Da interminável e densa e intensa batalha entre memória e história, o que resta são palavras. Só palavras.
Serão eventualmente garimpadas nos escombros do futuro. Estão convidados, porém, a revirar hoje o blogue pelo avesso.
8 de jun. de 2009
SÁBADO
Caio Martins
(trecho de “zero hora: um anjo perdido” 1996.)
Perdido depois de dramática separação, cultivou seu luto alguns meses. Então, um passo após o outro, Daniel começa a se reerguer, forçado por amigos atentos que não o deixam só. Volta ao emprego, restaura o apartamento, encara alimentação, exercícios e rígida rotina de tempos. Quando Letícia, agora tão longe, quer assumir-lhe os pensamentos, fala com pessoas queridas não importa a hora, amigos são para isso. Neste sábado concorda em sair à noite, talvez suba ao palco e diga poemas que, antes do desastre, emocionavam encontros e solidões. Está temeroso mas, feliz.
É esse homem assim renovado que, por volta das vinte e três horas, entra no bar onde fora personagem querida e habitual. Amigos e conhecidos, especialmente convidados, confraternizam-se e deixam-no mergulhar no ambiente alegre e reconfortante, pleno de intenções, onde reservou-se o direito e meios de demonstrar satisfação, atenção e generosidade. Meio da noitada, a balbúrdia correndo solta, pedem-lhe que declame Vinícius de Morais. É bom, nisso. Não escreve um verso, mas vive os do Poeta como se fossem seus.
O público silencia, etéreo músico inicia improvisos dissonantes ao violão, fica um foco de luz frisando a figura fantástica e seus fascínios: Daniel iridescente, sensibilizado e cego diz cada palavra com o frêmito de nela acreditar, incorpora O Poeta e é magistral em cena. Tons de voz, ênfases, expressões, gestos corporais dão-se com a força e naturalidade de limites tocados e não forçados. O álcool faz o resto, a platéia embevecida é todo o público frequentador que aplaude, aplaude e aplaude... “- Porque hoje, é sábado!”...
Voltando para a mesa, esfogueado e secando o suor muito e lágrimas poucas, é abraçado freneticamente por uma amiga, que diz-lhe ser um monstro, o máximo, o melhor que já viu, lambuza-lhe o rosto e pescoço a beijos, antes de ser delicadamente afastada. Os comentários são gratificantes, sabe ter atingido cada qual a fundo. O êxito causa-lhe intenso bem estar. É quando a amiga volta, puxando jovem mulher pela mão.
- Daniel, esta é uma amiga que quer conhecê-lo. Lauma: Daniel! Daniel: Lauma!
Nariz arrebitado, boca franca de doce sorriso, negros cabelos trançados com fita azul, o traje negro, negros olhos curiosos, talhe delicado, Lauma é beijada três vezes na face:
- Não é para casar, não! É porque gosto de beijar mulher bonita...
- Obrigada! Gostei muito do que você fez! Depois vou lhe mostrar uma música...
- ... ela canta igualzinho à Elis!...
- ... e espero fazer por você o mesmo que você fez por mim...
Não pode terminar, puxam Daniel para outra mesa, alguém começa a cantar. Música, agitação e vozerio diluem existências pessoais. Lauma vai para a pista com as amigas, desentende-se do grupo e deixa-se levar pelo som como se em transe, bailando só, instintiva. É boa nisso, o dom da dança equivalendo-se ao dom da palavra, sucessivamente as pessoas vão parando, abrindo um claro, o som é nitidamente latino, tumbadoras em salsa encantada. Na coreografia, improvisa e inventa; olhos fechados, lábios entreabertos, vertigem de roupas negras, a fita azul esvoaçando e braços nus seduzem inclusive os músicos, até então apenas preocupados em cumprir horários. Desperta, para, e é festivamente aplaudida.
Há encabulamento no sorriso parco da boca linda, deixa-se abraçar e beijar sem resistências. Ao líder da banda, que a quer como bailarina, após ouvir entusiástica rasgação de seda pergunta se pode cantar. Escolado, a leva até o teclado e põe-na à prova sem microfone, sob pretexto de acertar o tom. Detesta amadores. Encanta-se e é ao som da voz absoluta e cristalina, macia e aconchegante de Lauma que a noite se encerra. Homenageia Elis fechando com “Quem quiser falar com Deus” num timbre próprio, macio e de comovente intensidade. Finda-se, enfim, o espetáculo, fecha-se o bar e cada tribo sequestra seus pares, para a entrega em domicílio.
Uma com Vinícius, outro com Elis, vão-se para suas madrigueiras com seus ídolos mortos, planetas sem eira nem beira, saídos da madrugada do sábado para a solidão do domingo.
(img: estudio para monica, de fabián perez) (Vale a pena conhecer!)
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Categorias, temas e títulos
Anti-horário
(1)
Crônicas
(60)
Elis
(7)
Notas
(2)
Pensão da Zulmira
(19)
Poemas
(111)
Sertão
(4)
Vídeos
(26)
Zero Hora
(6)
A vida no seu correr, seja sábado ou não, Caio sabe bem disso. Entusiasmo por belas mulheres, e a presença constante de Elis Regina, que até hoje faz lágrimas brotarem, mesmo dos mais fortes.
ResponderExcluirEntrei agora vindo do MPV via Prosa e Verso e gostei. Não tem frescuras e um monte de gracinhas que no fim das contas dificultam a leitura.
ResponderExcluir"Porque hoje é sábado", e acabou-se. Um mito, bem explorado pelo Caio.
ResponderExcluirMuito linda a pintura Ensaio para Monica do extraordinário Fabian Pérez, valeu a pena visitar o site dele e conhecer seu trabalho que a crônica destacou muito bem. Merecem ser vistos.
ResponderExcluir