Caio Martins
Para Márcia e Jorge.

O prazer da estrada. Aprendera cada código, cada mistério e a lidar com o imponderável com o namorado... não, não era um namorado: era seu amante, anjo da guarda sem-vergonha, seu terno dono improvisado. Chegou ainda dia, entrou abraçada com um buquê de rosas amarelas. Cortou pedacinho dos talos, pôs num vaso azul de cristal talhado e as festejou um tempo. Quando chegou cheirando a trânsito, cigarro e suor, não se deixou sequer abraçar, quanto mais beijar. Meteu-o no chuveiro, mesmo que reticente e, até, de péssimo humor.
De novo na estrada, rosas cuidadosamente embrulhadas no banco de trás, em companhia de uma bolsa com um potinho de mel, um vinho raro, o frasco de óleo de oliva e um vidro com coisicas como sal gema, pedras de incenso, mirra, lavanda seca, além de três grossas velas azuis, curtas. Ele ficara amuado, calado, coisa esperada. Cheirara as rosas, quisera meter a mão nos trecos, ainda tentara abraçá-la, porém, fora vencido. O prazer do jogo. Meio do caminho, lua despudorada iluminando a serra e, muito abaixo, a planície até o mar, quebrou-se o silêncio.
- Pode me dizer que é que está armando? Eu conheço essa cara... Pode?
- Não! Ainda não aprendeu que gosto de silêncio de vez em quando?
- E você ainda não aprendeu que tenho bronca com surpresas? Pra quê complicar?
Já na casa, desfez-se a incógnita. Centrados, ajoelhados nus sobre uma esteira e cercados pelo equilátero das velas e pelas rosas, ficaram um tempo em silêncio. Ao ver os trens, ele entendera, falaram há tempos dessas liturgias. No alguidar de barro, as brasas tiravam perfumes dos cristais, raminhos e resinas. Entre os dois, potinhos com os outros elementos. Beberam vinho da mesma taça. Deu-lhe uma pedrinha de sal, recebeu outra, tocou-o suavemente na testa, lábios, no peito, no sexo com o azeite. Recebeu os roces de volta, depois foi o mel e beijos como de mar, vezes.
Pela lua, ou pela luz azulada das velas, ou por raríssima energia, cercaram-se de rarefeita luminescência. O cenário, a memória dos corpos, a paixão e emoções acariciadas como se dançassem tango, os levou a terem-se como futuras divindades cibernéticas, como demônios primitivos gregos, enfim, como singelos animais. Exaustos, fartos, frouxos, enroscados livres sobre a esteira, derreteram-se em mansas carícias e intermináveis olhares. Beijou-o sobre o coração e, num repente felino, mordeu forte, até sangrar. Não reagiu. Retesou-se, o grito travado e a mão no ar.
Já quase dia, uma corruíra estrilando pelo jardim, entrou no carro e partiu. Deixou-se nua e quieta na esteira, olhos grudados no teto, até que desolada, mas, com doce alívio nas veias. Tudo findaria ali, num improvável ritual de nunca mais.
(trecho de “zero hora: um anjo perdido" - 1999.)
(img: brocado rosa - acrílico sobre tela- fabian pérez).