O CARRO DE BOI

Caio Martins. Em homeagem ao meu amigo, mestre e irmão Luiz Olinto Tortorello.
Ao professor Horácio Ramalho.


Sei não... quando se ia devagarinho, no passo dos bois, a gente tinha mais tempo pra pensar nas coisas da vida...

1. O carro
(img: capa -1ª edição- 1997 - esgotada)

Tem carro de boi, e tem carreta. Carreta, ou carroção, tem roda raiada e é muda, não canta. Carro de boi tem roda inteira, e canta para se ouvir de léguas, seja gaita, pombo ou baixão . É coisa de sertanejo, é uma saudade doída de um tempo onde se ia devagar, mas havia mais tempo para ver e entender as coisas. Saber de carro de boi, é mexer com magia, é entender a alma da madeira e do ferro, da terra e do fogo, da água e do ar...
O carro de boi foi nosso principal meio de transporte no período colonial, no império e até na era republicana. Mas, vamos só falar da coisa em si, do que o Professor Ramalho reuniu ao longo dos anos, trocando prosa com carapinas, candieiros, carreiros, fazendeiros lá das bandas de Taquaritinga, Jaboticabal, Guariba, Monte Alto, Santa Adélia, e arredores. Juntou a ciência da feitura, "causos", muita coisa boa de se conhecer.

2. A construção

Visto de frente, de lado, de cima e de baixo, o bicho é veículo simples, de duas rodas. Todo feito de madeira, menos os aros das rodas, a chaveta e o argolão, que são de ferro, leva as cargas na mesa, que remonta no par de rodas e tem um varejão reforçado onde se atam os bois, chamado cabeçalho.

Desenho do professor Horácio Ramalho, 1955.

Desenho do professor Horácio Ramalho, 1955.

A mesa é feita de duas chedas que saem uma de cada lado, ligadas no cabeçalho e que apoiam o assoalho. As chedas e as arreias que as unem são feitas de cabreúva, madeira que nem se sabe se existe mais. O assoalho é de canelão, ou outra madeira nem muito dura, nem muito mole. Na parte de trás, fica o rebaixo (recavém). As rodas são de cabreúva, a parte do centro é chamada meião e lateralmente se limita com as duas cambotas. O meião, perto das cambotas, tem sempre dois buracos, o bocão, ou oca, que é para o som criar força e ecoar. O aro da roda é de ferro, e para ser calçado, é forjado na bigorna, a malho, redondo perfeito, podendo ser fechado fraguado ou com rebite - esse não resiste muito, não. Para abraçar a roda, é esquentado quase ao vermelho numa fogueira de roda, para expandir. O ferreiro e os ajudantes o ajeitam em cima da roda, no chão, acertam rápido com golpes de malho para não ficar torcido e, estando centrado, o esfriam com água. O ferro se contrai de a madeira estalar... Nunca ninguém mais tira. Os cravos de meio palmo eram só pelas dúvidas.

Roda - (esboço de 1997 - do autor).
1- Aro com os cravos. 2 - Travas das pranchas do meião. 3 - Meião com o "rosário".
4 - Os "gatos" de trava da amecha (furo do eixo) para proteger contra rachaduras.
5 - Óca ou bocão, que influem no som. 6 - Vista lateral.


Eixo (esboço de 2012, do autor)
1 - Furo da cavia da roda. 2 - Espiga quadrada. 3 - Emborgueira (morgueira), uma de cada lado da roda.
4 - Cocão. 5 - Degolo. 6 - Chumaço do meio (cantadeira).
7 - Cantadeira do meio (apoio do eixo). 8 - Mancal.

O eixo também é da desaparecida cabreúva, oitavado e com morgueiras do lado de dentro e de fora, para o chumaço não escapulir do cocão e apoiar a roda, que é segura por uma ou duas chavetas. São dois de cada lado, e é por donde gira o eixo. O chumaço deve, de preferência, ser feito de canelão, pra o carro realmente cantar. Madeira dura canta fino, de gaita, canelão canta de pombo ou canta baixo. Capixingui, baraúna e caviúna fazem carro cantar até sem carga, mas pedem óleo de copaíba. Canelão canta com óleo de mamona. Esse fica num chifre chamado azeiteira, amarrado com correia num fueiro, e uma vara com trapo na ponta é usada para por óleo no chumaço. Tem vez que o eixo, no atrito com o chumaço, chega a fumacear e levantar labareda. Aí o carreiro pega os cachos de mamona verde e limpa a cantadeira, que é a área do chumaço ajustada no eixo.


Tipos de cangas - Desenho do professor Horácio Ramalho.
a- canga de coice b- canga de meio e c - canga de guia.
1- canzil 2- fura da canga 3- tamoeiro e 4- brocha.

Na traseira do carro, há o argolão de ferro, que serve para engatar os bois para puxar o carro para trás, quando encalha, e para encangar os bois de retranca, quando a descida é muito forte. Nela se amarra a tiradeira, ou cambão, quando se tem que "depenar uma coruja", que é como o povo chama tirar o carro do atoleiro. O cambão é um varejão forte e reto feito de cabreúva, assapuva, guatambu ou peroba. Tem na parte da frente uma chaveta e, na de trás, o rabo, de couro cru, que se engata na chaveta da junta de bois anterior. Quanto mais bois na canga, mais cambões são usados. Também se usa rabo de corrente e gancho de ferro, mas o certo é o couro cru.

A mesa, sem os fueiros, de pouco serve. Fueiro é haste reta e forte, de carrapateiro, guaritá, assapuva ou peroba, que se encaixa nos furos dos lados do assoalho, em geral cinco de cada lado, dois na frente e dois no cadião. Seguram a carga e escoram a esteira, um trançado de taquara de mais ou menos um metro de altura, que fica em pé e tem abertura no fundo do carro. Fecha com atilhos de couro. Para proteger a carga, usa-se couro curtido inteiro de boi . Quatro deles cobrem um carro.

"Petrechos" - Desenho do professor Horácio Ramalho.
1- tiradeira 2- chaveta e 3- rabo ou rabada. 4- vara de ferrão
5- ajoujo e 6- azeiteira e o pincel.

Das tralhas miúdas, temos o ajoujo, que serve para amarrar os chifres de um boi ao outro, formando a junta. Também serve para aquietar menino danado... É feito de couro cru, tem mais ou menos duas braças de comprido. Os tamoeiros também são de couro cru torcido e volteiam as cangas, servindo para travar a frente dos cambões ou tiradeiras pelas chavetas. Temos também a brocha, que serve para amarrar os canzis por baixo do pescoço, para segurar o boi e evitar que a canga solte do cangote. Mede mais ou menos um palmo e é feita de couro cru torcido.

Há a escora, de madeira, que vai um palmo acima da canga e dois palmos e meio abaixo, servindo para apoiar o carro, quando parado, aliviando o peso nos bois de coice, ou para manter o cabeçalho na horizontal, quando desatrelado. Cabeçalho no chão dá azar.

Finalmente, existe a vara de ferrão, de carrapateiro e até de peroba, na frente leva ponteiro de ferro que, antes da ponta, tem furo com duas ou três argolas de ferro, que chacoalham e, assim, o boi já sabe que lá vem cutucão e desamua, ou arranca mais. Carreiro bom não espeta boi de tirar sangue. Só ponteia, depois o bicho se mexe só pelo barulho das argolas. Quando tem muitas juntas, costuma-se amarrar na ponta do ferrão uma tira comprida de couro, para alcançar e deixar os bois lá da frente mais espertos.

3. O Canto do Carro de Boi

Quem ouviu, ouviu. Quem não ouviu, não ouve mais. Parece que onde chegam as técnicas e tecnologias de fazer tudo mais depressa, como se o mundo fosse acabar ontem, a poesia acaba desmantelada. Porque o carro de boi não canta por boniteza, somente. Canta por precisão. A vida do carro está na cantiga. Carro de boi, de pau, que não canta, não é carro. É tranqueira com rodas, coisa morta, desservida de encantamento. Porque se há muita carga e o carro canta de gaita, a gente mata os bois. Eles ficam destrambelhados, se estouram no esforço. Mas se o carro canta de baixão, vão lá naquele passo deles, na mesmice de boi deles, em paz com Deus e com o mundo. E se é trabalho corriqueiro, normal, então é bom o carro cantar de pombo, nem para cima, nem para baixo. Pois, estes são os três tons de cantar dos carros: pombo, que é médio, macio. Gaita, fino e alto. E baixão, que é grosso e grave.

Carro cantador não vareia, não descontinua nem destoa nem mesmo nas bacadas mais brutas, ou manobras de vai-e-vem. Léguas longe, quem sabe e conhece percebe a alma do carro chegando muito antes que se possa pôr os olhos nele. Porque o canto do carro é isso: é sua alma, é a alma do carreiro, é o jeito que Deus deu para enfeitar a existência dos bois e dos carreiros pelos caminhos do sertão e da vida.

4. O Boi

No geral, os carros atrelam oito bois, mas podem ser dois, quatro, se há muito peso, dez, doze, até uns dezesseis. Mais, é desperdício, pouco carro prá muito boi.

Boi de cabeçalho, ou de coice, é boi de força, de servidão garantida, arrasto firme. É boi de confiança, os primeiros depois do carro. Já os do pé da guia podem ser menores, mas sabidos, e os da chave e contra-chave podem ser meio bravos, pois atrelados no meio, entre os outros, não causam problemas. Idade boa para amansar boi é pelos três anos e meio. Alguns trabalham até 25 anos, mesmo 30. Para quem não sabe, que fique sabendo: boi é capão, não serve para tirar cria. Touro é outra história. Chamar um de boi, pode trazer confusão. Mas houve esperto que acabou pondo vaca a puxar carro... Um trem desse ninguém leva a sério.

Quando os bois não têm muito trabalho, carreiro bom atrela do mesmo jeito no carro: "Nóis ponhamo bastante boi, que é preles num ficá vadiano" Se boi fica gordo, não tem serventia, não resiste mais o esforço.

Nome de boi é sentimento. É presente para o bicho no dia que nasce. A gente olha, lá dentro acontece a inspiração e vem o nome: Fumaça, Melindroso, Coração, Dourado, Maneiro, Faceiro, Formoso, Espadilha, Sete de Ouro. Estrela, Malhado, Turuna, Namorado, Pitanga, Corumbá, Maravilha, Limoeiro. Montanha, Brioso, Barroso, Moreno, Mulato, Ponteiro, Caruaru, Cravinho, Cruzeiro. Teve até um que tinha olho puxado, virou Sakamoto, lá no Sitio Bom Destino, em Santa Rosa do Viterbo. Nome de boi é isso, é poesia, tá ali na qualidade, na cor, no jeitão, na prosopopéia do bicho.

5. Simpatias e Sabedorias

Sempre há as crendices, as coisas de fé, de imaginação, e tentativas de explicar algo que não tem resposta. São o domínio do Saci, do Coisa-ruim, assim por diante:

- "Ponhá o cabeçalho do carro no chão não presta. Atrasa o dono. Tem de ficar escorado pras coisas estarem no lugar".

- Desencalhe do carro é chamado de "depenar coruja". Vai ver, porque é ave ruim de despenar. O professor Ramalho conta que um carreiro lhe disse:

"- Compadre, depenei um corujão na subida do riacho do Tijuco"...

- Pra pegar boi brabo, arisco, a gente pega uma espiga de milho, passa debaixo d'um braço esquerdo, adepois do outro, e dá pr'o boi comer. Fica tão manso que até vem de encontro. Ou se a gente mistura açúcar no sal três vezes, o boi se acostuma, vê o carreiro e já vem até encontrar".

- "Pra carro de desafeto parar de cantar, a gente espera passar na beira d'um rio, cospe na terra da margem, pega ela e passa ela na cantadeira... claro, sem o dono ver.

- Pra deixar carreiro sorococando de raiva, na hora do pouso, sem o decente saber, a gente troca os chumaços do carro dele, botando um de caudéia, outro de cedro. Daí que o carro fica com duas vozes, desafinado, e o dono chifra o chão por causa do desentôo. Pr'a quem não sabe, caudéia e cedro são madeiras".

Pra desencalhar um carro do jeito mais antigo: a gente vira a parte da chavelha para trás da tiradeira da frente, enquanto vai dizendo "- Turumbamba na Gambemba" que uns diz que quer dizer "- Carne seca do Diabo", na língua dos pretos da Costa. Diz-que funciona!".

- Pra descangar boi jogador de canga, desses que na hora que a gente desabrocha ele, o danado arremessa a armação pr'a trás, que é coisa perigosa, o jeito é desabrochar o canzil do lado de fora, quando estiver perto do lugar de descangar. O boi é enganado, quando vir, já tirou-se a canga e ele nada fará".

6. Remédios para os Bois

José Mendes de Barros, da fazenda Diamantina, de Taquaritinga, foi carreiro mais de cinquenta anos, e ensinou as seguintes receitas:

Febre de Gado: carqueja e perobinha. Esta serve igual para curso branco.
Carrapatos: sal e cinza na pele do boi é santo remédio.
Dor de barriga: leite e azeite doce. Também é bom butica-inteira ou então joão de castro, perobinha ou abóbra de anta, um cipozinho que dá uma batata que cura cólica. Três pimentas do reino, dadas ao boi, também curam.
Micuim (inseto que péla o animal, deixando a pele toda ferida): lavar com sabão e creolina, ou limão com sal antes de virar ferida.
Limpar o sangue: sal amargo com farelo.
Ferimentos: banhar a parte machucada do boi com infusão de sorda, (planta rasteira, que se parece com a batata doce). Melão de São Caetano com azeite de mamona também é remédio certo. Salmoura também é bom.
Rins: carrapichinho rasteiro, como chá ou banhos.
Fetosa : chá de abrobera.
Figueira, grosseira ou caroços, tubérculos: rebatiza-se o boi com o nome de Figuera, corta-se a figueira e se queima, e o boi sara.

Quando boi está empachado, pega-se um punhado de terra na frente de um portão, põe-se num pano bem limpo, amarra direitinho. Daí, ferve o atado fazendo um chá que para o boi, e acaba com o empachamento. Se está doente do rim, a gente dá chá de chapéu de couro, erva-tostão ou jurubeba. Se o mal é do figado, dá chá de capeva e jurubeba. Rebentão é bom pra urina presa. Mistura de sal e cinzas é purga certa contra empachamento.

7. Cancioneiro

Difícil de encontrar versos, trovas, modinhas inéditas dos carreiros. Já com o advento do rádio, duplas caipiras e cantores levaram essa riqueza ao público. Mas há estrofe perdida, um restinho de verso aqui, outro ali, gostinho do que nunca foi escrito, só dito ou cantado. Tem um verso que diz:

Sabiá matou meu boi
pendurô no perová...

que não está falando da maldade de um sabiá, mas da raiva que o passarinho ficou por causa do carro cantar melhor que ele. Ou este, a respeito de encalhe ruim:

Por isso mesmo,
Que eu não quero carreá
O carro tomba
O candieiro passa má...

Há uma modinha (Boi Amarelinho) que conta a história do boi carreiro desde o dia que nasceu, é quando morreu num matadouro, depois de trabalhar a vida toda:

Eu sou aquele boizinho
Que nasceu no mês de maio
Desde o dia em que nasci
Fui sofrendo meus trabaio...
[.....................................]
Me amansaro de cabeçaio
P 'ra trabaiá no carretão
Com a vara de ferrão.

Já no fim, quando o boi é vendido para o matadouro por não poder mais trabalhar , a modinha assim procura despertar a compaixão pela vida de boi:

Adeus, Campina Grande
Sertão de Cuiabá
Quem tirá o meu couro
Sem camisa há de ficá.

Jerônimo de Campos, que fez nome como carreiro quase um século atrás, cantava essa toada:

Duas coisas neste mundo,
Que o meu boi num qué:
Canga de embaúba
E brocha de sapé...

Tenho meu carro de pau
Canta gaita e baixão
Que é a minha alegria
Agora que estou velho
E que vivo na tirania...

Diz-que, sempre, tem nas histórias os que fazem pacto c'o Sem Nome, o Coisa Ruim, o Diancho... Os versos que vêm aí foram ouvidos do veterano Benedito Castilho, que por seu lado os ouvira de Tonico Pedro, carreiro de nomeada lá de Ururai, município de Santa Adélia:

O Carreiro Venâncio

A história sempre persiste
Na zona do campo triste.
Um velho, lá, inda existe
Que ficou bem recordado
Do tal carreiro falado
E da proeza do seu gado.

Diz-que ficou famoso
Por ter parte c 'o tinhoso
E seus doze bois barroso
De chifre todas volteados
Fortes como uns danados
E pelo diabo amestrados.

Venâncio, o tal carreiro

Não via estrada ou brejero
Tudo pr 'ele era manero.
Encontrou, certa acasião,
Na carga do Fundão
Enterrada até o cocão
Um carro bem carregado
Só de dormente serrado
E era mais do que pesado.

Venâncio disse ao carreiro:
- "Seu cara de candieiro!
Tira dai teus carneiro. Meus bois são esquisito,
Não gosta muita de grito
Nem dá trela prá cabrita..."
Logo combinaram, pois
Que era preciso que os dois
Trocassem, do carro, os bois.

Venâncio botou seu gado
Naquele carro atolado
E ficou meio calado.
Coisa que nunca se viu!
O carro arrastado saiu
E o que somente se ouviu
Foi chocalhar de ferrão
Dois estouro de cocão
E os bois de joelhos no chão.

Vendera a alma ao Danado
E dele era aquele gado.
E teria um triste fado.
Era a boato que corria
Que Venâncio não morria
Pois o diabo o levaria.
Era isto voz corrente
Mas Venâncio foi um bom crente,
Morreu como toda gente...


Modas de Tonico e Tinoco


Boi de Carro
Autores: Tonico, Tinoco e Anacleto Rosas Jr.


Na manguera
Da fazenda do Lajado
Conheci um boi maiado
Descaído como quê
Tempo de moço
Quando eu era candiero
Boi Maiado era ligero

Trabaiava com você.
Boi de carro
Hoje véio rejeitado
Seu congote calejado
Da canga que te prendeu
Boi de carro
Eu ainda sô teu cumpanheiro
Eu to véio sem dinheiro
Teu destino é iguá o meu
Boi de carro
Sem valia tá afrontado
De puxá carro pesado

Costume que os patrão fais
Eu trabaiei
Trinta ano e fui quebrado
Do lugá foi despachado
Diz que eu já não presto mais.
Boi de carro
Seu oiá triste parado
Ruminando já cansado
Cô desprezo do patrão
Boi de carro
Eu também to ruminando
Essa mágoa vô levando

Dos home sem coração.
Boi de carro
O seu dia tá marcado
Pro corte foi negociado

P'rá mata no fim do méis
Adeus maiado
Meu sentimento é profundo
Vou andando pelo mundo
Esperando a minha veis.

Carreiro Sebastião
Autor: Carreirinho

O meu nome é Sebastião Rodrigues de Carvalho
Fui carreiro e com saudade lembro os tempos de trabalho
Hoje eu moro na cidade, mas nem de casa não saio
Chego a sonhar com meu carro cortando pelos atalhos
Quatorze boi todos moiro, desde a guia ao cabeçalho.
Nome da minha boiada até hoje estou lembrado
Redondo e Marechal; Craveiro e Desejado;
Jagunço e o Violento; Estrangeiro e Numerado;
Retaco e o Barão, boi baixo arreforçado
O Maneiro e o Rochedo, doze boi aparelhado.
Na junta do cabeçalho, Ouro Preto e Coração
José Martins de Azevedo, o nome do meu patrão
Na fazenda São Luiz, onde eu morei um tempão
Cortava aquele serrado lotadinho de algodão
Dava um dueto doído o gemido do cocão.
Hoje eu moro na cidade mais não posso acostumar
Em outubro fez dois anos que eu deixei de carrear
Às vezes quando estou sozinho eu começo a lembrar
Parece que estou escutando o meu carro a cantar
Eu nasci pra ser carreiro não nego meu naturar.

João Carreiro
Autor: Raul Torres

O meu nome é João Carreiro / Conhecido no lugar /
Eu vou contar minha história / Prá vocês não duvidar
Já tou véio aperreado / Já não posso carrear /
Mas o galo quando morre / Deixa as penas por sinar
No tempo que eu fui carreiro / fui caboclo arrespeitado /
Com quatro juntas de bois / caminhava sossegado
Distancia de meia légua, quando subia o cerrado
Ai, o cocão ringidô, era dueto chorado.
Pareia de cabeçalho / Beija Flor e Muzambinho /
Pareia de boi na guia / Fortaleza e Caboclinho
Sob a guia caminhava / Riachão e Riachinho... /
Vamos simbora Sereno / Pareia de Passarinho
No riacho da Graúna / Quando meu carro parava /
Os zóio de uma cabocla / meu coração cutucava
Na vorta lá da cidade / De novo por lá passava /
E os zóio dessa cabocla / De novo me provocava...
Assim fiquemo um tempão / Cinco mês fiquemo assim /
Eu com arreceio dela / Ela com medo de mim
Um dia criei coragem / Falei com ela por fim /
Essa cabocla chamava / Corina Flôr do Alecrim
O alecrim não tem espinho / E é danado prá cheirar /
E mesmo não tendo espinho / alecrim pode magoar
Corina Flôr do Alecrim / Só soube me ajudiar /
Me prometeu tanta ventura / E só me trouxe penar
Só tive um amor na vida / Tristeza me veio dar /
Fiquei véio aperreado / Já não posso carrear
Já contei a minha história / Antes de outro contar /
Onde meu carro passou / deixou rastro por sinar ...

Carro de Boi
Autor: Tonico

Meu véio carro de boi, pouco a pouco apodrecendo
Na chuva, sor e sereno, sozinho, aqui desprezado
Hoje ninguém mais se alembra que ocê abria picada
Abrindo novas estrada, formando vila e povoado
Meu véio carro de boi, trabaiaste tantos ano
O progresso comandando no transporte do sertão
Hoje é um traste véio, apodreceu no relento
No museu do esquecimento, na consciência do patrão
Meu véio carro de boi, a sua cantiga amarga
No peso bruto da carga, o seu cocão ringidor
Meu véio carro de boi, quantas coisa ocê retrata
A estrada a a verde mata,e o tempo do meu amor
Meu véio carro de boi, é o fim da estrada cumprida
Puxando a carga da vida, a mais pesada bagage
E abraçando o cabeçaio, o nome dos boi dizendo
O carreiro foi morrendo, chegou no fim da viage.

Boi Amarelinho
Autor: Raul Torres

Eu sô aquele boizinho
Que nasceu no mês de maio,
Ai desde que eu vim no mundo
Foi só pra sofrê trabaio.
Fizero logo o batismo
na marge do riozinho,
Por causo da minha cor
Foi chamado amarelinho.
Quando eu tinha ano e meio
fizero amansação,
Puxando carro pesado
E tora no carretão.
Carrero que me adomava
Me fazia judiação,
Dei uma chifrada nele
Que varou no coração.
Ai meu patrão já disse:
- Vou mandá esse boi pro corte,
Não trabaia no meu carro
Boi que já deve uma morte.
Eu chegei no matadô,
Não encontrava saída,
Amarraro no palanque,
Entreguei a minha vida.
O marvado carnicero
Correu amolá o facão,
Me largou uma facada
Bem certo no coração.
Botei meu joeio em terra,
Vendo meu sangue corrê,
Meu corpo todo tremia,
Berrava pra não morrê.
Adeus campo de Varginha,
Terra de Minas Gerais,
Os óio que lá me viro,
Amanhã não me vê mais.

Velho Carreiro
Autores: Tonico e Zé Paioça

Carreiro chora baixinho
Por alguem que já se foi
Cortando triste o caminho
No passo lento do boi.
Oi, oi, oi
Gritando o carreiro vai
Cada grito é um lamento
Que do peito véio sai.
Sua gaúcha querida
Muito tempo acompanhô
Hoje só resta na vida
Saudade do seu amô.
Oi, oi, oi
Gritando o carreiro vai
Cada grito é um lamento
Que do peito véio sai.
Carreiro já está quebrado
O rosto véio enrugano
Com o trabaio do seu carro
Puxado por tantos anos.
Oi, oi, oi
Gritando o carreiro vai
Cada grito é um lamento
Que do véio peito sai.

8. Os Causos

Os "causos": essas estórias que a gente ouve e nunca cansa de escutar. Como eram contados à noite, depois da matulagem, falam sempre de assombração, coisa de não se sabe onde, bicho que não é bicho, coisas de espantar o ouvinte. Ainda mais se é novato, não é de lá, pois muita coisa só acontece no sertão. Quem quiser que se compadeça, pois alma penada é o que não falta. A linguagem foi conservada conforme o contador do "causo", pois se quem conta um conto aumenta um ponto, não tem direito de reinventar.

O FIM DO CARREIRO E DO PATRÃO MALVADO
(Compilado pelo Professor Horácio Ramalho)

No tempo da escravidão, havia um dono de fazenda danado de ruim. Judiava dos negros sem razão ou necessidade. E, todos os dias, era preciso trazer os bois de carro para o curral. Tinha um carreiro, um preto pr'a lá de velho , e nesse dia o Danação fez que faltasse um boi de coice dos mais considerados. O escravo já tinha levado uns cascorão por causa do sumiço de um boi de guia e o patrão, resfolegando fogo pelas ventas, quis saber dos bois.

- Não sei, não sinhô - disse o velho, se atravancando todo.

O fazendeiro surrou o negro, gritando-lhe que sumisse e que não voltasse sem os bois. O preto velho foi, pois o desaparecido era bicho de muita querência e estima. Depois de muito campear pela pastaria, deu com o boi na beira do rio, só que todo enrolado por imensa sucuri.

Enquanto rezava para Nossa Senhora que tinha de levar o boi senão o patrão me mata, pegou o facão e tentou salvar o bicho que já agonizava. Arremeteu e a cobra, com a dor dos cortes, dava rabanadas, e violentas. Pegou o negro na cabeça, acabou com o coitado.

Daí a pouco chega o fazendeiro inconformado que, inteirando-se da situação, baixa do cavalo e foi chicotear a sucuri. E a cobra imensa, toda retalhada de facão, num estertor se enrolou no homem, terrível abraço de morte para os dois. Foi arrochando, apertando, esmagando...

Desde então, o local ficou assombrado, evitado por todos, pois quem por ali se aventurasse, desavisado, via umas sombras se enrolando, ouvia gemidos assustadores, barulho de costela quebrando, a voz de um preto velho aboiando, um boi mugindo pela maldade do patrão.

A MOÇA QUE ATOLOU NO BREJO
(Relato de Jayme Venâncio Martins, lá de Santa Rosa do Viterbo)

Diz que micuim de amor não tem juízo. Daí, que o fazendeiro de infinitas léguas, coroné de baraço e cutelo, pegou umas rosquinhas, uma garrafa de licor de jenipapo, a filha dum compadre de coronelice e farreio, moça alemoa solteira e fogosa, ponhou tudo no carrão recém chegado das Oropa e disparou pr'os lajedos do Rio Pardo, perto d'onde hoje ainda é a Fazenda Amália, só pr'a vadiá. Casado e renomado, quando passava com o carrão preto roncando, até galinha ficava uma semana sem botá.

Mas, perto do Águas Claras, a moça grudou ele, o fazendeiro perdeu o bridão do monstro e os dois meteram os quarenta cavalos no afamado Brejão dos Sapo, do lado da estrada. E veio gente, tentaram com burro de tropa, e puxa e repuxa, o carro parecia era cada vez mais grudado, nada de despená.

Aí, num carro de boi cantador de gaita, veio chegando o Paulino Venâncio, pai do contador que então era menino, devagar como se tivesse a vida inteira pr'a chegar em nenhum canto. Tinha oito boi na junta, desses de encher os zóio, cada beleza de animal que Deus fez só para se gabar.

Chegou, parou, assuntou e riu dum jeito matreiro, lá com seus bigodão. Não gostava muito do fulano, e aquela história ia correr o mundo. Ademais a moça era filha de terratenente jagunceiro arrespeitado. Diz-que acoitava o Dioguinho. E a mulher do atolado era uma jaguatirica de braba, dessas de capá marrote só de zoiá.

- Ô Paulino! Desatrela os bois, puxa meu carro desse atoleiro desgraçado!

- Ô, Coroné!...Uai, sô! 'cê num disse que esse trem tem mais de quarenta cavalo? E tá pedindo ajuda de boi?

E o outro implorou que desatrelasse os oito bois, a moça atolada dentro do carro chorando, aquele povo de capiau na flirtiva se rindo.

- Tá bão, cumpadre! Vou arrezorvê! Vou tirá essa porquera pr'ocê!

Gritou para o Aquiles Grande, o carreiro, que desatrelasse só a junta de guia, pois para tirar uma tranqueira daquelas, dois boizinhos bastavam. O Sakamoto e o Graúna, no aboio e som do ferrão e atolados até na barbela, foram puxando, estirando e, dai a pouco máquina, moça e licor de jenipapo estavam na estrada, tudo despenado.

Porque boi, contrário de mula e burro, não dá tranco, arrancada, solavanco. Puxa estirado, vai aumentando a força devagar, na sabedoria. Aí, pr'a encurtar essa prosa que já foi longe demais, o fazendeiro disse que o Venâncio podia pedir o que quisesse, já que viu que ele não desgrudava o olho da alemoa, moça ancuda e volteada, parecendo 'té canga ajeitada nas curva das beleza lá dela, agarrada c'o a garrafa de licor.

Venâncio coçou a barba, ajeitou o bigodão, assuntando a moça, olho no fulano, foi e voltou, rezoiou, parecendo boi ruminando lá as maracutáia dele.

- Êh, trem bão... 'tá bão! Só que num sei se 'ocê vai dá concordânça! O que eu vô querê, acho que ocê num vai querê me dá!

O fazendeiro, que não queria ser o único a responder por descaminho de moça solteira, crime naquela época, filha de acoitador de jagunço, coisa pior ainda, já basofiou, montado nas botas de canela alta embolostradas de barro:

- Pois, Seu Venâncio: é só pedir e pode levar!

A moça abriu o berreiro, soluçando fundo e magoado.

- Pois, Seu Fabrício: pode me passá a garrafa de jenipapo, aí, que inté 'tá bem pagado, pela tunda que meus dois boi deu nos seus quarenta cavalo...

A ONÇA DA FAZENDA FIGUEIRA
(Narrado por Evaristo Ramalho, antigo carreiro e fazendeiro)

Na Estrada de Ferro Araraquarense, íamos uma vez da Fazenda São Domingos para a estação com cinco carros de boi carregados de café. Arranchamos perto da Fazenda Figueira. Não tinha muita mata, mas era um pé de serra, de baixada, plano e bem achegado. Fizemos a comida com os caldeirões pendurados nos argolões dos carros pois ameaçava chuva. E veio. Veio de afogar o mundo. Assim que foi embora, o pessoal reuniu-se para a comida.

Na hora do licor de jabuticaba, pertinho-pertinho ouvimos o esturro forte de uma onça... Largamos tudo, até a garrafa de licor e as canecas, subimos de avoada num dos carros, o Abel, o Amâncio, enfim, todo o povo. Outro esturro, e os bois rebentaram as peias e desandaram no mundo, tropelão desarvorado.

Bem na nossa frente, apareceu a pintada, de patonas tortas, calma e dona do seu passo. Veio vindo, comeu das comidas e, espanto: bebeu, com lambidas de quem entende do assunto, o licor de jaboticaba das canecas e o que caía da garrafa. A gente já estava pensando em jogar o preto Amâncio pr'ela, pois o povo diz que onça gosta de carne de africano e vem pelo faro. Mas o Amâncio puxou um garruchão 44, rosnando que se cristão chegasse cristão que matasse, e a gente mudou de idéia. Dissemos que atirasse nela, mas ele disse que a garrucha era só de matar gente. Foi que a onça, depois de comer e beber o de fartar, se ajeitou na trilha e lá se foi num passo meio tropeçado, andando meio de lado, miando meio enrolado... Coisa assim, só pode ser reinação do Perneta!

CÓRREGO DO NEGRO
(Narrativa de Benedito Castilho, de Santa Adélia)

No Município de Santa Adélia, tem um riacho chamado Córrego do Negro. O povo lembra um episódio para justificar o nome, da época do afamado José Francisco de Castilho, o "Capa Preta", bisavô do contador.

Tinha um escravo que o ajudava na ferraria. Ninguém sabe por quê, numa feita o escravo segurava uma peça em brasa, enquanto o Capa Preta malhava a extremidade, e eis que o preto tentou enfiar a peça de ferro quente na barriga de Castilho.

No lufa-lufa aprisionaram o negro, que foi castigado. O escravo fora-lhe emprestado por um compadre de longe, sertão a dentro, e o Capa Preta armou um carro de boi e nele pôs o escravo muito bem atado, para devolver ao amigo.

Chegados à altura do mencionado córrego, pararam o carro para a refeição. Castilho e os companheiros, atarefados em juntar lenha, atiçar o fogo e cozinhar os pertences da comida, esqueceram-se do negro. Voltando ao carro, talvez para levar alguma comida ao prisioneiro, surpresa: tinha escapulido, desaparecendo no cerrado ralo. Ficaram otimistas, pois o danado estava muito bem atado. Nada nunca encontraram, a não ser as correias debaixo do carro. Correram, campearam os arredores, até a mata cerrada que começava perto esmiuçaram. Nada. Escafedera. Nunca mais se soube do escravo.

Desde então, o córrego e, depois, o bairro, ficaram conhecidos pelo nome de Córrego do Negro, que perdura até nossos dias. Os antigos moradores juram que o fujão, no mínimo, tinha um pacto com o Coisa Ruim.

O CARRO ASSOMBRADO
(Compilação de Horácio Ramalho)

A Fazenda São Domingos empregara, lá pelos idos de 1915, um trabalhador que já estivera nas guerras da Itália e ficara alterado das faculdades mentais.

Era chamado de Rafaelão por sua desmesurada altura. Arredio, falava sozinho, resmungando com voz gaga, entrecortada, grossa e cava. Ninguém queria graça com ele, receavam-no, apesar que quando tentavam o diálogo ou brincadeira, o homenzarrão mais se retraisse. Um dia, como sempre ninguém sabe por quê, Rafaelão pegou um revólver e ao ver passar o preto-velho de nome Maceió, gritou:

-Maceió! Se aprepara, peste! Vou te matar! E atirou mesmo, ferindo-o no braço. Maceió correu para a sede da fazenda procurando o patrão José Ramalho. Este mandou-o tratar e avisar a polícia. No mesmo dia, o sargento do destacamento veio em pessoa para prender o Rafaelão que desaparecera na invernada. Bulha que te bulha, o sargento o acurralou num resto de mata, lá em cima de um pé-de-pau. Deu-lhe voz de prisão. Veio um mundo de bala de volta. Tiro vai, tiro vem, Rafaelão acabou tombando, morto de fuzil Mauser, antes de bater no chão.

Foi um deus-nos-acuda. José Ramalho mandou um carro de boi buscar o cadáver para levar à cidade. O carreiro foi, fez e voltou, chegando tarde da noite, meio assustado com a carga que transportara. Seu carro sempre fora un dos melhores cantadores da fazenda, de tom baixo, melodioso, contínuo, com o que os bois andavam cadenciados, no passo certo, sem desmandos ou estropelias Ouvia-se de léguas, sendo por todos admirado.

Pois bem: diziam os carreiros e passou-se de geração a geração, que depois dessa viagem funerária tudo mudara... E faziam o diabo para não ter de usar esse carro de boi. Sem motivo concreto, ele, que pelas estradas nunca deixara de encantar com o canto firme, continuado, grave e harmonioso, até em bacada bruta, passara a resmungar baixo, entrecortado, gago, um canto grosso resmungado, parecido com o monólogo desvairado do Rafaelão.

PROMESSA DE CARREIRO
(Causo de Benedito Castilho, fazendeiro e carreiro de Santa Adélia).

Pra falar a verdade, nessa longa vida de carreiro, nunca vi coisa assim esquisita, que a gente pudesse gabar-se de ter visto, difícil de a gente contar. Pois, nossa lida de antanho era porfia dura: sol, chuva, caminhos ruins, a tripas roncando de fome, noites desdormidas encima de um couro cru, debaixo do mesão do carro, isso era pão-nosso-de-cada- dia...

Comecei a gatinhar por debaixo de eixo, aprumei pegando nos cambão andei tentando pegar cabeçaio. Puro mal de família, coisa no sangue. Pai carreiro carreiro o avô...

Mas o Vô, o véio Zé Bento, aquele tinha muito do que contar, vivo fosse. Despachado na vida, era homem sem cisma nem querência, mas de pura serventia, existência passada num cabeçalho de carro, escuitando vida afora o canto do chumaços, das cantadeiras se esparramando pelo sertão do nosso Brasil. Muita estrada veio nos picadão por ele cortado nas matas virgens.

Homem inteiro, curtido na lixa dura do oficio... Se gostava da minha avó, disso não afirmo nem descontrario, mas o carro e a boiada, aí sim, posso jurar. Fez de meu pai outro mestre carreiro, a custa de muita sova de ajoujo, mas fez. E o que é de raça, corre e caça!

O pai, que Deus o tenha em sua graça, contava que só com dez anos, cangava os bois de cabeçalho, com doze pegou o gado no meio de uma quiçada e aviou o carro que estava especado na beira duma estrada carregado de telha, sozinho de sozinho... Se não acreditar, não me enfado, nem fico desenxabido, mas vou contar: 'tavam meu pai e meu avô carreando telha para um coronel. Eram três dias puxados de caminho ruim. No meio tinha um riacho que corria por um barreal preto, formando um tijuco danado para atolar. Pr'a escorar as rodas, só tinha ali macaúba, era um descampado de sapezeiro de sumir de vista, não se achava nem uma vara para matar uma cobra. Eles fez um estivado de macaúba, mas quando o carro já ia terminando de passar, uma lasca se rebentou e o carro atolou até o eixo, por sorte os bois já 'tavam no seco.

O Vô mandou meu pai chamar a guia na reta, e quando as cinco juntas alinharam, bateu a vara de ferrão cantando as argolas e chamou os nomes dos bois da linha de chave. Que eram os turunas deles todos...

O carro arrancou bonito mas, ao sair, os bois da contra-chave e coice falsearam, e os quatro canzis da chave quebraram. O Vô desatou um balaio de palavrão, pois se o pior tinha passado, ele só tinha um par de canzis novos.

Ruminou lá duas idéias, colocou os canzis que tinha num dos bois, tirou outro par dum guia e pôs no outro da chave. Mas ainda era muito peso, não dava para seguir só com oito bois.

E o Véio Bento, então, decidido, arrancou o facão e partiu firme para a cruz de Nhô Inácio, ali pertinho, bem na beira da estrada.

- Não, pai! Isso é pecado!

- Pecado porcaria nenhuma! Pecado é deixá boi assando nesse solão... E a gente tem de andar mais de légua para achar um mato e tirar um pau...

Desfez a cruz, usou os braços para substituir os canzis, e lá foram. E légua e tanto depois, chegaram à beira da mata, coisa de fazer medo. Soltaram os bois na várzea, enquanto meu pai esquentava a matula meu avô entrou no mato, tirou um par de canzis de perobinha e os pôs no lugar do outro, feito com a madeira da cruz.

Ia jogar no foguinho que esquentava a comida, mas vai saber se por respeito, que medo de nada ele não conhecia, vai saber se por lembrança, pendurou os paus da cruz com brocha e tudo num fueiro do carro.

E veio a noite, noitão de beira de matão imenso, lerda e preguiçosa, imensa de escura e negra só para um menino. Tinha todos os barulhos da noite no boqueirão, até que de repente um silêncio esbarrou no tempo, se escancarou na boca da mata. O Vô e meu pai, ali, de olho estalado, debaixo do carro, num sono que não vinha, nem veio.

Inté que a mataria alumiou, como nasce um dia, porque a lua, no seu terceiro dia de cheia, subia no lombo do arvoredo, luz branca e fria. E meu pai a desfiar idéias, entre o piado triste do curiango e o agoureio da coruja, um que outro gemido denso do mutum lá no fundo dos confins...

Ninguém despregava o olho da estrada. Não careceu de muito tempo. Com a voz entalada e tremendo, o pai gaguejou pr'a o Vô:

-Pai! Laivem ele...

-Quem?

-O Nhô Inácio, pai...

-Fecha os zóio e faz que 'tá drumindo!

Não fez, mesmo! Arrepiado que nem gato do mato na ribanceira, dentes castanhando, viu o vulto vir até o carro, tirar os canzis do fueiro e zarpar estrada afora. Ficou vendo, longe, os canzis bamboleando nas brochas, quando batiam nas pernas compridas de Nhô Inácio. Prá não dizer, o resto da noite foi só cochiladas, sacudões de medo...

Quando a lua faltava coisa de légua pr'a descambar pró outro lado do mundo, o Vô levantou, mastigou um pedaço de rapadura, acendeu um cigarro de palha, pegou o facão e disse pr'o pai:

-Quando o dia sair, pegue os bois, vai fazendo o que puder até eu voltar!

E foi pr'o mato, cortou um pau e tirou uma rodilha de cipó e foi de volta. Meu pai fez tudo talqualzinho, cangou guia, chave e coice, arrumou toda a tralha e esperou até que o Vô chegasse.

Ao menos ficou ficou sabendo que já era, de verdade, um carreiro.Tinha tangido, cangado e atrelado todas as juntas com perfeição, feito veterano. O Vô voltou, assuntou, fez "Hum!" e nunca falaram mais disso, menos ainda da assombração.

De aí, e por muito tempo depois, o povo que passava pela cruz de Nhô Inácio e via os canzis balançando, quando o vento soprava, no braço da cruz de guatambu amarrada com cipó, nunca supunha que o defunto é que tinha ido buscar, no meio da noite, quase matando meu pai de susto. O Vô, tenho certeza, sequer tremeu na pele dele.

Ficavam pensando que era promessa de carreiro, dessas acontecidas em hora de desastre ou desgraceira ruim, dessas difícil de pagar.

COISA FEITA
(causo verdade-verdadeiro sobre sobre meu pai, o Jayme Venâncio Martins.)

Caboclinho calado e magricela, moleque danado posto no eito desde os nove como nos conformes de então e nas lidas da roça, candieiro já quase um carreiro,  arrastou-se feito cobra entre as taboas do alagado, caçando o vozerio. Falavam arrastado em italianado brasileiro, rindo muito. Assunto? Daí ferveu o sangue: os labrostes falavam de sua mãe, imigrante italiana que, depois de doze filhos, ainda era faceira. O pai, que já fora ilustre nos tempos fartos do café e ia e vinha ao Porto de Santos negociar colheitas na rama, caíra em desgraça por preferir a linda taninha, de treze anos e analfabeta, a uma prima troncha e ilustrada, para garantia das posses da família. Deram-lhe um carro de boi, um pedaço de terra e o banimento; e um desapego que o acompanhou por vida.

Levavam espingardas e o carcamano debochado e falador, dono da única venda da região, duas garruchas 44 tauxiadas de prata, na cinta. A fúria se aguentou no freio, escorregou feito caxingui e saiu do risco. Subiu, depois da mata, a estrada esburacada e pedregosa, já nas terras do pai. Parou na capelinha e caldeou jura de morte. Não lhe dissera, o velho Aquiles - jagunço que fora pé-de-tronco de Dioguinho nos fins dos oitocentos e que lhe fizera a mão nas armas, que mãe era coisa sagrada? Foi a passo, o sol queimando as costas, aquecendo venenos. Sábado, estavam todos no descanso e preparando o terço. Entrou quieto e saiu calado, a papo-amarelo de esguelha já carregada e o resto da munição no embornal. Pegou o burro Sereno - que burro não dá incerteza - no cabresto, pulou encima em pelo e refez a trilha, a passo.

Desceu fino ante as seis portas da venda, o debochado e a caterva riam no balcão. Chegou manso, cabeça baixa e olhando de lado, de repente falou o nome do sujeito e perguntou que é que estava falando da mãe. Do riso fez-se silêncio de pegar com a mão. Antes de ouvir o “- Que é que tá dizendo, moleque!” - já pipocou o primeiro tiro que torou a ponta da orelha do fulano e botou, eram uns cinco ou seis, os basbaques em correria. E foi a carga toda, menos duas balas, arrebentando garrafas, arrancando trens das prateleiras e, a última, quando o carcamano pulou a janela do fundo, tirou-lhe lasca da bunda. Com duas, ainda tinha de quê se valer no recuo, se acossado, aprendera com o padrinho, o Aquiles Grande. Saiu devagarinho, solerte, metendo mais munição na carabina. Por todo lado, ninguém. Escafederam.

Chegou em casa na toada em que foi. Na cozinha, pegou os apetrechos do pai e limpou a cortadeira, cuidadosa e concentradamente. A mãe veio e perguntou que diabos andava fazendo com a carabina, no seu sotaque siciliano arrastado e o vestido de terço azul, de golinha e florezinhas fru-fuzando. Disse que só fora afinar a mira, que depois falava com o pai. Veio este, alarmado e bufando. Saíram ao pátio de secar café e contou-lhe os fatos da coisa feita, curto e certeiro. O homem tropicou nos cascos. Parando de xingar, olhou duro o moleque nos olhos, segurando-o pelos ombros e sacudindo:

- Fiadaputa! Cabeça de mula! Por que não me disse antes de armar essa desgraçeira? Eu é que tenho de resolver isso! Por que?
- Porque se o senhor vai, aí ‘tava o boi no chão... Ia e matava. Não tinha senão...
- Senão? Que bosta de senão, seu besta?!
- Daí a mãe ficava sem marido e nós sem pai. Eu sei onde atiro. Eu sumindo, é boca de menos e a família segue sem mais... Mas dá em nada, pai, esse se mete no cu do mundo e nunca mais fala da mãe de ninguém. É um cagão, pai, vai ter outra vez não...

Levou um chacoalhão, sonoro cascudo na cabeça e sapatão na bunda, a ordem de arrumar uma trouxa de roupas, pegar o Sereno e amoitar-se, uns tempos, na distante Lagoa Preta, na casa dos parentes. Lá ainda mantinham, naquele primeiro quarto de século, jagunços e arsenal. Foi. Um tempo, e voltaria carreiro feito, herói da mãe, cisma do pai e orgulho do Aquiles Grande, o último dos trabuqueiros. O carcamano sumira e, diz quem conta, estaria correndo até hoje c'os carcanho batendo na bunda, no Inferno, e o Tinhoso cascando-lhe fogo no rabo.

9. A Comida dos Carreiros

A matula que os carreiros levavam nas viagens tinha, quase sempre, virado de feijão, arroz, carne de porco, torresmo, jabá, quiabo, giló ou xuxu. Levavam num caldeirãozinho, no mais das vezes embrulhado num pano de algodão. Também faziam parte a rapadura, o café e o "mata-bicho", a cachaça.

Nos percursos longos, preparavam a comida na beira do caminho, de preferência perto de algum riacho. Para isso, levavam o tripé de madeira ou ferro, onde penduravam as vasilhas sobre o fogo para cozinhar os alimentos. Acontecia também cozinharem com o caldeirão preso num arame ao argolão debaixo da mesa do carro, principalmente quando chovia. Faziam também uma bebida que chamavam de "jucuba", que era o melaço ou a rapadura misturados com água. Era coisa antiga, usada nos últimos quartéis do século passado e começo do presente , que faz muito tempo que sumiu da zona rural.

10. Receitas diversas

ARROZ DE CARRETEIRO
(Fornecida por Dona Terezinha Benavente)

Ingredientes:
250 g de arroz
350 g de carne seca
2 colheres de sopa de óleo, ou banha de torresmo, ou de toucinho defumado
1 cebola (melhor roxa) bem picada
2 dentes de alho socados
2 colheres de sopa de torresmo miúdo
pimenta vermelha, pimenta do reino e sal
uma folha de louro.

Modo de fazer:
Deixar a carne seca de molho em água fria umas 10 horas, ou "de véspera". Então retire a carne da água, escorra bem até ficar enxuta. Corte-a em pedacinhos, refogando-a a seguir em óleo bem quente (ou gordura de torresmo, ou do toucinho defumado). Junte com a cebola bem picada, o alho socado, a folha de louro, a pimenta vermelha e do reino a gosto. Adicione água aos poucos e deixe cozinhar até a carne ficar bem macia.
Escolha e lave o arroz. Quando a carne seca estiver cozida, acrescente o arroz já limpo e o torresmo miúdo, cubra tudo com água e deixe cozinhar em fogo moderado, até o arroz ficar no ponto. Prove para temperar o sal.
Se quiser, acrescente pimentão verde, tomate, pimenta malagueta. É prato para servir bem quente, e muito fácil de fazer. Imaginem que os carreiros o cozinhavam nas paradas, num caldeirão pendurado num tripé ou no argolão do carro de boi.

FEIJÃO TROPEIRO ESPECIAL
(Receita fornecida por Dona Avelina Tortorello)

Ingredientes:
2 pratos fundos de feijão bem cozido, sem amassar, temperado com salsa, cebolinha, cebola, pimentas, sal, azeitonas picadas, quatro tomates picadinhos sem semente. Refogar e deixar reservado.
À parte: fritar toucinho defumado, misturar 2 colheres de margarina e adicionar sal. Fazer uma farofa com 1/2 kg de farinha de mandioca torrada, bem solta.
À parte: cozinhar, na água, 3 lingüiças calabresas grandes. Cortar em rodelinhas. fazer um molhinho fraco de tomate, cebola, óleo, cheiro verde e misturar as rodelinhas de lingüiça.

Modo de preparar:

1 camada de farofa
1 camada de feijão temperado
1 camada de lingüiça calabresa com molho
Azeitonas e rodelas de ovos cozidos
Repetir até acabar. Terminar com azeitonas, lingüiça e rodelas de ovos. Servir
assim, não vai ao forno e nem ao fogo. Servir com arroz branco, lombo e salada de alface.

ARROZ DE CARRETEIRO

(Receita enviada por Dona Bárbara Lima)

A quantidade é pra 6 pessoas comerem e repetirem.
Ingredientes:
1 k de carne seca
alho
cebola
sal: cuidado, melhor pôr ou não depois de provar o arroz enquanto ferve.

Modo de fazer:Escaldar 2 vezes a carne seca e depois picar em quadrados colocar alho e cebola à vontade, e dourar ligeiramente.
Acrescentar a carne seca e ir dando uma mexida por uns 10 minutos.
Colocar água aos poucos pra carne seca cozinhar. Leva mais ou menos uma hora e meia até ficar macia.
Acrescentar na mesma panela da carne seca 4 xícaras de arroz e colocar água - umas 10 xícaras de água.
Enquanto o arroz vai secando no fogo baixo, adicionar queijo parmesão ralado à vontade e esperar que seque mais um pouco. O arroz não deve ficar soltinho não - fica molhadinho mesmo. Daí é só comer.
Tem gente que inventa e coloca linguiça e outros temperos mas o autêntico arroz de carreteiro é sem frescuras - ora, se é de carreteiro é pra ser sem frescura, mesmo. E tenho dito!

COCADA CAIPIRA
(Fornecida por Gracinha Pinheiro)

Ingredientes:
1 coco ralado
1 kg de açúcar
1 xícara de água

Modo de fazer:
Rale o coco, tire o leite grosso e reserve-o. Ponha o açúcar para caramelar. Ponha a água, deixe ferver um pouco e ponha o coco ralado. Deixe secar, mexendo sempre. Ponha o leite que tirou do coco e deixe dar o ponto. A cocada fica escurinha. O açúcar deve ser caramelado, mas não deixe queimar, senão amarga.

BOLO DE FUBÁ
(Fornecida por Dona Terezinha Benavente)

Ingredientes:
1 xícara de chá de farinha de trigo
2 xícaras de fubá
1 xícara de açúcar
1 colher de sopa de fermento em pó
1 xícara de chá de óleo
3 ovos inteiros
1 xícara e mais um pouquinho de água quente,
Pitadas de erva doce

Modo de fazer:
Num recipiente, coloca-se a farinha, o fubá, o açúcar, o fermento e mistura-se muito bem, acrescentando-se os ovos inteiros e o óleo , sempre mexendo bem com colher de pau. Por último, coloca-se a água e a erva doce , mexendo até ficar bem homogêneo. Unta-se a forma de orifício com óleo e farinha, leva-se ao forno aquecido a 180º C por cinco minutos, depois abaixe e deixe no fogo brando. Dependendo do tempo, fica mais escuro ou mais claro. Em geral, são necessários 30 minutos.

CURAU DE MILHO VERDE
(Fornecida por Dona Avelina Tortorello)

Ingredientes:
13 espigas grandes de milho verde
1 litro de leite
1 colher rasa de manteiga
Açúcar a gosto
Canela em pó (opcional)

Modo de fazer:
Corte as espigas, debulhe com faca, limpando bem o sabugo, inclusive lavando-o com o leite que será usado. Bata os grãos no liqüidificador, juntando o leite aos poucos. Passe por peneira fina, ponha o açúcar, a manteiga e leve ao fogo mexendo sempre, de preferência com uma colher de pau, para não encaroçar, até que o mingau fique com boa consistência. Retire do fogo e despeje numa travessa de vidro ou louça, ou então em tacinhas, que devem ser molhadas antes. Se preferir, espalhe a canela em pó levemente em cima.

LICOR DE JABUTICABA
(Fornecida por Dona Terezinha Benavente)

Ingredientes:
1 kg de jabuticabas
1 kg de açúcar
1 litro de álcool de cereais 40º
1 litro de água
1 pedaço de casca de canela e 2 cravos da índia

Modo de fazer:
Esmague bem as jabuticabas numa vasilha de louça ou vidro, junte o cravo, a canela e o álcool. Tampe bem a vasilha, e deixe ficar por 14 dias. mexendo uma vez por dia com uma colher de pau.
No 13º dia, adicione a metade do açúcar e a metade da água, com a outra metade faça uma calda densa, espere esfriar e adicione aos outros ingredientes. Deixe descansar por mais 14 dias.
Ponha em garrafas bem fechadas, de preferência escuras e guarde em lugar seco, fresco e protegido da luz. Quanto mais tempo ficar assim, melhor será o licor.

LICOR DE JENIPAPO
(Fornecida por Dona Judith Zampronha)

Ingredientes:

7 jenipapos médios maduros
1 litro de álcool de cereais ou cachaça de qualidade
7 xícaras de açúcar
4 xícaras de água

Modo de Preparar:
Lave os jenipapos, descasque e corte bem miúdo. Em seguida, ponha em infusão no álcool ou cachaça durante 15 dias. Depois, esprema bem numa vasilha. Prepare uma calda rala com o açúcar e, ainda quente, despeje na infusão de jenipapo. Mexa bem e deixe esfriar numa panela esmaltada.
Engarrafe e deixe um mês ou dois para coar num pano e, depois, numa flanela. Deixe descansar novamente dois meses, volte a coar na flanela e, ainda, no papel de filtrar.
É sempre preferível guardar o licor num lugar seco e em garrafa escura. Na hora de servir, pode-se passá-lo para a licoreira. Dependendo da qualidade, o licor de jenipapo fica mais gostoso com cachaça, em vez de álcool.



11 - Nomenclatura

- Agulhamento ou rosário - pequenos botões metálicos, arredondados ou ponteagudos, colocados circularmente nas rodas, para enfeite.
- Ajoujo ou soga - cordão de couro cru colocado em argolas nos chifres dos bois de uma mesma parelha, para uni-los, e evitar que escapem em caso da quebra eventual de um canzil.
- Almofada da roda - parte central da roda, de forma quadrada, tendo uma espessura maior que o resto da roda. Tem em seu centro a amecha ou buraco da roda.
- Amecha ou buraco da roda - buraco na parte central da roda que é prensado na ponta da espiga do eixo da roda.Tem secção quadrada e perfil cônico. A roda é travada no eixo por meio de duas cavilhas, também cônicas.
- Arreia - espiga de madeira, de secção retangular e de perfil cônico, servindo para travar partes do carro, como na roda e na mesa.
- Assoalho do carro ou mesa - Base do carro onde é transportada a carga. É constituida pelas chedas, cabeçalho e tábuas do assoalho.
- Azeiteiro - chifre de boi com tampa feita de couro, onde é guardado o azeite de mamona, utilizado para lubrificar a cantadeira. O azeite é aplicado com um pincel que fica ao lado ou dentro do azeiteiro.
- Abraçadeira - peça de metal utilizada para travar as chedas e o cabeçalho, bem na frente da mesa.
- Brocha - peça feita de couro cru torcido utilizada para prender a cabeça do boi entre os canzis.
- Cabeçalho - peça central do carro e que une as partes constituintes da mesa. Vai da chaveta ao cadião, tendo em média de 4,5 a 5 metros de comprimento.
- Cadião ou recavém - prancha transversal de madeira, situada na parte traseira do carro e que une as chedas.
- Cambota - peça semi circular de madeira. Cada roda tem duas cambotas e um meião.
- Candieiro - geralmente é um menino que vai a frente do carro,conduzindo os bois da parelha de guia. É um aprendiz de carreiro.
- Canga de coice - peça de madeira que serve para manter a parelha de bois unidas ao carro. Esta canga é utilizada pelos bois que vão junto ao cabeçalho e que são os responsáveis por suportar o peso nas descidas íngremes e manobras do carro.
- Canga de guia - peça mais leve que é utilizada pelos bois encarregados de ir à frente, dirigindo os outros bois.
- Canga de meio - canga leve utilizadas nas parelhas que vão entre os bois de coice e de guia.
- Cantadeira - parte do eixo de secção circular e que fica em contato com o chumaço.Esta dupla, presa entre os cocões, é responsável pelo canto melodioso do carro de boi.
- Canzil - peça de madeira de perfil curvo que é colocado na canga para prender a parelha de bois. Cada canga tem 4 canzis, dois para cada boi.
- Carniço - tampa traseira de bambu que fecha a esteira ou canistro.
- Carreiro - pessoa que conduz o carro de boi carregando a vara de ferrão. Vai ao lado ou em cima do carro.
- Cavilha, cavia ou cabia - pequena peça de secção circular ou triangular e que serve para travar peças de madeira que se unem nas várias partes do carro.
- Chapa de pião - aro metálico que circunda cada roda e que tem por função proteger a roda. Tem os piões, que são grandes pregos que atravessam o aro e a madeira. Com isto ajudam na tração do carro em lugares escorregadios.
- Chapa lisa - o mesmo aro metálico, só que sem os piões. O uso de um ou outro tipo varia de região para região.
- Chaveta ou chaveia - peça de metal que prende a canga da parelha de coice através do tamoeiro ao cabeçalho, impedindo seu movimento para a frente.
- Cheda - peças laterais de madeira que compõem a mesa do carro. As de boa qualidade são feitas de pranchas tiradas de árvores naturalmente tortas, com a curvatura necessária para a confecção da cheda, dando-lhe com isto muito maior resistência, pois a veia da madeira acompanha a curvatura da cheda.
- Chumaço - peça de madeira semi circular de madeira mais mole que a cantadeira e que juntas fazem o carro cantar e ringir.
- Cocões - peças de madeira em número de duas em cada lado da mesa e que se ajustam ao eixo do carro (nas cantadeiras), para que o carro possa ter tração
- Degolo do oitavado - o eixo do carro é oitavado e a parte que fica entre as duas emborgueiras tem um estreitamento, que é chamado de degolo do oitavado.
- Eixo do carro - peça muito importante da transmissão do carro. É unido às rodas e ao mesmo tempo a mesa do carro. É uma peça única, normalmente feita de cabreúva e suas partes estão descritas acima.
- Emborgueira ou morgueira - peça oitavada que fica de cada lado da cantadeira, cerca de três centímetros mais alta. Com isto impossilita a saída dos cocões de cima e também o deslizamento lateral.
- Encosto do cocão - peça de ferro colocada ao lado dos cocões e que tem por finalidade impedir que com o esforço e peso do carro os cocões se abram, prejudicando o andar e segurança do carro.
- Espigas ou ponta do eixo - são as duas extremidades do eixo onde as rodas são colocadas. Tem secção quadrada e perfil cônico para travar as rodas, que também tem amechas quadradas e cônicas.
- Esteira ou canistro - esteira de bambu com cerca de um metro de altura e que circunda a mesa do carro para o transporte de carga miúda, como milho, madeira, etc. A altura varia de acordo com o tamanho do carro.
- Fueiro - peças de madeira roliça com dimensão aproximada de um metro e que são colocados verticalmente ao redor da mesa para amparar a esteira ou a carga transportada.
- Furas das chedas - são os furos nas chedas onde são colocados os cocões.
- Furas dos fueiros - são os furos nas chedas onde são colocados os fueiros.
- Gato - peças de metal colocadas nas almofadas das rodas, transversalmente à veia da madeira para fortalecer a resistência da roda, enfraquecida pela presença da amecha.
- Inervação de canga - recobrimento por couro cru feito em cangas fraturadas, enfraquecidas por trincas ou até por enfeite.
- Meia lua - parte semicircular do cabeçalho que está em contato com o cadião.
- Meião - peça central da roda, de forma retangular e que junto com as duas cambotas, compõe a roda do carro.
- Olho, óculos ou oca - orifício situado nos limites entre o meião e a cambota e que tem por função amplificar o ringir dos cocões. Varia de forma e posição na roda de região para região. Observe que a linha que passa pelas ocas de uma roda é necessariamente perpendicular à linha que passa pelas ocas das outra roda.
- Orelha - peça de madeira colocada na ponta do cabeçalho logo atrás da chaveta e que tem por função impedir o deslizamento da canga para trás.
- Pião - prego metálico utilizado nos aros das rodas por alguns fabricantes de carro. Neste caso muitas vezes o aro não é soldado, sendo apenas superposto na emenda. Quem dá a resistência são piões.
- Pigarro - Suporte vertical, semelhante a um canzil que era colocado na parte dianteira do cabeçalho para que este não ficasse apoiado no chão quando os bois eram retirados do carro, ao fim do dia. Não é muito usado em Minas Gerais.
- Pincel - peça utilizada para espalhar o azeite de mamona na cantadeira. Fica junto ou dentro da azeiteira.
- Tiradeira ou cambão - peça comprida de madeira, com secção quadrada e que serve para unir uma parelha a seguinte: na parte da frente tem a chaveta e na traseira uma rabada, que é um trançado de couro para prender uma parelha à seguinte.
 - Tamoeiro - peça de couro cru, colocado no centro da canga e que tem por função prender a canga à chaveta da tiradeira ou cabeçalho.
- Vara de ferrão - vara com um ferrão e argolas que o carreiro utiliza para conduzir o carro. As argolas com seu tilintar são suficientes para os bois entenderem as ordens, mas quando necessário levam umas fisgadas com o ferrão. Diz que carreiro bão não usa o ferro, só o barulho das argolas...


Saideira...
Bão, é isso aí... 'tá contado um pouco da história, coisa pequitica de quem ama o sertão. Tem gente tratando de manter a tradição, os causos e as estórias, procurando se encontra. Mas, como se dizia nos antigamentes, "segura na cangaia que a coisa tá feia..." Das madeiras utilizadas na construção do carro de boi, praticamente todas se acabaram... Se encontra um pé de pau aqui, outro acolá, nas reservas e em poucas terras de gente consciente que não exterminou as matas, com elas os bichos, restando só as lembranças e as tradições.
Bicho-gente é perigoso... 'Caba com tudo, até com ele mesmo. Daí que o tal progresso assentado na ganância é, na verdade, o maior inimigo da Vida no planeta. Evoluir significa preservar e cuidar, zelar e proteger. A tradição do carro de boi tem de ser assim tratada, bem como o que resta da Natureza original, porque são valores da nossa memória, da nossa identidade como povo e nação... Povo sem memória é povo sem história. Povo sem história é povo sem identidade. Povo sem identidade é povo sem liberdade.

Autoria, compilação e edição: Caio Venâncio Martins
Edição: gráfica Romus Artes Gráficas/setembro de 1997 - para a 8ª Festa do Peão de Boiadeiro de São Caetano do Sul - (esgotada).
Base da publicação: “O Carro de Boi” - Monografia do prof. Horácio Ramalho.


Solicitamos, a quem reproduzir, que respeite a autoria. Encontramos, em alguns sites, plágios descarados deste livro. Não é ético, é imoral e criminoso. Nada a obstar às citações honestas, que mencionem autoria e fonte. Tudo a combater contra "vampiros" e "sanguessugas" que se aproveitam do trabalho alheio. Esta é uma causa de todo escritor honesto e leitor consciente.


8 comentários:

  1. Caio, não me processa não, porque faço um arroz de carreteiro fenomenal.
    Sim - ouvi carro de boi em 1963 em Raposo um lugar que acho que fica na divisa de RJ com ES. Eu era menina e fiquei encantada mas não tanto quanto o que aprendi e viajei por aqui.
    Só faltou o tio Barnabé.
    Eu queria uma vida assim ah eu queria sim.
    Um presentão essa postagem, obrigada.

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  2. Cláudio , obrigadão pelo apoio. Apanhamos muito do Illustrator para produzir a capa. Mas pode deixar, não passará batido. Tem leis para isso.

    Bárbara, pode mandar a receita que publico na hora aqui. Depois sairá na segunda edição ampliada e revisada, que estou preparando.
    Você entende o sertão! Muito bom, isso. E presentão é a sua visita, obrigadão.

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  3. que ainda se preze a criatividade e o talento de quem pode escrever assim. todo o meu apoio.

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  4. Liih*, muito obrigado. Como você sempre diz, dá mais força para continuarmos no ofício. Admiro quem tem luz própria como você, daí a repugnância que me causam plagiadores.

    Meter a boca no trombone não acaba com eles, mas ajuda.

    Beijos, piazinha. Novamente, grato por seu apoio.

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  5. Um capítulo à parte.

    Lendo o texto na íntegra, cheguei às últimas linhas e voltei no tempo com o licor de jenipapo. Se hoje Dona Judith estivesse aqui, com certeza teríamos um livro ilustrado riquíssimo de receitas assinado por ela.
    Lembrei de um diálogo de infância que gostaria de postar. Era uma manhã de dezembro, meados dos anos 80, Nova Granada, e o sol irradiava intenso.
    Dona Judith decidira buscar jenipapos na fazenda do Joãozinho Sanches e me chamou para acompanhá-la. Entramos no fusca azul escuro, aquele que carregou gerações, cujas lembranças nunca se esvairão, então, numa curiosidade espontânea de qualquer criança dos seus seis anos comecei:
    - Aonde vamos?
    - Na fazenda do Joãozinho buscar jenipapos.
    - Tia, jenipapo se escreve com “g” ou com “j”?
    - Com “j”.
    - E por que você não vende?
    - Porque esse é especial.
    - Como assim?
    Deu de omros e respondeu com os olhos brilhando:
    - Ele fará parte da ceia de Natal.

    Como fazia em grandes quantidades, como toda boa cozinheira, deixava reservado em vários vidros.
    “Esse é para Adília e o Tonelli, esse para os compadres ‘Família Trindade’, e para prima Marcelina.”
    E enquanto dirigia pude observar o quanto sentia orgulho. Quem conheceu a Dona Judith sabe que o maior prazer dela era estar entre os entes seus. Muita criança, a casa cheia, boa música e um tilintar de pequenas taças mesmo contendo licor de jenipapo e suco de caju apanhado do cajueiro lá do quintal. Tinha choro fácil, riso largo. Só depois de adulta compreendi o motivo pelo qual queria manter a casa de Granada. Era um elo entre a satisfação de unir todos os familiares, os amigos que lá moravam, a infância que ali ficou e a vontade de guardar tudo na Rua Adolfo Rodrigues.
    Só quem viveu sabe. Tive um pouco desse privilégio. Um pouco que é muito e que nunca seria suficiente.

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  6. Lendo o texto voltei ao passado lembrando da união das Familias Zampronha; Trindade e Bonfim realmente aproveitamos bem as reuniões nas Casas das nossas Eternas Dona Judith e Tia Rosinha e também nas casas das minhas avós Maria e Isabel. Pricipalmente nas férias e finais de ano era uma verdadeira festa casas cheias crianças e adultos sempre reunidos a mesa para o famoso café da tarde onde se reunia adultos e crianças ... Saudades daqueles tempos e de todos ..

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  7. Aracéli2/4/12 13:03

    Tem que sair em livro, porque aquela edição esgotou e mais gente precisa ler. Tenho um palpite de que será ainda neste ano!

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    1. Aracéli, nisso andamos. A primeira vez que vi um trem desses - eu teria uns seis anos - foi no sítio do Vô Paulino, e foi paixão à primeira vista. São, via de regra, obras de arte.
      A sugestão para escrever foi do Luiz Olinto Tortorello, para a 8ª Festa do Peão de Boiadeiro em São Caetano do Sul, e dez mil exemplares se esgotaram em alguns dias. Vou"despenar" o projeto sim, ainda este ano.
      Aguardo fotos de alguns cultuadores da tradição, para ilustrar melhor o livreto. Não chegando, terei de viajar pro sertão e fotografar o que necessito. Beijos, maninha!

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Na busca da excelência aprende-se mais com os inimigos que com os amigos. Estes festejam todas nossas besteiras e involuímos. Aqueles, criticam até nossos melhores acertos e nos superamos.

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