Da interminável e densa e intensa batalha entre memória e história, o que resta são palavras. Só palavras.
Serão eventualmente garimpadas nos escombros do futuro. Estão convidados, porém, a revirar hoje o blogue pelo avesso.
20 de abr. de 2010
RETRATO DO MUNDO
Caio Martins
Para Cidinha Costa
(img: snowland -inga nielsen)
Busquei-te pela cidade toda.
Os lugares percorridos sabiam
de meus passos erráticos os sons
procurando sempre, desencontrando.
Mas te calavas
sentindo dor alguma
na convivência agre
dos desfadados da cidade ébria.
Não havia indigências
desconhecendo teu nome, tua voz
teu riso,
desconhecidos
os mistérios do teu corpo
outros que carregas
e não ousas confessar.
Estranha mulher, a liberdade...
Tolas tremuras cravam as ruas
remaculadas, e tudo foi súplica
falava-se em coisas impossíveis
a cidade mais e mais se iluminando
corpos buscando esconsos vãos
para dormir, a sensação de ausência
apertando, dando seu preço.
Busquei-te pela cidade toda.
Pediria esmolas, não fosse
o meu orgulho de aço...
O peito, agora, descansa frio
sem peso algum que o reconheça, sem
possibilidades de ficar menor.
O peito do poeta, neste instante
é um retrato do mundo.
(Casa do Estudante - XI de Agosto - 09/05/1967).
Com Maria Bethânia - De Chico Buarque e Gilberto Gil - Censurada em 1973.
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O peito, agora, descansa frio
ResponderExcluirsem peso algum que o reconheça, sem
possibilidades de ficar menor.
O peito do poeta, neste instante
é um retrato do mundo."
Caio, este poema é tão intenso que chega a apertar o peito!
Aparentemente dicotômicos, os versos acima retratam o modo como vivemos e sentimos um mundo tão cheio de contrários. Mesmo tendo sido escrito há bastante tempo, o poema continua atual. A palavra de ordem - "cale-se!" - ainda existe, mesmo tendo assumido caráter diverso da de 67. A busca pela liberdade (de ir e vir, de poder viver com dignidade, por exemplo) é questão de vida ou morte da esperança. Por isso o peito do poeta não pode ficar menor!
"...Estranha mulher, a liberdade...
Que lindo poema!
Um beijo
Márcia
Como podemos encontrar a liberdade plena, se estamos cercados, sempre cercados de autoridades prepotentes e leis draconianas?
ResponderExcluirO homem jamais vai conhecer a liberdade. Infezmente...
Ficou ótimo!
Abraços
Não confessar protege o mistério.
ResponderExcluirMárcia e Sader, é dolorosa a atualidade, após quase meio século... O poema sofreu pequena edição, por inconsistências, e cedi à sugestão de lançar o vídeo com Bethânia (ainda uma menina...), deslocando a linha do tempo. À ditadura aberta - visível e localizável - sucedeu-se a da corrupção, do crime organizado ou não, e da violência epidêmica - invisível e aleatória.
ResponderExcluirGanhamos a batalha contra o arbítrio e perdemos a guerra contra a estupidez humana...
Vanessa, a metáfora, enquanto manto de mistérios, foi a arma que usamos contra a censura e a violência institucionalizadas. A confissão da resistência traria represálias desde endereço certo. Hoje, não sabemos de onde virá a violência, o ataque, o sequestro, a bala. Todavia, continuamos sendo alvos. Cada vez mais, e gradualmente.
"...Nas calçadas pisadas de minha alma..." (Maiakóvski)
ResponderExcluirEm uma sociedade que o "Príncipe Eletrônico" se faz cada vez mais presente, talvez seja necssario irmos em busca de uma "amante"!
Abraço
Juan, grato pela sua visita, é uma honra. Não fosse, todavia, o "Príncipe (ou demônio?) Eletrônico", seria extremamente improvável. Meu abraço, e parabéns pela qualidade de seu blog.
ResponderExcluirAbraços.
'Pediria esmolas, não fosse
ResponderExcluiro meu orgulho de aço...'
realmente verdadeiro e sincero. encantador!
Liih*, nada mais humilhante que viver, pessoalmente, da esmola de migalhas de afeto ou, na questão política, de joelhos e acovardado. De aí ter chamado "orgulho de aço" à dignidade e honra, valores tão em falta em nossos dias.
ResponderExcluir"Nunca farei parte/desse imenso batalhão", nos diz Paulinho da Viola em Meu mundo é hoje"... e nem você. Feliz por sua presença, minha querida menina. Abração.
Lindo o poema e encantadora a música!!!!
ResponderExcluirAdorei ouví-la novamente...há muito não a escutava com tanta vontade e atenção!
Obrigada por essa oportunidade tão cativante!
Beijo!
Eu que agradeço sua presença, Sol. Dá o alento para continuarmos e a certeza de que, nesta passagem, tudo valeu a pena, nada foi em vão.
ResponderExcluirAbração, muito carinho.
"Estranha mulher, a liberdade..."
ResponderExcluirMuito pertinente a comparação. Estou na tentativa de pensar um mundo sem o ir e vir, sem o pensar aberto, sem o riso frouxo, sem o vagar das almas tristes... dos passos soltos. Ainda resta resta um fio q prende esta mulher a um ponto fixo, que a impede de ser plena...mas mesmo assim, não gosto de pensar um mundo que a prendesse a muitas correntes...
Abraços
Nossa, Caio! Que blog mais lindo! Percebi que você tem um carinho especial pelos seus leitores e comentaristas, pois volta aqui e conversa com eles. Isso é demais!
ResponderExcluirMuito prazer conhecê-lo.
Rita Lavoyer- Araçatuba-sp.
Não posso comentar algo que só o poeta sentiu quando escreveu. Posso apenas dizer que gostei muito e senti coisas que não foram comentadas. Engraçado... Prefiro deixar aqui... Um abraço...
ResponderExcluirAh.. esta tal liberdade, mulher que precisamos perseguir, a qualquer custo. Gosto muito dos poemas e canções desta época, Caio, período tão infeliz, mas tão rico culturalmente. São teus versos que a poesia agradece e reverencia. Beijo.
ResponderExcluirPaula, A liberdade é magicamente feminina... Reparou que não há ditadoras na História, raríssimas exceções?
ResponderExcluirMas, não são necessárias muitas, basta uma corrente, e a "esperança equilibrista" não poderia continuar...
Rita, obrigado por sua gentileza. É um privilégio conhecer tantas pessoas que, devagarinho, se tornam tão queridas e dão sentido ao que escrevemos. As afinidades vão se entrelaçando.
Rosana, então, o poeta falhou, como sempre... Mas sua intuição me perdoou, descobriu que há ainda, no poema, muitos segredos. Nenhum capaz de desvendar o sentido da vida, contudo. Abraços, obrigado por suas palavras.
Nydia, a luta por liberdade aguça os sentidos, obriga à inteligência, sensibilidade e atender ao instinto de sobrevivência. Essa, a essência daquela geração libertária. Mas, quando caímos na vala comum da libertinagem intelectual como hoje e como norma, em nome daquela liberdade, o poema se desconstrói, a Poesia fenece e o poeta, "... qué um fingidor/finge tão completamente/que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente" (Fernando Pessoa). E ..."talvez/não tenha mesmo/nada/
mais a dizer"... Mas sempre "O poeta não tem mesmo nenhum pudor/
no corpo do poema/se desnuda e se expõe/em praça pública" (suas palavras, em Longitudes)... Beijos.
Natural o mundo ficar menor diante do teu peito.
ResponderExcluir1967 - eu queria ter te conhecido pela cidade.(Com todo respeito)
Pediria esmolas, não fosse
ResponderExcluiro meu orgulho de aço... O poema todo é belíssimo, mas esse trecho me prendeu.
Sucesso sempre.
Intenso Caio, aqui falando da força de um sentir, e da força de uma guerra civil de alma, o rasgar-se do orgulho, ou do admitir fraqueza diante dele, mesmo tendo amor..
ResponderExcluirObrigada pelas palavras, sabe o quanto..
voltando aos poucos. rs
é preciso recomeçar em várias esferas, e já botei o tênis, agora só falta caminhar..
beijãooooo
Bárbara, nosso querido Alceu Valença, assim falou:
ResponderExcluir... A gente
Se ilude, dizendo:
"Já não há mais coração!"...
em Coração Bobo. 1967: "era um chato.../ Ainda sou./ Se nem a boemia me curou/ enquanto podia/ a última esperança/ inda é a poesia."
Kenia, por esse espírito já fui preso, bati, apanhei... Por ele, quiseram as Musas, milagrosamente cheguei à velhice. E recebo, sem pedir, palavras lindas, como as tuas. Só posso estar feliz.
Christi... nada a dizer, só o sentimento do mundo. Pé na estrada, minha querida menina. Depois do sertão tem mais sertão; da estrada, mais estrada; do chão, mais chão. Sempre estaremos juntos, solidários e cúmplices. "Com fé não costuma faiá!". Beijos, guerreira. Vamo que vamo!
Parabens.....AMEI o seu blog
ResponderExcluirLIBERDADE..........
Linda e poderosa palavra....mas temos de a saber usar para não se tornar... uma arma de destruição fatal.......
Vivi a repressão em todo o sentido da palavra......
Vou voltar
Beijo duma Portuguesa
VG, liberdade exige consciência de direitos e obrigações. Não há meia liberdade, como não há meio amor. No momento em que começa a destruir, já nada tem a ver com sua essência. Entrementes, amo Portugal, raízes de sangue. Vivi a "Revolução dos Cravos", como jornalista, cantei "Grândola - Vila Morena" emocionado até a medula. Uma honra, sua presença; grato pelo estímulo.
ResponderExcluirCaio...expressei-me mal...Quis dizer que senti coisas que ninguém ainda havia comentado, mesmo assim, sem ler aquilo que achei do poema e sem querer escrever o que eu senti quando eu li, deixei um abraço...Foi isso...Na verdade teu poema desperta além das palavras escritas, no meu entender. Coisa normal acontecer, porque sempre entendo de maneira quase avessa, nunca ao pé da letra. É assim que eu senti...Beijo
ResponderExcluirRô, descuide! Tentar "ao pé da letra" leva, na poesia, a lugar nenhum... E se o poeta "não falha", alguma coisa está - aí sim - pelo avesso. Gostei muito do que escreveu, antes e agora. Não escrevo para críticas literárias, minha querida amiga: escrevo para quem tem sentimentos, como você. Senão, deveria mexer com matemáticas e afins. Obrigado pelas palavras, e tenha certeza do meu carinho.
ResponderExcluirBeijos.
Cheguei até aqui através do blog da Christi,
ResponderExcluirNão sei exatamente o que senti lendo esse maravilhoso poema,
na verdade pura vastidão, um entremeado de sentimentos,
poucas vezes sentido antes..
Não é um poema para ser lido rapidamente, mas degustado ao som
de Bethania e digerido com muito prazer!
Feliz de encontrá-lo!
Saudações,
Ester.~
Ester, chegou por mãos de delicada sensibilidade, de quem prezo muito. "Retrato do Mundo", no fim das contas, somos todos nós. Cada qual com sua sina e sua saga. Grato por suas palavras, e garimpei, não por acaso, outras, no "Manifesto Interno":
ResponderExcluirSe me abraçares
Talvez seja eu
Entrelaço de espinhos
Um rio de outro viver
Um refúgio e abrigo,
Serei o que puder ser
Ou não.
Abração, volte sempre.
Grata, muito grata, meu amigo! Sim, a Afinidade já nos tornou como velhos amigos.. e vc ressaltou a parte que mais me toca do poema, é isso que a poesia faz com a gente!
ResponderExcluirBjs .'.
Ester, é sempre bem-vinda. Todavia, também temos de levar em conta o que fazemos com a Poesia... É melindrosa e de difícil trato, pode crer.
ResponderExcluirAbração.