Da interminável e densa e intensa batalha entre memória e história, o que resta são palavras. Só palavras.
Serão eventualmente garimpadas nos escombros do futuro. Estão convidados, porém, a revirar hoje o blogue pelo avesso.
30 de mai. de 2010
VISITA
Caio Martins
À Jane Vieira
(img: cvm - elaine16 -/decker)
Fui semente entre severas pedras.
Profetizando tempos de colheitas
nasceram flores mesquinhas
violentando mais e mais a colina.
Areias desoladas clamavam
e debatia entre mistérios
o amor como uma casca.
Em vão tentaram os ímpios socorrer.
Que sabem das tocaias dos vermes
em silêncio nas sementes?
Em vão tentaram, imaculadas virgens
interiores, impudicas e uniformes
resgatar com cantos e mel...
Que sabem desraigados
da deterioração intransponível
das farpas das solidões?
Mas, vieste umedecer o silêncio
com teu corpo (e)terno
capaz, porém, de tantos rituais.
Vieste, então, perplexa murmurar
aos ouvidos tronchos palavras desconexas
pungentes apostasiando a vida.
Vieste...
Como que trazendo perdão
entre prantos sem riso ou música
apoiaste tua face
em minhas mãos qual criança cansada
de brincar
e tanto brincas que me confundo
e meu beijar se repete lasso
e parco
e áspero.
Por que vieste?
Se sabias que de meu canto só nasce
o que não tem tempo de ser semente
e fere quem dele se assenhoreia?
Se sabias que a semente silenciosa
apenas estremece em sortilégios
a inexorabilidade da morte?
Que brotaria inóspitos
cardos e pedras e lajedos
por que vieste?
Fui semente entre severas pedras...
Meu corpo é tenso em teu corpo
minha boca arde em tua boca
e parece-me, no momento,
dilacerar as fímbrias da vida...
"Eu te amo" - Chico Buarque e Tom Jobim - com Telma Costa
18 de mai. de 2010
ONÍRICA
Caio Martins
(img: kboing)
Por que? Por que me olhas assim
onírica, de minhas paredes
lépida, ágil, intrépida
enquanto nestas madrugadas frias
traço com pobres palavras
notícias
relatos de amores, guerras
preces, paixões,
luzes e trevas
e as Musas
ingratas me abandonam
desterram
e ficas como dona, e deixo
encantado em teus mistérios
minha linda lagartixa? ...
onírica, de minhas paredes
lépida, ágil, intrépida
enquanto nestas madrugadas frias
traço com pobres palavras
notícias
relatos de amores, guerras
preces, paixões,
luzes e trevas
e as Musas
ingratas me abandonam
desterram
e ficas como dona, e deixo
encantado em teus mistérios
minha linda lagartixa? ...
9 de mai. de 2010
HOJE
Caio Martins
Ao poeta Luiz de Miranda.
(img: fabian perez - autoretrato)
Hoje, poeta, escrevo
não mais como quem chora
lamenta ou enlouquece,
como quem foge
briga e apanha e bate
e crê salvar-se ileso
e aos faltos do universo.
Hoje, poeta, escrevo
não mais como quem morre
escorrendo por complacentes
moçoilas no cio, vadias
vulgívagas elementares
crendo de amor falar
a torpes desesperados...
Hoje, poeta, escrevo
de caso pensado, sem alma
adrede e premeditado
sem ira ou rancor ou tédio
como quem solerte se exprime
suspeito e dissimulado
para cometer um crime.
Hoje, poeta, escrevo
como quem, por afasia,
declina da Poesia...
1 de mai. de 2010
CHORINHO
Caio Martins
Para Márcia
Saiu a pé pelo sábado choroso de outono, nem frio nem quente, um cheiro de mofo deprimente pelas ruas. Entrou num boteco esconso, trapiche onde estavam todos os amigos começando a noite que naufragaria, inevitavelmente, num oceano de cerveja, chope e cachaça... Todos os olhares cúmplices e solidários, solitários e comoventes antecederam os abraços, saudações, daí começou a alegria... Ou não fora ali o rei do cavaquinho, soberano nos diálogos com o violão do botequeiro e quaisquer vozes, nas místicas noites de chorinho e chorões?
Mastigou um torresminho devagar, ouvindo e desfrutando da zorra da moçada: qualquer desamado sofredor e desmamado, ali era personalidade, tinha ancoradouro. Estava com mal de amor... Tomou um martelinho de cachaça de a golinhos, entremeados por chope, já pegando o andar da carruagem quando a viu. Não a que se fora, mas uma carinha nova, de "olhar e voz envolvente, que atingia a perfeição”... Meteu-se naquele olhar profundo, no fundo decote e respirou, aliviado: o Barbudo, seu amigo, lhe enviava a cura...
Pegou o cavaco, afinou nos trinques e tocou como nunca d’antes na história deste país. Os olhos da moça não desgrudavam baixando-se, timidamente estratégicos, se focados. A galera extasiada nada via, ele entrara num estágio de magia irresistível e fora de questão. Quando pausou o ritual, foi um “- Aaaaahhhhh!” geral... Queriam mais, muito mais. Foi ao balcão de madeira escura (diziam que Cabral ali tomara sua primeira talagada ao chegar ao País das Maravilhas). Perguntou ao povo quem era a menina discretamente, macio feito um gato ladrão. Nada sabiam. Chamou o garçom e pediu que averiguasse se estava sozinha. Foi o velho astuto e perguntou-lhe se seu marido não queria nada. Estava só, com amigos...
Poderia antes, como Neruda, “escribrir los versos más tristes esta noche”... Todas as noites... Não, não o faria jamais: ela se fora? Que se danasse... Duro, todavia, o insistir da memória do corpo, os restos de energia eternamente entranhados, qualquer porcaria dentro e fora de casa lembrando e lembrando e lembrando... Venderia a casa, o carro... E as roupas, objetos pessoais, os móveis, o computador, os livros, mudaria para outra cidade, outro país, outro planeta... Outras mulheres? Estupidamente, no primeiro encontro pós-traumático, momentos decisivos, saíra-lhe o nome da outra; fora-se o doce enleio pelo ataque de ira, catar de roupas e o indignado bater da porta... Ali ficara na cama enorme pequeno feito um rato, chorando feito besta.
Ah! talvez revoltar-se ajudaria... Mas... como? Se ela nem saberia, senão por terceiros e notícia ruim de noticiário marrom, dos esparramos e desmandos? Entupir-se e naufragar em drogas, qualquer porcaria entorpecente e fulminante? Ir, a mão armada, e mostrar ao universo até onde um desesperado pode ser imbecil? Sair do emprego, cair na orgia, zerar a conta bancária e sair com a roupa do corpo pelas ruas atrás do fim do mundo? Procurar psiquiatra, psicólogo, terreiro, templo, mesquita, igreja? Não! Não resolveria... Fora-se? Foda-se! Ainda tinha o cavaquinho. Sorriu para a moça.
E, assim, conversaram sem pressa, de lá e de cá num chorinho vez por outra, lagriminha boba, escapada de um suspiro fundo, as mãos se tocando, litúrgicas. Horas depois, na porta do muquifo, despediram-se com beijo na face. Estava, como ele, em luto. Perdera também um grande amor.
(img: fabian perez - study for the proposal)
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