Caio Martins
Fim de madrugada, já saturado da rigidez da edição de apostila técnica, ligo a TV. Pego, nos inícios, o filme “Com licença, eu vou à luta”, com Fernanda Torres e meu querido irmão Carlos Augusto Strazzer, que foi tão cedo para o Andar Superior. Bicho, puta saudade que bateu. Momento seguinte, Eliane (Fernanda Torres) tomou conta do cérebro cansado do escriba, deitou e rolou em emoções e sentimentos. A máquina estritamente operacional de todos os dias virou mingau.
Findo o espetáculo, desligada a engenhoca de fazer doido, cafezinho novo, sabiá pedindo mamão no manacá da janela, dia irrompendo e interrompendo o silêncio, as palavras, que tanto uso, fizeram pungente sentido. Escrever... o amor pelas palavras... Vai ver, tanto as amo que, justo por isso, as maltrato tanto. Daí, no papel da menina que briga e chora, grita e irrita, seminua num fugaz, precioso e raríssimo momento de câmera, em paixão fulminante trombando com preconceitos e roubando todas as cenas, Eliane pegou na veia.
Não fosse só a aparência cuspida de outra, seria, por artes etéreas, amor à última vista pela mulher que a incorporava. Frágil e determinada, suave e áspera, intolerante e apaixonada, insegura e valente, Fernanda deu, ao papel, seu caráter capaz de ir dos meandros de fêmea ancestral ao sublime deslizar noutro corpo e eternizar momentos extraordinários com admirável sensibilidade. A Fernanda de 86 é a mesma de hoje; atriz que, a cada obra, retrata a si mesma e sobrepuja as melhores expectativas de roteiristas e diretores como o de “Com licença, eu vou à luta!”, Luiz Farias.
Fosse outra, e a personagem morreria na perigosa praia da interpretação de banalidades, ainda mais tendo como parceiro o Carlos Augusto, presença dominadora de cena. Aí, então, a verdade resumida das palavras: a beleza das coisas simples, como elas são, só pode ser revelada por um artista. Preciosa até em seus desmandos, traspassando a densa moldura do Strazzer, Fernanda recria a Arte não como uma imitação, mas, como forma diferente de apresentar a Vida.
Remeteu-me, já dia claro, ademais da saudade do amigo, para outra mulher impulsiva e impossível, paixão atemporal e pacóvia de um escrivinhador metido a besta.
A vida pegou na veia.
(img: cvm09 - ft e cas)
A Vida vive pegando na veia deste cronista, que acaba de mostrar como está vivo...
ResponderExcluirSó quem viveu um amor louco assim poderia entender o filme, que ainda é atual. A Fernanda Torres pegou o primeiro plano e o seu amigo fez o plano de fundo. Ele deve ter sido boa pessoa, pena ter morrido jovem. Grande filme, grandes atores e bonita crônica.
ResponderExcluirIsso é uma relíquia, pode crer. Do que conheço é um dos poucos textos em primeira pessoa que você escreveu, característica do grande cronista. Boa lembrança, a do Carlos Augusto dos velhos tempos das passeatas de 1968. Essas histórias pegam mesmo na veia.
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