24 de fev. de 2009

O JANTAR


Caio Martins

Acomodou o carro na garagem meticulosamente. Não fosse dar motivo para o salame do vizinho dizer que melhor aprendesse a dirigir, enfim, aquelas questões medíocres dos condomínios de luxo onde todos mandam e ninguém obedece. Porta do elevador, lembrou-se dos cigarros. Outro problema... Menina, e o bicho-papão era o sexo, com ameaças do inferno sob a égide dos pecados da carne fabricando gerações de infelizes, principalmente (como sempre) mulheres, durante séculos de fundamentalismo moral como base para a dominação político-ideológica. Entre queimar sutiãs e calcinhas e quatro décadas de guerra inclemente, agora eram livres e o mundo que se ferrasse. Entre a cama e o cinzeiro, nem tudo era só fumaças.

Foi ao botequinho ali perto, tomou um café cozido de máquina, pediu os cigarros sem remorsos e, feliz, olhou a rua com outros olhos, agora de um verde mais vivo sob cílios escuros impertinentes. Foi quando viu a mesma figura de décadas, jeitão de enfezado, passos largos e rápidos, claro que de cara mais enrugada e cabelos mais ralos, porém era ele, inteiro e elástico: amor de juventude jamais consumado, aquela paixão feérica beirando a loucura ainda enquistada nos ossos, com tantas esperanças quanto dilúvios em tantas fantasias densas e solitárias, até parecer completamente esquecido, e lá vinha subindo a ladeira, bagunçando-lhe a auto-suficiência. Parou no meio da calçada caprichando na pose.

Ele veio, veio e foi freando, ela miou-lhe o nome com o que achou ser o tom mais charmoso. Aí, reconheceram-se e deu até abraço, num segundo a vida posta em dia, ela alçando ombros e empinando retaguardas, ele olhando curioso, até meio sem-jeito. Rápida no gatilho, disse-lhe que no sábado haveria um jantar em sua casa, todos os antigos amigos de escola lá estariam, ele não poderia faltar. Tendo-o evasivo, fez beicinho, disse que era um desconsiderado, todos gostariam de vê-lo, seria a surpresa da festa, pediu e exigiu, implorou e choramingou, até uma lagriminha apareceu, vilã. Conseguiu o compromisso.

No dia, fez uma revolução no apartamento. Flores, incensos, lençóis limpos, velhas músicas de Johnny Mattis engatilhadas na anacrônica vitrola, as de Jobim, João Gilberto, Vinícius e outros no DVD-player, a comidinha caseira especial encomendada na medida no “dellivery” da esquina, um vinho branco geladinho, ganho nalgum fim de ano que ficara perdido na estante, luz de velas... Horas no banho, sais perfumados, hidratante, perfuminho aqui, corzinha ali, blusa transparente, bata fina, lingerie vermelha, enfim, todo o cenário pronto para o apocalipse. Vinha ninguém, não. Apesar das quatro décadas de atraso ele seria, finalmente, o prato principal da festa.

Atendeu à porta diluindo-se em sensualidades. Não fora, afinal, a ruiva mais deslumbrante da escola, gerando até pancadaria da moçada que com ela queria dançar, nos bailes devidamente vigiados por mães ansiosas de filhas desesperadas? Mas ele parou, perplexo. Olhou em volta, sorriu e balançou a cabeça, decepcionado e compreensivo. Nem sentou. Disse ter mulher a quem amava e que não ficaria, que o desculpasse e se foi, sem incomodar-se com suas lágrimas. Então, ficou ali sentada, chorando baixinho.

Tantos anos passados e dela, que fora linda, ficara-lhe, como disse o poeta, apenas solitária lenda ante um jantar frio e o vinho quente, a frustração densa e o coração despedaçado a lamentar-se de que Deus não é justo com as mulheres.

(img: a ruiva jessica, em "uma cilada para roger rabbit".)

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