda, bicos dos seios feito botões e rara sensação de prazer.  A mulher o acomoda exímia, e lhe diz que tire o sutiã, ou ficaria escrachado sob o decote amplo. Faz. Sorri. Ajustes nas dobras dão-lhe, aos seios, segurança e postura. Minúsculos apliques brancos aleatórios e na barra quebram o padrão monocromático, vinho. Brincos e colar de pérolas, cinge-se com delicada corrente achatada de prata. Observa, satisfeita, o talho à esquerda, desde o alto da coxa. Sapatos estilosos, de ponta e salto tétricos, também grenás. 
   
A mulher a fotografa com o celular, após avisar as pessoas-chave que estava pronta. Chamam, que abaixo está o táxi. A caminho, ensaia o rol, já estivera de palácios a barracos, cerimoniais não a assustam. Na porta do bufê, respira fundo, entrega o cartão cafona a um porteiro embasbacado e entra. Há momentos em que o universo para. A notícia, feito raio, gerou o fenômeno. Desce a passo, pelo meio. E começa a correria, as amigas feito galinhas atrás de lagartixa, alvoroçadas, o ar de aprovação e desejo dos amigos, enfim, um espetáculo. O DJ bota “As time goes by” - o clássico de Casablanca - conforme o combinado.

Desfila impecável. Passa pela mesa do que se fora sem explicações e sequer olha, o sorriso iluminando a perfeição da mulher que enleva e domina não só pelo visual ousado - ainda que sóbrio - mas, pelo poder misterioro e irresistível do eterno princípio feminino universal, quando vai à guerra. Aplausos... muitos.  Depois ri, fala pelos cotovelos, dança, faz fotos com a matilha, chama toda a festa para si. Após, quase bêbada, sensação de paz, volta para casa descalça, sob chuva, pelo braço de velho amigo apaixonado que jamais lhe faltara nos momentos mais dramáticos. Agora, não era o caso... seria a recompensa. Ao despir o vestido, está liberta e feliz.

(img:femme en rouge - a. colin / floripa - 02/03/02)      



19 de fev. de 2012

O BEIJO

Caio Martins

(o beijo - pablo picasso - 1931)
Tudo complicado. Enrolado demais, duas cabeças em alta rotação, o mundo espiando e rindo, no fundo um cenário de tempestades. Nenhuma mulher chamara mais a atenção, ela passara a ser-lhe o centro cósmico, o vetor, tudo reduzido aos olhos escuros, os cabelos rebeldes, a boca de menina chorona, os traços severos do rosto, o jeito de maria-moita. Ele alfa, safado diplomado em escolas privadas e públicas, de quartos de virgenzinhas ansiosas a pródigos bordéis...  
           
Amor? Antes fosse... Paixão! Entregara-se feito um pacote sem remetente, aberto, pronto para uso. Contra a vontade própria, mas inerme ao tal de Destino (Sujeitinho canalha!)... Ela dissera-lhe isso: - Destino! E quebrara-lhe a couraça, a coragem suicida, o ímpeto de guerreiro. Apatetou-se da maneira mais vergonhosa. Aliás, ambos... Ah!, noites insones, espera angustiada de um telefonema, um e-mail, tremenda e apavorante luta contra sentimentos, batalhas catastróficas contra os instintos, gritos estonteantes de guerra contra a sensação de perda antecipada, ante a trombada com o impossível de quem jamais se dera por perdido... Estava perdido...
           
E então, decisões firmes e irrevogáveis tomadas, resgate de todas as armas, artes, manhas e recursos, montado numa determinação heroica de romper os próprios limites e cortar os vínculos, descobre, desacorçoado, que ela sentira sua falta... Que não gostara nem um pouquinho disso... Que queria tratar do assunto com toda a seriedade! Mulher imprevisível... Quase criança, nascera adulta... Nada dominava do mundo dos lençóis, mas definia, dona, suas essências.  
           
Claro: fossem simples, comuns, gente como toda a gente, e tudo seria fantasticamente fácil. Mas, não eram, não... Eram complicados, cheios de teorias e padrões, eram mentais, cerebrais, donos de muita determinação, cada qual espiando o outro de suas trincheiras e posições, firmes e decididos, heroicos e retumbantes... patéticos, enfim. Não poderiam senão tratar do tema “- Não quero perder você!”  - rindo?... ou chorando, qual a diferença? As multidões se movem pelas tripas... assim, os amantes...

Horas de abobrinhas, reticências, vazios mentais tentando serem preenchidos com explicações até que bem ajambradas... E, então, veio festa de fim de ano e o beijo. Nada altamente preparado, erótico-vampiresco, tonante, devorador, sôfrego, estilo encontro de buracos-negros galáticos, voos desorbitantes de línguas, mãos, braços e pernas em convulsão, babas e pulsações, pornocinematográfico: beijo besta, delicadinho, gentil, improvisado, tímido, sem querer... Com jeito de ternurinha boba, com alento suspenso, coisa de criança levada, de primeiro beijo... Toque mudo e suave de lábios sem roteiros, bocas ingenuamente premeditadas mas, assim mesmo, leve sufoco sem esfregação subsequente. Beijo-beijo...
           
Desses que não acontecem mais, kantianos sem tempo nem espaço, que jamais se repetirão por mais que se repitam, fora de moda. Nada mudou, depois. Somente alguma coisa girou ao contrário nos confins cósmicos, perderam-se algumas galáxias, explodiram algumas nebulosas, num anteprelúdio de fim do mundo. Teria sido tudo mais simples, começassem por aí. Na falta de plateia, alguns anjos tontos, desinformados, seguramente aplaudiram. A Divindade, competente, fez-se de lesa, a saber de nada... estabelecera-se, após tanta negaça, a trajetória do desastre.    

(scsul - 10/03/2001) 

15 de fev. de 2012

EVOLUTION

Caio Martins.












(img: explosão nuclear - web)

Já podemos explodir
- dizem os jornais - 
o planeta centenas de vezes,
- Que coisa!... uma só seria demais...

Ao léu pasta o gado
ao matadouro
pasta o gado...

O poeta é um saltimbanco
o poema é um vagabundo
que pode um verso inútil
contra um míssil nuclear?
A bomba de nêutrons
derreterá a arte
ninguém dá parte
e pelas avenidas se entulham
androides enlatados
em conserva, entalados
cuja sobrevivência é um vício
cuja inconsciência é um ofício.

Ao léu pasta o gado
ao matadouro
pasta o gado...

No espaço sideral há brilhos
sinistros de metais
enquanto a vida abaixo escorre
condenada
desenfreada
por trilhos virtuais.

Ao léu pasta o gado
ao matadouro
pasta o gado...

No limite do planeta
os limites por um triz
a liberdade ancilosada
é velha locomotiva a vapor
se decompondo nas pradarias
enquanto em órbitas, estelares
espaciais engenhos reluzentes
se (de)codificam, frenéticos
sobre os destinos do planeta
e seus piolhos patéticos...

Ao léu pasta o gado
ao matadouro
pasta o gado...

(26/06/1987 - Pensão da Zulmira)


10 de fev. de 2012

A CALCINHA

Caio Martins.
(ilustração: Damaride Marangelli - esperimenti-1)


Ficara olhando o buraco da porta catatônico e paranóico, atônito e estupefato... Merda!... Só restara a calcinha pendurada na torneira do chuveiro! De novo! Por que? Para que? Vestindo uma toalha que logo se perdera, saira aos berros pelos corredores, vertiginosa escadaria de seis andares: o meio da rua... e tinha voz poderosa, o labrego... Depois de reconduzido ao covil - o gato  ronronando e atentamente seguindo o teclado - escreveu desbragado, emocionado às lágrimas e desconsolado:

"... se sabias que se em outra mulher, estou em ti, se sabias que sou ciumento, egoísta, possessivo? Se sabias que ia te ferir? Ah!, que desamor, que dor, que merda... Querias brincar de Cinderela, Bela Adormecida, beijasses sapos, mas tiveste de escolher um artista sempre na beira do colapso... Pôr-me uma coleira? Eu, músico, que me afundo na noite, eu que por gosto bato, apanho, grito e brigo? Eu, músico, num palco tocando salsa, abaixo estonteantes fêmeas sacundindo pródigas tetas? Por que eu? Puta! Puta, puta, putaaaaa...

... agora é teu cheiro no travesseiro, as manchas no colchão e a maldita calcinha na torneira do chuveiro... Queria tudo certinho, bonitinho, direitinho... justo eu, errado no tempo e no mundo, eu suicida e demencial, eu sem peias nem coleiras, eu sem eira nem beira, eu que estava tão feliz? Com que direito entraste assim na minha casa, na minha pele, na minha cabeça, viraste do avesso minha música e minha anarquia?

Nem um retrato, merda, nem um maldito de um retrato... Se ele aparecer aqui, mato teu gato ! Vou quebrar teu prato, torcer teu garfo, tua colher, tua faca, quebrar teu copo, rasgar tuas roupas, tua toalha, jogar no lixo teu sabonete e perfumes e xampus... meu deus, vou botar fogo na casa... Teu cheiro no travesseiro... Nos lençóis, teu cheiro... nas minhas camisas, sapatos, calças, cuecas, meias, na minha vida, teu cheiro...

O gosto de teus seios entalado na garganta, de tua saliva, baba, marcas de tuas unhas, de teus dentes, no meu pente teus cabelos, e me expulsas enquanto pulso, e te vais, novamente sais sem adeus, nunca mais? Levando tuas coxas doidas, tua vagina louca, tua bunda demencial? Ai... Eu não posso, não quero acreditar... O buraco negro da porta... Deveria ter-te deixado torta e agônica e arfante e lambuzada e mordida e esfolada num quarto de motel, o michê no aparador; daí, eu sim: até logo e nunca mais... Deveria, na primeira vez, pegar meu saxofone, cair na noite, noutra louca, noutras bocas, noutros cheiros, noutros gostos, mas não: quis acreditar, era o amor da vida, era o grande amor da puta da vida...

Que orgia! Tudo que querias era isso, fêmea atroz e voraz e ancestral... Saíste pela porta satisfeita, quebrando ancas, empinando as tetas astuta, teatral... Entre o suicídio e a orgia, escolho os dois e vou; quando voltar, qualquer dia estarás outra vez na minha cama, a me arrebentar uivando entre soluços, lamentos e gemidos, depois berrar da porta de novo que não amas, não gostas, nem queres e bença e tchau... Do maldito buraco negro da porta...  A porra da calcinha na torneira do chuveiro e teu grito de guerra edgarallanpoeliano novamente rasgando os ouvidos excitados do edifício extasiado e expectante pela próxima vez:

- Nunca mais! Ouviu bem, cabeção? NUNCA MAIS !!! "...

Deram-lhe umas fedorentas calças velhas, na delegacia. Depois de algum tempo e muita lamentação, o delegado, verificando não estar chapado nem bêbado, se compadecera vendo ser artista e culto, ensandecido por tórrida paixão; mandara uma viatura levá-lo de volta à toca...

(scsul-julho 1996 - "toquinha")


2 de fev. de 2012

ODÓ ÌYÁ, YÈYÉ OMO EJÁ!

Caio Martins


Iemanjá,
ser do mar
ser de amar
mareia:

Yèyé omo ejá!  Sereia...

Alabê do Ketu
Axogun aquieto
as fúrias do Orun,
Ogun no Àyié!

Odò ìyá !








17 de jan. de 2012

AUSÊNCIAS...

Caio Martins

Para Márcia.















(img: cvm - PB sob foto de msluz - jan/2012)


Rolam, ante meus olhos, transparências
de inigualável nitidez, essências
de meus mortos, de meus amores idos.
Cala-se, a voz, num silêncio contido.

Testei-lhe, Vida, todos os limites:
nuns fui herói, já em outros, fugi!
Dos amores que tive, consegui
cicatrizes tais que densos grafites...

Tantos lugares, meus seres queridos
tatuaram suas marcas no que insiste
em triturar os prazos decorridos...

Preciosa me é, a rara existência
e um só amor etéreo, ao fim, resiste.
Nada sei de saudades... Só de ausências...


13 de jan. de 2012

UM VERSO, UMA ROSA...

Caio Martins

Para Jeanne














(img: cvm - rosaverso - 01/12)


Não tremas, nem temas: dança!

Não terás minha cabeça
numa bandeja de lata:
em vão te procuro
nalgum canto escuro
tuas roupas desata...

E somente dança!

Lança tua sedução e fascínio
enquanto escrutino
nas paisagens nuas
tuas grotas,  tuas luas
fervor desatino...

Dança, dança, dança!

Vem dentre os lençóis
de meus delírios, vassalos
sem eira, corcéis
apocalípticos
em fuga preciosa...

Mas, dança...

Após o armagedon, descansa
farta e frouxa e frágil, preguiçosa...
Não terás minha cabeça, quem sabe
te deixarei uns versos, quem sabe
uma rosa...

2 de jan. de 2012

A ESPERA

Caio Martins

Para Márcia Sanchez Luz e Luiz de Miranda














(img:cmbarba2011vidro)


Te olhas ao espelho,
infinitesimal partícula cósmica:
- Que horror, a consciência do mundo!

Khronos, O Implacável,
comeu tuas façanhas,
as entranhas de teus versos
e não és, Poeta, senão
anti-herói de ti mesmo.

Feneceram-te musas e vestais,
as prostitutas do Templo
envelheceram...
- Que trágico! Que lindas... que loucas eram!

Aminimigos mortos
não tens mais batalhas
as tuas guerras
perderam-se no pó da história
- na morlalha da memória -
a esmo...

Nas tuas retinas estilhaçadas
não mais cabe o mundo;
ao redor ruge o caos
aos cacos.

Estás só!
A solidão, se nem a morte,
atemoriza... (Arre!)medos.

O que corrói
é a espera...


Elis: O Bêbado e a Equilibrista - João Bosco.


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