Escrever é ofício árduo, dífícil e, quando não, arriscado. Da interminável e densa e intensa batalha entre memória e história, o que resta são palavras. Só palavras.
Serão eventualmente garimpadas nos escombros do futuro. Estão convidados, porém, a revirar hoje o blogue pelo avesso.
(img: grilhões. foto: lee garland/bbc brasil) Os meus amigos sabem: não zombarei das palavras. Brincarei, contudo com seu sentido, porém exigirei de mim um instante de disciplina e solidão.
As usarei, impunes na comoção de moça reticente justificação de noite mal dormida prisão de ventre dizer, do governo, que é ladrão.
Desprezo montagens raras purpurinas, holofotes parafernálias visuais... Bastam-me um lápis, um papel a voz que não conseguiram calar nesta curta eternidade consumada.
Desajeitado escriba menor deixarei as palavras me aliciarem, eternas visitas inconformistas feias cicatrizes em feridas limpando a bunda com mentalidades torpes demasiado preocupadas com críticos de arte.
Nem brincar com palavras nem versos como armas, nem grilhões dourados de escolas, estilos, imposições: chegará o dia de estarmos todos mortos.
Destilarei meus humores meus amores meine Weltanschauung estropiada mi tesón por la vida como vierem escrevendo, escrevendo, escrevendo e me bastará que em meus versos meus amores se riam, festeiros meus amigos me abracem, meus inimigos me desconheçam.
Os restos são o sentir latente lancinantes gestos, viveres, fatos consumidos sem tratos longe de tantos sóis, patéticos aplausos de deuses, demônios formatados como peixes fritos num prato. Pensão da Zulmira - 26/06/1987.
Caio Martins. Amigo fiadaputa... tomava cachaça, nada além de cachaça e chope, dizendo que uísque e quejandos eram coisas de boiola - sem fazer concessões para qualquer química colorida ou perfumada. E triturava, feito um degenerado, pratadas soberanas de torresmo na falta de iscas de peixe, amante obcecado de feijoadas, picanhas, costelas, pernas de cordeiro... Magro feito um cabo USB apesar de tudo, calado e quieto e olhos vigilantes, parecendo estar sempre pronto para saltar e sair na porrada. Não sentava de costas para as portas ou janelas, escolhia sempre os cantos, de onde observava, com olhar cínico e perfunctório, a mulherada. E as havia, aos montes, solitárias e ansiosas e despudoradas.
- E aquela loiraça? Vai dizer que não é um avião? Já-já ‘tô nessa, mano... - Uh! Sei não! 'Cê ‘tá muito antigo, m’ermão. Agora é informática... Avião já era... Fosse, essa seria teco-teco... Perna curta, bunda baixa, teta de silicone, tingida e mais rolada que pedra de rio... Sucata! - Caaraalho! Já se olhou no espelho, meu? Passou do prazo de validade faz tempo, nem falar da garantia e esnoba um mulherão desses? ‘Tá precisando de camisa de força, meu! - ‘Tá afim de faturar uma grinfa, ou tá dando mole p’ra cima de mim? Quero não! Bagulho por bagulho fico comigo mesmo! Vai lá, que o açougue tá aberto, meu! Vai, borracheiro!
Chamou o garçom e pediu mais uma e mais um. Saiu para fumar na esquina. Nestes tempos de “politicamente correto”, era um belzebu anacrônico - a moda era “bala”, cristal, cocaína. Voltou, o amigo papeava com a loiraça, ambos cheios de risos e salamaleques de moda nas baladas. Era dos tempos das noitadas e boemia. Tomou a cachaça de a golinhos, triturou um torresmo, arrematou com o chope. Daí o novo casal da balada veio; levantou-se frio feito rabo de foca. Apresentados, olhou a moça da cabeça aos pés, rodeou, pediu licença e passou-lhe a mão na bunda. Ela deu um pulinho e disparou num riso incontrolável. - Cara mais louco! - repetia.
- ‘Tá certo... Tá certo... Inda ‘tá de jeito, dá pro gasto. Vão com deus, crianças - e voltou a sentar-se, aparentemente alheio a tudo e todos. O outro - indignado - catou a boneca, de arranque, e saíram sem despedirem-se. Ficou no canto, isolado e invisível, os olhos incisivos não perdoando nada nem tudo, manguaçando ritualmente. Levantou o dedo, o garçom veio pachola. Pediu papel e uma caneta. Impudica e misteriosa, ousada e atrevida, mas solene e serena feito uma gota de orvalho num parabrisas (tinham-se extinguido, há tempos, as flores), a lágrima levou uma eternidade até explodir no tampo sintético da mesa. Não é fácil escrever à mulher amada, ausente pelos milênios etc.. - Puta ironia! - se dissera ao despedi-la.
Escreveu um poema devagar e com letra excepcionalmente caprichada como não se usa mais, depois leu várias vezes. O garçom trouxe outra leva de mineirinha esperta, dispensou o chope e o torresmo. Deixando o papel sobre a mesa saiu para outro cigarro politicamente incorreto, chovia parcamente. Pertinho, a praça. Na praça, o banco... Alí o encontraram - a falsa loira siliconada de bunda baixa e o amigo - quase no raiar do dia, teso e lagrimado da chovisna, um rito feliz no rosto paraláxico e mortinho da silva.
(img: cvm - jaquie-tela/2001) Menina vadia brincando de pedra cadê tua impudícia teu jeito de cio?
A pedra é inútil a pedra é amorfa a pedra é tão fria a pedra é estática a pedra errática tem oclusões vaginais tem pedrinha hepática por beber sonhos demais.
Quer ser celebridade quer invadir a cidade nua nos jornais...
A pedra quer ser escultura a pedra quer ser pintura a pedra quer ser partitura quer ser imagem de santa beijada no pé, num altar quer ser a heroína da hecatombe universal.
No meio da vida nua se viu no meio do peito da cama do poeta...
... e armou o capeta.
Vai ver que de tanto brincar que era pedra no enleio do ato chutou o amor que virou, de repente, pedrinha miúda num pé de sapato...
(Vila Mirim, 01/12/1966 - Pensão da Zulmira, 14/06/1987.)
Desde o início foste reticente, não se perguntou se eu te queria. Tomaste conta de mim sem importar-te com meu pranto e espanto de bofetada.
Houve momentos nos quais não me dei conta de teu domínio. Na memória nada resta, o resto sempre foi teu pé na garganta, a espada no peito, retilíneo jogo unilateral.
Inerme mal aprendi a defender-me fraco tentei mostrar-me astuto insensato me reconheci no teu oposto.
Julguei, nalguns momentos tomar-te toda, sugar os cálices de teu corpo embebedar-me de teus licores tomar-te sacrílego, fremente até ter-te tonta e louca incapaz de seres sensata.
Desafiei-te: que esmagasses! Brigaria e criaria tudo de novo sem o pânico da alcatéia.
Perdi os momentos, movimentos do solo desvairado, sem estréias.
E não houve também mulher alguma capaz de suicidar-me tirar-me tudo, o nada que sempre tive... Que pena!
Mas tu, Vida escorres a cada segundo dentre meus dedos, te insinuas e negaceias, me invades e me deixas só.
A cada segundo, o irritante é pressentir-te o sorriso no rosto.