5 de abr. de 2009

TANGO


Caio Martins

“Viejo Almacén: sus ladrillos de barro ocultan relatos de traiciones y amores furtivos, de cantores y bailarines, de cuchilleros y poetas”.

Tudo estava diferente. Escuro, luzes somente na pista negra e cintilante. Portas fechadas, ninguém sai nem entra, um murmúrio tenso do pessoal nas sombras. Súbito o sujeito na mesa de pista, perto da orquestra, dá violenta porrada no tampo, voam copos e cinzeiro, arma-se tétrico silêncio. Então grita, do escuro:

-Hipócrita! Hija de puuutaaa! Manga de boludos!

Frio na espinha da maioria. O sujeito continua, gole após gole, porrada após porrada na mesa, uivando travado, vez por outra, por soluços dolorosos. Cai-lhe um foco encima. Pergunta porque não pode chamar puta de puta, corno de corno, foda de foda e por aí vai, poderosa voz que retumba pelas paredes do velho bar e, de repente, abre um punhal sevilhano e o crava na decana madeira. Alguém, desesperada, grita do fundo que chamem a polícia. Outra voz responde, autoritária:

- No! No! Llamen la Estela! Llamen la Estela!

O bandoneón entra, então, com “Sur”, de Anibal Troillo, a mulher de vermelho vem rápida, talhos entremostrando coxas oníricas e o resto do monumento sobre longos saltos de sapatos de verniz brilhante. Estela pára frente ao outro Aníbal, pernas separadas, mãos na cintura, queixo alto, os cabelos negros esticados num coque perfeito. Tem os bicos dos seios duros, a boca arqueada e ofegante, olhos cintilando. Confrontam-se, encontram-se, começam a dança sob aplausos envolventes.

O resto é magia e encantamento, paixão e arroubo, num espesso frenesi de leveza e precisão jamais concebíveis senão sob a fumaça de cigarros. El baile de los matones de outrora é sangue vivo, orgástico, atrela-se, pulsar a pulsar de coração, fremir a fremir de nervos, ao impossível que homem e mulher jamais transgrediriam, senão ultrapassando todos os limites da sensibilidade e êxtase do equilíbrio de todos os sentidos.

Não se pode descrever o tango. Há, para os tímidos e desenganados, no mínimo que vê-lo. Para moralistas irrecuperáveis e traídos desesperados, que ficar muito longe de sua lascívia cortante e sensualidade irrestrita. Para os audazes, há que bailá-lo. Estela, nesse dia, perfaz todos seus domínios. Aníbal deixa, a cada passo, cair na pista escura uma lágrima clara. A platéia muda e paralisada, estupefata e possuída, mataria ferozmente qualquer um que espirrasse. Não existiam, à época, celulares.

Últimas notas, Estela desliza por Aníbal, param cristalizados vários segundos. Dá para ouvir-lhes a respiração. É quando tudo explode em aplausos enlouquecidos, assobios, gritos em intermináveis delírios. É a apoteose. Saem rapidamente de cena e do lugar. En la esquina de la Av. Independencia y Balcarce ahora desierta, viejo barrio de San Telmo, se defrontan bajo un farolito solitario.

- Me vás a dejar?
- Si! Nos quedamos por aqui! Se acabó! No quiero discutir! Sea buenito! Vete, por favor!

Anibal baja la cabeza un segundo, una sonrisa amarga. Y como que movido por la tragedia de un bandoneón desconsolado, la toma por la cintura sin suavidad, la besa desenfrenado y la mata.

“El viejo Almacén”, Buenos Aires/2009. (img: german cornejo y carolina geanini - divulgación)

7 comentários:

  1. Interesante, intrigante e dramático. O autor leva-nos aos caminhos do amor não realizado como deveria cujo final faz lembrar a Carmen, de Bizet.

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  2. Música. mulheres apaixonantes, fumaça dos cigarros, copos... O amor corre nas veias, amor louco, amor vadio! Cenário para terminar mesmo com la muerte.

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  3. Na mosca, meu caro Alan.

    É exatamente a transcrição da belíssima obra do flamenco para o tango, sem o Paco de Lucia mas com o Anibal Troillo. O roteiro é idêntico, embora na cena real, vivida no Viejo Almacén, não houve morte, só meia dúzia de sopapos e uns safanões. Parabéns pela perspicácia.
    E, Jorge, quem escreveu "O Concerto de Aranjuez", sabe das coisas.

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  4. Caio
    Esta crônica contém inspiração muito acima da média e, melhor, com linguagem corretíssima. Isso explica minha dorzinha de cotovelo por já quase 50 anos, por tudo o que você escreve.
    Meus parabéns e minhas homenagens. Milton Martins - Piracicaba

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  5. Milton,

    Depois da paixão pelas palavras (vai ver que por isso, tanto as amo que as maltrato tanto)há a paixão pelo tango. E a "dor de cotovelo" de não dançar como German Cornejo, o da imagem.
    É uma honra insubstituível, assim, tê-lo como irmão e amigo querido, que me supera amplamente em tantos aspectos da vida.
    Só sou, como já disse, mero escrivinhador metido a besta. Os amigos são sempre bondosos.

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  6. Supimpa amigo Caio. Como diz na minha terra "porreta". Me sentir ao fundo do salão negro, paralisado com um copo nas mãos, morrendo de inveja. Abraço.

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  7. Ola, hermano... Que los parió, si el Anibal que pienso lee, tendrás que pelearte a cutillos. Te pasaste, esa habría que meter en la moldura y clavarla en la pared del Viejo Almacén... Saludos porteños, boludo, bailás tango como un bode paralítico pero escribís como um diós. Me muero por la loca Carol.

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Na busca da excelência aprende-se mais com os inimigos que com os amigos. Estes festejam todas nossas besteiras e involuímos. Aqueles, criticam até nossos melhores acertos e nos superamos.

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