Caio Martins

Não tinha tempo para recriminar-se. Quando ocorre o desconhecido, há que buscar o que se conhece. Num lance entre pedras, já bem acima, viu o caminhão e um carro chegando, os homens saindo de armas na mão. Um deles levava uma carabina. Olharam ao redor, encontraram o rastro, dois ficaram e cinco vieram atrás. No trecho a mata se adensava, havia uma trilha. Desfez, nela, suas marcas com um ramo e meteu-se nas brenhas. Não brigava com as plantas e o terreno: deslizava entre eles.
Sempre para cima, sabia que tinha poucas horas até o fim do dia. A cada fio d’água, bebia o que podia. Avançava devagar, precavido. O perigo maior era uma coral, uma jararaca, jaracuçu, escorpião, correição de formiga, um ninho de quenquém rajada, bichos. Conhecia bem as matas e nada temia, estava em casa. Empurra daqui, rasteja dali, desvia do outro lado, volta e contorna, vai ganhando terreno. Para em intervalos, ouvidos atentos, olhos fechados. Só havia o canto dos pássaros e o zumbido dos insetos. Tinham-lhe perdido o rastro.
Num trecho denso, encontrou a raridade de um jequitibá esguio e muito alto, coberto de cipós desde o topo. Atou as tralhas, buscou o caminho e alcançou a copa, já morrendo o dia. Vistoriou e não havia vizinhos perigosos. Amarrou-se pela cintura e em três pontos dos galhos, o tapete por baixo de encosto, testou o esquema e aprovou. Já passara o medo, o susto. A questão era o porquê. Remexeu cada dia da vida, durante a noite, buscando algum erro, injustiça ou atitude que merecesse ser punida com morte. Nada. Muito longe, clarões denunciavam cidades.
Acordou com a passarada, fim de madrugada fria, mijou no tronco, tirou insetos das roupas. Ali, ele era a comida. Tremia um pouco, ao descer, meio dolorido. No lusco-fusco, acertou o rumo pelo clarão do sol, seguiu noroeste em marcha batida. Ouvia, de muito longe, um rumor permanente. Devia ser a rodovia. Viu um canudo curto saindo de um tronco e comemorou: abelha jataí. A chave de roda foi providencial. À frente, cortou um palmito, achou larva de pau, depois um fio d’água. Fartou-se. Deu graças ao sargento que queria matar, quando no exército.
Meio do dia, ajeitou o tapete num claro e deitou-se. O ruído da rodovia, próxima, o incitava a apressar a caminhada, a razão mandava esperar. Vendo um pedaço de céu, ouvindo o barulho do vento e, de repente, como se lhe caísse um galho na cabeça, atinou: a morena. Há dois dias parara num posto, na barraca de caldo de cana estava a moça linda, que com ele se encantara; pegara um quarto na pousada dos caminhoneiros e, lá, fora a noite de delícias. Ela pouco sabia das coisas. Seriam os irmãos, o pai, namorado, vai saber.
Andou, durante a noite, vários quilômetros até chegar a uma cidade. Lavou-se no posto, comeu, comprou uma mochila, alguns equipamentos úteis e comida em lata. Fez caminho contrário na pressa, de manhãzinha já tocaiava. Conta ao moço da cidade, rindo das memórias de tanto tempo, que, no momento certo, achegou-se ao balcão. Atrás, a morena triste. Fora surrada. Ela confirma, diz que largou tudo e, com extrema cautela, pegaram a estrada do nada para lugar nenhum e sumiram no mato.
(apiaí - dezembro de 1986/2009. img: vale do reibeira - adriano gambarini .)
Comecei a ler e quando vi, tinha acabado! Caio conduz o leitor com facilidade. Bom mesmo!
ResponderExcluirRegião linda, gente boa, bonita fotografia do artista Gambarini e bela crônica do tempo em que namorar moça escondido dava pancadaria.
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