Da interminável e densa e intensa batalha entre memória e história, o que resta são palavras. Só palavras.
Serão eventualmente garimpadas nos escombros do futuro. Estão convidados, porém, a revirar hoje o blogue pelo avesso.
9 de set. de 2010
AMOR SEM-VERGONHA
Caio Martins
Varou a noite na diagramação. Seis da manhã, a passos rápidos e sem olhar sequer as graças das meninas do ponto de ônibus, meteu-se na padaria, engoliu às pressas um copo de café e dois pães de queijo, comprou cigarros e voltou na mesma toada. Fechou o arquivo como .ps, fez a última revisão técnica e mandou por ftp. Dez minutos, e o chefe ligou dizendo que estava limpo. Respirou aliviado. Abriu o correio, leu as mensagens e resolveu responder pela tarde. Despiu-se e desabou na cama.
E a mulher novamente visitou-lhe o sono, com seus olhares azuis, seu sorriso de beijos. Desta vez, em sombria viagem por estranha cidade, pedras de calçamento polidas e edifícios antigos, estátuas, quadros, vitrais. Ela eram elas, num forte cheiro de incenso e mar. E veio a descida aos trancos para o inferno. Sumia, sumia... Dante escrevera, por sua amada, talvez um dos mais belos poemas. Ele? Acordara no grito suando, já buscando de onde viria a porrada, depois respirara aliviado. Ao lado, o apito histérico.
Era o chefe, ao celular. Mandariam novo trabalho como sempre para ontem. Almoçou no boteco a dois quarteirões, voltou e o telefone, a partir de então, não mais parou. O jornalista nervoso por ter esquecido metade das legendas, o fotógrafo pedindo pelo amor de deus que tratasse as fotos de definição deplorável, o chefe perguntando se já estava pronto. Armou-se da costumeira paciência, ligou o pc, descarregou os arquivos e... adeus, tela. Fora-se, para merecido descanso, o tubo do monitor.
O leve cheiro de queimado foi o atestado de óbito. Dois minutos e destripou o velho amigo. Suicidara-se, talvez cansado de tantos maus tratos. Veio o pânico. A cpu, felizmente, segurara-se no no-break. Fim de mês, já no vermelho e crédito estourado, todos os amigos micreiros desaparecidos por esticarem o feriadão, precisava levantar dinheiro, comprar outro monitor. O sonho, pareceu-lhe, fora uma advertência. Mas, não cairia em nenhum abismo. Revirou a casa, encontrou as alianças.
No dia de apocalipse, em meio a uma discussão idiota, a mulher jogara a aliança na escrivaninha, depois do bate-boca se fora, levando seus badulaques, roupas e o gato. Coração pequeno, apertado, queimou pneus até o banco. Penhorou... Miseravelmente pela metade do preço do ouro no mercado. A moça da caixa disse-lhe que poderia resgatar em noventa dias. Meteu-se num supermercado, comprou um lcd de ocasião, olho no relógio e, de novo, disparou pelo trânsito.
Instalou, já horas atrasado, calibrou as cores a olho, e foi liquidando página a página do jornaleco nanico freneticamente. O telefone ali, insistindo: vinha bronca e palavrão, ia bronca e palavrão. Perto das oito da noite, sua deadline, novamente acionou o ftp. Nem respondeu ao "ok!" festeiro do chefe. Ficou ali parado, olhando a tela em branco. Sem pensar ligou para a paixão antiga irremediável e insolúvel - que jurara, mil vezes, nunca mais procurar - contou-lhe o sonho, a correria e disse-lhe que penhorara as alianças da "ex". O silêncio o fez voltar ao planeta; lamentar-se não adiantaria, a besteira já estava feita.
- Ainda está aí?
- Posso ser franca?
- Deve! Já me arrependi de ter ligado... 'Tá azeda comigo?
- Não é isso... Não seria menos complicado ir ao jornal e resolver tudo lá? Até mesmo pegar um monitor emprestado? Por que você sempre complica tudo? Mané... Cabeção!
- ‘Tá rindo por causa das alianças, é? Gostou?
- Ah! Meu deus... Nada a ver, desencana! ‘Tô rindo porque você é burro! E sem-vergonha...
- Você vem? Ou quer que eu vá?
Silêncio. Desses de pegar na mão. Finalmente, ela diz-lhe o nome duas vezes, num suspirão. Responde um “eu”, tenso. Pausa, pergunta-lhe novamente quem iria. A moça ri e murmura, como que lamentando-se, charmes:
- Eu... sou burra e sem-vergonha...
(img: cvm - leca002b/2008 - grato pela imagem de ilustração).
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No meio de um tumulto de trabalho desenfreado, computador pifando, o final feliz.
ResponderExcluirA velha paixão deixa de pensar muito e volta para a companhia, mesmo que temporária, do antigo namorado.
Ficção do Caio? Não. Isto acontece todos os dias.
Muito real!
Abraços,
Jorge
Sonhar é tão mágico! Sempre digo que é uma outra dimensão de nossa vivência, quando o corpo descansa e a alma voa totalmente livre. O ruim é quando um sonho gostoso se transforma num pesadelo como este, né não?
ResponderExcluirBeijos
Márcia
já sentia tua falta. muito bom, como sempre.
ResponderExcluirJorge, é por aí, mesmo. Ficção, realidade, o fato é que sem o pc e sem a paixão, hoje a vida seria muito chata! Abração, manovéio.
ResponderExcluirMárcia, é texto sem pretensões, simplezinho. Há simbolos, como as alianças penhoradas (não "vendidas"...) Só há que ter cuidado com os buracos-negros das galáxias navegadas, pode-se acordar, de fato, muito assustados. Beijos, parabéns pela publicação do Ser(afins): delícia de soneto...
Liih*, que bom, vê-la por aqui. Também tenho saudades, mas a partir de outubro volto à ativa. Passo depois no blog para ver seus escritos. Beijo, esquece da gente, não!