Escrever é ofício árduo, dífícil e, quando não, arriscado. Da interminável e densa e intensa batalha entre memória e história, o que resta são palavras. Só palavras.
Serão eventualmente garimpadas nos escombros do futuro. Estão convidados, porém, a revirar hoje o blogue pelo avesso.
Profetizando tempos de colheitas nasceram flores mesquinhas violentando mais e mais a colina.
Areias desoladas clamavam e debatia entre mistérios o amor como uma casca.
Em vão tentaram os ímpios socorrer. Que sabem das tocaias dos vermes em silêncio nas sementes?
Em vão tentaram, imaculadas virgens interiores, impudicas e uniformes resgatar com cantos e mel...
Que sabem desraigados da deterioração intransponível das farpas das solidões?
Mas, vieste umedecer o silêncio com teu corpo (e)terno capaz, porém, de tantos rituais.
Vieste, então, perplexa murmurar aos ouvidos tronchos palavras desconexas pungentes apostasiando a vida.
Vieste...
Como que trazendo perdão entre prantos sem riso ou música apoiaste tua face em minhas mãos qual criança cansada de brincar e tanto brincas que me confundo e meu beijar se repete lasso e parco e áspero.
Por que vieste?
Se sabias que de meu canto só nasce o que não tem tempo de ser semente e fere quem dele se assenhoreia?
Se sabias que a semente silenciosa apenas estremece em sortilégios a inexorabilidade da morte?
Que brotaria inóspitos cardos e pedras e lajedos por que vieste?
Fui semente entre severas pedras...
Meu corpo é tenso em teu corpo minha boca arde em tua boca e parece-me, no momento, dilacerar as fímbrias da vida...
"Eu te amo" - Chico Buarque e Tom Jobim - com Telma Costa
Por que? Por que me olhas assim onírica, de minhas paredes lépida, ágil, intrépida enquanto nestas madrugadas frias traço com pobres palavras notícias relatos de amores, guerras preces, paixões, luzes e trevas e as Musas ingratas me abandonam desterram e ficas como dona, e deixo encantado em teus mistérios minha linda lagartixa? ...
Hoje, poeta, escrevo não mais como quem chora lamenta ou enlouquece, como quem foge briga e apanha e bate e crê salvar-se ileso e aos faltos do universo.
Hoje, poeta, escrevo não mais como quem morre escorrendo por complacentes moçoilas no cio, vadias vulgívagas elementares crendo de amor falar a torpes desesperados...
Hoje, poeta, escrevo de caso pensado, sem alma adrede e premeditado sem ira ou rancor ou tédio como quem solerte se exprime suspeito e dissimulado para cometer um crime.
Hoje, poeta, escrevo como quem, por afasia, declina da Poesia...
Saiu a pé pelo sábado choroso de outono, nem frio nem quente, um cheiro de mofo deprimente pelas ruas. Entrou num boteco esconso, trapiche onde estavam todos os amigos começando a noite que naufragaria, inevitavelmente, num oceano de cerveja, chope e cachaça... Todos os olhares cúmplices e solidários, solitários e comoventes antecederam os abraços, saudações, daí começou a alegria... Ou não fora ali o rei do cavaquinho, soberano nos diálogos com o violão do botequeiro e quaisquer vozes, nas místicas noites de chorinho e chorões?
Mastigou um torresminho devagar, ouvindo e desfrutando da zorra da moçada: qualquer desamado sofredor e desmamado, ali era personalidade, tinha ancoradouro. Estava com mal de amor... Tomou um martelinho de cachaça de a golinhos, entremeados por chope, já pegando o andar da carruagem quando a viu. Não a que se fora, mas uma carinha nova, de "olhar e voz envolvente, que atingia a perfeição”... Meteu-se naquele olhar profundo, no fundo decote e respirou, aliviado: o Barbudo, seu amigo, lhe enviava a cura...
Pegou o cavaco, afinou nos trinques e tocou como nunca d’antes na história deste país. Os olhos da moça não desgrudavam baixando-se, timidamente estratégicos, se focados. A galera extasiada nada via, ele entrara num estágio de magia irresistível e fora de questão. Quando pausou o ritual, foi um “- Aaaaahhhhh!” geral... Queriam mais, muito mais. Foi ao balcão de madeira escura (diziam que Cabral ali tomara sua primeira talagada ao chegar ao País das Maravilhas). Perguntou ao povo quem era a menina discretamente, macio feito um gato ladrão. Nada sabiam. Chamou o garçom e pediu que averiguasse se estava sozinha. Foi o velho astuto e perguntou-lhe se seu marido não queria nada. Estava só, com amigos...
Poderia antes, como Neruda, “escribrir los versos más tristes esta noche”... Todas as noites... Não, não o faria jamais: ela se fora? Que se danasse... Duro, todavia, o insistir da memória do corpo, os restos de energia eternamente entranhados, qualquer porcaria dentro e fora de casa lembrando e lembrando e lembrando... Venderia a casa, o carro... E as roupas, objetos pessoais, os móveis, o computador, os livros, mudaria para outra cidade, outro país, outro planeta... Outras mulheres? Estupidamente, no primeiro encontro pós-traumático, momentos decisivos, saíra-lhe o nome da outra; fora-se o doce enleio pelo ataque de ira, catar de roupas e o indignado bater da porta... Ali ficara na cama enorme pequeno feito um rato, chorando feito besta.
Ah! talvez revoltar-se ajudaria... Mas... como? Se ela nem saberia, senão por terceiros e notícia ruim de noticiário marrom, dos esparramos e desmandos? Entupir-se e naufragar em drogas, qualquer porcaria entorpecente e fulminante? Ir, a mão armada, e mostrar ao universo até onde um desesperado pode ser imbecil? Sair do emprego, cair na orgia, zerar a conta bancária e sair com a roupa do corpo pelas ruas atrás do fim do mundo? Procurar psiquiatra, psicólogo, terreiro, templo, mesquita, igreja? Não! Não resolveria... Fora-se? Foda-se! Ainda tinha o cavaquinho. Sorriu para a moça.
E, assim, conversaram sem pressa, de lá e de cá num chorinho vez por outra, lagriminha boba, escapada de um suspiro fundo, as mãos se tocando, litúrgicas. Horas depois, na porta do muquifo, despediram-se com beijo na face. Estava, como ele, em luto. Perdera também um grande amor. (img: fabian perez - study for the proposal)