Caio Martins
A habitação é singela e minuciosa: forro e assoalho de madeira escura, móveis antigos restaurados com primor, pesado candelabro de cristais no teto, janelas e venezianas deste ao chão dando para o pequeno balcão de grades de ferro forjado. Há bibelôs caros, de coleção, dispostos como que se ao acaso nas estantes de livros como que para justificá-las. A cortina, levemente entre o bege e azul, deixa entrar a luz da manhã e impede a visão de vizinhos abelhudos. O tom, no interior, é sutilmente azulado.
O incenso lembra florestas, os círios em taças vermelhas e azuis mal se consomem. À sua frente, numa bandeja de cobre, estão pequenos objetos como cristais, gemas, pedrinhas, ossinhos, metais, sementes, cercando pesado meteorito quase esférico. Atrás, próxima de suas costas, está fincada a espada com sua empunhadura de madeira sangue, defesa e cabeça de bronze e lâmina polida e brilhante, marcada de cicatrizes de batalhas; oscila quase imperceptível, a sensibilidade da têmpera do aço absorve as menores vibrações da rua, da casa, do ar, da dona. Após, o grande espelho oval de cristal eslovaco.
Minuciosa e pacientemente, Lauma centra-se no espelho às suas costas. É alto, apresenta na superfície relevos apenas perceptíveis, sulcos improváveis, depressões aparentemente ilógicas e a austeridade de existir desde sempre. O bisel do perímetro irradia arcos-íris. Vira-o em sonhos percorrendo os espaços, percorrera antiquários até encontrá-lo, novamente em Praga. O “marchand” descrevera-o como milenar, elaborado do mais puro cristal de quartzo, revestido da mais pura prata. E propusera preço bestial. Contrapusera oferta ridícula, brigaram, mas o “marchand” fora incapaz de sustentar seu preço: despira-se ante o objeto, observara-se uns minutos nua e afirmara convicta: “- É meu!”.
Ao homem boquiaberto, estendera-lhe um cheque de valor sofrível e ordenara que o embalassem rigorosamente, acompanhando embarque e desembarque. Recorrera ao velho mestre restaurador das Minas Gerais, pagara sem discutir uma exorbitância em moedas de ouro e tinha-o, desde então, com rara moldura de ferro batido e jabuticabeira. Submetera-o a complexos rituais de exposição ao sol e à lua, limpezas com águas de mar, chuva e de fonte, batismo com arabescos de seu próprio sangue até o encantamento final, no círculo de velas e círios. Ele respondera, o triângulo central se lhe revelara nítido, a miríade de inscrições, figuras, traços e sinais deixaram-se contemplar.
Os cabelos negros, ainda curtos, estão macios e brilham como pelo de bicho sadio; os olhos poucamente rasgados harmonizam-se com o nariz pequeno, a boca de traços nítidos e equilibrados. O oval do rosto concebe-se com exatidão sobre o pescoço longo e fino, ombros frágeis e o colo atraem pela sensação de aconchego e maciez, seios surgindo sem resistências, pequenos e de aréolas ligeiramente escuras, síncronos. Os braços seguem a tendência, as mãos são delicadas e finas, de longos dedos; a cintura marca-se naturalmente e as costas retas encimam nádegas firmes, coxas de proporções esmeradas, pernas e pés são obras de joalheria. Há que saber ver Lauma. O sexo de forma extremamente precisa tem a candura do de uma criança, parcamente relevado sob negros velos, recendendo a mar. No instante, é nele que Lauma se resume.
As ondas de calor, luz e radiações percorrem-na na pele eriçada, penetram-na fluídos, dissipam-se por seus pés, afloram-lhe na mente. Repete-se o ciclo sem pressa ou interrupções, nas horas que passa depositada em pequeno tapete grená, as mãos cruzadas sob o diafragma portando a opala opalescente. No centro da cabeça, um topázio, sob a separação da vulva e o ânus, a turmalina negra. Concentra, dirige, absorve e dissipa energias pelo prazer de transformar instinto em luz. Hoje, sabe conviver com esse prazer, conhece os mecanismos dessa preparação, agindo sem esforço, totalmente abstraída de si e do local. Sintoniza-se com segredos e objetos milenares e, sentada de pernas entrelaçadas, dir-se-ia melhormente que flutua.
Tem o domínio do corpo, é esse ambiente. Sua beleza apura-se, perfaz-se atemporalmente, encontra-se no auge de força e poderes, nada afeta sua ligação cósmica. Afaga com ternura seus anjos e demônios. Ronronando, o gato cinza de tons escuros próximos ao azul profundo esparrama-se na cama ao lado, observando-a de olhos semicerrados, pontinha de língua de fora. Vez por outra, move um mínimo o rabo. Lauma descruza eternamente as mãos, estende ao alto os braços de dedos entrelaçados e indicadores retos. A lentitude dá maior beleza ao movimento em direção ao teto e além deste. Os seios realçam-se, bicos duros, o rosto expressa paz e serenidade, a boca abre-se demasiadamente perfeita, lábios aquecidos e confortantes. O gato, inquieto, muda de posição, ronronando alto.
No conjunto de sensualidade, paz, delicadeza e suavidade Lauma condensa-se em sua plenitude, sabe que deve obrigatoriamente desfrutar desse momento incomum e quase impossível de ser conseguido, pois antes não era capaz, depois não mais terá condições. Outro será seu trabalho. Despede-se de vínculos, um vento agita as cortinas, o gato mia e escorrega para o sol lá fora. Retoma-se no momento em que vive. Boceja, sorri, respira com gosto. Junta os badulaques parcimoniosamente, cantando cantigas de encantar. Depõe os círios na lousa de mármore azul da parede norte, ao lado e alto da cama, à cabeceira da qual a espada é ajustada em seus suportes. Envolve-se num roupão cor de pitanga e vai contemplar o bairro desde o balcão. O espelho a espia, agora opaco, pelas costas.
(img: womanstudio81 - trecho de zero hora, um anjo perdido - 1996.)
Da interminável e densa e intensa batalha entre memória e história, o que resta são palavras. Só palavras.
Serão eventualmente garimpadas nos escombros do futuro. Estão convidados, porém, a revirar hoje o blogue pelo avesso.
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Esse sabe das mirongas.Jàa paixonei pela Lauma. Esse livro sai quando? O aperitivo da para mostrar sua competnecia. O blog é muito bem feito. Muito sucesso.
ResponderExcluirA espada é um simbolo forte. Poder, coragem, resolução, luta! Caio é um lutador.
ResponderExcluirNão lhe podia caber imagem melhor!
Abraço,
Jorge
Ênio grato por sua visita e suas palavras. Lauma é o nome de uma bruxa lituana. E, ao contrário do mito ocidental cristão, elas eram mulheres belas, cultas e inteligentes, um perigo para os poderosos da época. Por isso as perseguiam. A personagem é apaixonante, sim... Roubou a cena. Creio que mais uns meses e buscarei editora. Abraço, motumbà.
ResponderExcluirCaro Jorge Sader, você é sempre generoso. No livro, Lauma resgata seus ícones, cada um representando certa face de seus poderes e mistérios. A espada litúrgica a liga à terra e ao cosmos e, na seguidilha, o espelho reflete o inverso da realidade. É por aí! Abração, meu amigo.