Escrever é ofício árduo, dífícil e, quando não, arriscado. Da interminável e densa e intensa batalha entre memória e história, o que resta são palavras. Só palavras.
Serão eventualmente garimpadas nos escombros do futuro. Estão convidados, porém, a revirar hoje o blogue pelo avesso.
Caio Martins Não viria? Não? Despedaçou o celular na parede. Chutou a porta, derrubou cadeiras, o gato Loki, assustado, escafedeu feito um capeta. Da estante, aquela fotografia em moldura acrílica - tão adorada - a espiá-lo impunemente voou com soberana bolacha, o sangue do talho na mão abriu caminho purpurando e puxou o freio: a hematofobia vinha das reminiscências de guerras, arquetípicas, eras de espadas e setas, lanças e óleo fervente e que tais. A bruxa Baba-Yaga diria que fora guerreiro feroz - dileto filho de Thor e neto de Odin - caído em desgraça pela paixão por mulher insólita por ele requestada ainda menina, cujos olhos azuis e riso de prazeres, formas e gestos inimagináveis sob a revoada da cabeleira clara aturdiam e ensandeciam os homens. Zonzo, tentou limpar o corte e o envolveu com um pano de prato. Não podia desmaiar. Maldita! Bendita! Filha da puta! Amor da sua vida... anjo... vadia... Foi ao vizinho, pálido e cambaleante, pedir-lhe que o levasse ao pronto-socorro.
Depois, mão costurada e atada, ignorou a baderna. Pegou a foto - incólume na moldura a prova de tapas - e ficou olhando, olhando e olhando, anestesiado. Não havia dor, nem houvera lesão séria. Na próxima usaria um martelo. Sorriu, por fim. Como não desejar instintivamente a beleza marcada por delicadeza e suavidade, não amar o riso leve, as idéias loucas, a eterna ciclotimia etérea, aquela timidez subjacente num piscar ousado, cruzar de pernas, entremostrar de seios, oscilar de cintura, semovente e, sem explicações, enviar-lhe da boca linda tolo beijo ao partir, sabendo que a queria toda, inteira, pelos séculos? Não amá-la quando, após o sexo eterno e aos pouquinhos, lhe sorria, e adormecia? Tantas outras magias e mistérios, ardis e estratagemas? Os deuses não lhe eram favoráveis, certamente. Maldita estrige, que o instigara com carochinhas para boi dormir... Porém, a lenda implícita o fascinara. Escreveria, fosse dado a tal, conto ou poema, crônica sem adjetivos e advérbios, meramente fática, relato frio de antropólogo.
Diria que, em meio de furioso combate, gritos de morte e de guerra vira, sob uma carreta tombada, aqueles olhos azuis em carinha suja e parara, petrificado. A voz aguda lhe gritara cuidado e o aço adversário o atingira pelas costas transverso, invés de reto. Caíra, espada revirando no ar para longe. O lanfranhudo, horripilante e banhado em sangue alheio, fedendo suor antigo e novo, vísceras e bosta de gado, dera uns passos ao redor para contemplar a caça: gostava de cortar cabeças. Rabo de olho vira a menina sair da encoberta, pegar a pesada espada que lhe escapulira e, silenciosa feito serpente mas rápida feito raio, vir e metê-la, um terço, na coxa do carrasco. Saltara, atracara-se com o molosso, o lançara ao chão e, empunhando a arma alheia, o degolara de um só golpe. A batalha decidira-se em volta, Jormungand morta. Pegara a menina ao colo, ao vir, o dono das tropas, cobrá-la. - “Thrud é minha!” - dissera. A soldadesca enristara lanças, aquilo era afronta punível com a vida.
“- Lutaste bem, mataste muitos e me serviste com honra! É tua!” - A levara às montanhas, seu ermo. Cuidara-lhe as feridas, deixara a cabana limpa, até botara cortinas floridas nas janelas. Entendia da cozinha, dos bichos e das roupas lavadas. Sempre muda e calada, cabisbaixa, interrogada por que não falava ou encarava, dissera-lhe que era uma escrava e elas não deveriam incomodar seu amo. Fora quando depositara-se, definitivamente, naqueles olhos azuis, perdera-se naquele sorriso lindo... E dissera que não era escrava mas, seria sua mulher, quando crescesse. Ela queria voltar à própria aldeia, sua casa. Quisera ver, foram e voltaram; não havia mais uma nem outra. Não chorara. Meio da noite seguinte, viera até seu canto e perguntara: “- Se eu não quiser ser sua mulher, me mata?” Respondera que a trocaria por um cavalo, virara para o lado e dormira. Nunca mais a vira. Deixara florezinhas amarelas no mesão da cozinha... Ainda escreveria a história, quem sabe... um dia... ‘taquepariu...
Adormeceu pesadamente, chapado com os medicamentos. Anestesia e antibióticos, antitetânica e sabe-se lá que poções sintéticas diabólicas... não se fazia mais guerreiros como antigamente. Acordou com o gato se enroscando no travesseiro e ronronando alto, contente. Janelas abertas, casa arrumada, cheiro bom de comida. Na mesa da cozinha bocas-de-leão e, do chuveiro, o vulto no vidro embaçado e o canto enigmático da mulher imprevisível. Era feliz e nem sabia. (img-art: cvm - crisricci - tela) (adaptado de Zero Hora: um anjo perdido)