
Da interminável e densa e intensa batalha entre memória e história, o que resta são palavras. Só palavras.
Serão eventualmente garimpadas nos escombros do futuro. Estão convidados, porém, a revirar hoje o blogue pelo avesso.
18 de dez. de 2009
15 de dez. de 2009
PENSÃO DA ZULMIRA
Caio Martins.

(img: cvm - jaquieO3A - 2001)
Zulmira ficou prenha
nem bem saiu de menina...
Botada que foi na rua
virou-se pelas esquinas.
Virou-se de madrugada
juntou cacarecos do chão
levando em cima o filho
virou dona de pensão.
De dia enche a barriga
de bandos de comensais
de noite dorme encolhida
suspirando antigos áis.
Tem olhos de galardia
tem jeito de comichão
todo o resto ficou velho
embora diga que não.
Cozinha, lava e passa
diz sempre que não dá mais
se remexe cheia de dengues
produz cenas teatrais.
Manda à puta que os pariu
diz pencas de palavrões,
na desforra grita sempre
que maluca é o cú da mãe.
Quando lhe disse, porém,
da minha partida tão perto
botou-me seus olhos d’água
botou flores em meu quarto.
Não mais cobrou a comida
chorou de se consumir.
Foi a última inocência
que me restou no Brasil.
(Pensão da Zulmira - 23/06/1987)
12 de dez. de 2009
QUANDO SÃO PAULO CHORA
Caio Martins
Ao poeta Luiz de Miranda

(img: uísque en "las brujas" - fabian perez.)
Deste céu de São Paulo
de estrelas canceladas
caem lágrimas de ácidos.
Num soturno bar oculto
me confronto com o Poeta.
Comovidos,
estampamos na atitude
duas décadas ausentes
de encarniçado pelear
armas e palavras.
Luiz Miranda
vento pampeiro, ciranda
saudando, querendo
salvar o mundo.
Da natureza desolada
desfolhada
esfolada
a pó, resíduos químicos
fumaça de autos
e autômatos
cinzas
de um sonho impretérito
de cimento, vidro e aço
deste inseto canceroso
que chamam cidade
caem
sobre tuas profecias
lágrimas de ácido.
Com que coragem, irmão
lançastes tuas poesias ao trabalho...
Tiveras, talvez, a ventura
de ver teus versos repartidos
“entre vestidos, calcinhas
e sapatos...”
Na tua órbita azul de planetas
na poeira azul de sóis dos anos
não sabes mais amar o transitório,
matéria do meu canto.
E a vida, ávida
atrás de um copo, maneios
das mocinhas ansiosas
te faz gestos obscenos,
te comprime
qual vagina angustiada
de prostituta paulistana
corrosiva
ácida
azul...
(Pensão da Zulmira - 01/07/1987.)
10 de dez. de 2009
AQUARELA
Caio Martins.
(img: cvm - laura -1999)
Desenho-te em tintas fortes
e percorro traço a traço
teu corpo inexplicável
de fêmea, flor, formas
frágeis transparências.
E vens, tão nua espalhas
pincéis, palhetas, potes
telas, trapos, imagens
me desenhas insensata
numa imensa confusão
de pernas e bocas e abraços...
É quando, quase sem querer
gravas tua dor na minha pele
recebes meu murmúrio entre teus seios,
nada mais que um homem
nada além de uma mulher.
(em "mulher - imagens e poemas" - 1999 - fundação pró-memória.)
(img: cvm - laura -1999)
Desenho-te em tintas fortes
e percorro traço a traço
teu corpo inexplicável
de fêmea, flor, formas
frágeis transparências.
E vens, tão nua espalhas
pincéis, palhetas, potes
telas, trapos, imagens
me desenhas insensata
numa imensa confusão
de pernas e bocas e abraços...
É quando, quase sem querer
gravas tua dor na minha pele
recebes meu murmúrio entre teus seios,
nada mais que um homem
nada além de uma mulher.
(em "mulher - imagens e poemas" - 1999 - fundação pró-memória.)
4 de dez. de 2009
APARÊNCIAS
Caio Martins

Enquanto se paramentava, viu a tia a observá-la. Perguntou “que foi” só com um gesto de cabeça. Disse-lhe que se havia transformado numa linda mulher, a patinha feia de outrora. Observou-se ao espelho e detestou o que viu. A roupa, alugada, pesava e tolhia-lhe os movimentos. Mas, era madrinha num casamento, não podia destoar das outras mulheres da família, excitadas com o “glamour” a prazo fixo, de eras passadas. Não havia, ali, condições de discutir. Deixara-se levar.
Percebeu claramente nos olhos do marido, elegante em terno próprio, o desgosto e desapontamento, mas disse-lhe que estava linda... Não sabia mentir. Chamou-o de babaca, pôs brincos e colar de vidro e resistiu firmemente à vontade de tirar tudo, meter-se nos velhos “jeans”, tênis e camiseta desbotada. Retocou a maquilagem, respirou fundo e imperou: - Vamos embora! - Acrescentaria “seu cretino”, porém reservou-se. Na saída, o cão latiu-lhe. Parecia estranhar, inconformado.
Na festa portou-se com sobriedade, riu, brincou e elogiou, diplomática, os torpes manequins da metade do século passado em que suas amigas e primas se transformaram, radiantes; dançou linda valsa muda com o marido e passou o tempo puxando a armadura dos seios para cima. Ao menos, os sapatos eram seus e conheciam-lhe os pés, não a torturaram muito. Estava tensa. Aquela farsa não lhe correspondia, porém alguma coisa mudara. Ela mudara, os olhares ao redor também.
Algo como eletricidade percorreu-lhe o corpo. Via as pessoas como estranhos, surreais, e a todos conhecia desde criança. Farsa... jogavam aristocrático papel, de pretensas damas e cavalheiros que não eram, eram singelos. Simulavam outro mundo, universo, planeta, não sabia... Pegou-se numa profunda tristeza, na volta. Despiu-se agitada, dobrou a fantasia cuidadosamente, meteu-se no chuveiro e suspirou com alívio, talvez o maior que sentira na vida. Havia um cheiro bom de café, ao sair enrolada em toalhas.
Ainda de gravata não a olhou, despejando água quase fervente no coador de algodão. Há muito tempo ele não fazia café. O cão o observava, atento; igualmente a ignorou. Veio mansinha e abraçou o homem por trás, com ternura. Um olhar e o bicho saiu, de má vontade. Feito o café, ele voltou-se, percorrendo-lhe rosto e corpo com um olhar irônico. Deixou as toalhas caírem. Foi ao beijo, carícias, toques e abraços com vontade, e começou a rir: ridículo, o espetáculo. Ela nua, ele emperiquitado, as xícaras muito antigas, tempos da avó.
- Ôi! Que bom, ter você de volta... Ainda me ama?
- Não sei... Foi pior você, com sua gravata cafona... E você, me ama?
- Vai saber! Quando passar o susto, lhe digo... “princesa”!
- Você é um canalha... tinha que me impedir... “princesa” é a mãe! Tire essa porcaria!
Rompidas as aparências perceberam, ao menos no momento, a simplicidade mágica das coisas como elas são, na linguagem cúmplice dos corpos. Mesmo se com prazo determinado de uso, como um traje alugado.
(img: cvm - trajes a rigor)
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