Da interminável e densa e intensa batalha entre memória e história, o que resta são palavras. Só palavras.
Serão eventualmente garimpadas nos escombros do futuro. Estão convidados, porém, a revirar hoje o blogue pelo avesso.
6 de fev. de 2010
CALLE FLORIDA
Caio Martins
Saiu de Ezeiza sozinha, o táxi a deixou na Calle Florida com Lavalle, desceu apressada meio quarteirão arrastando a mala de rodinhas. Lá estavam: Papito e El Gordo. Já lhes sabia os nomes. Estranha descoberta, há uma semana. Passava, ouvira um bandoneón chorando e vira a aglomeração. Achara um canto para espiar. Debaixo de chapéu insólito, num terno de listras impecável e sobre sapatos luzentes, ele dançava tango com as turistas, mulheres que quisessem. Fascinara-se. Ficara ali, cravada, absorvendo cada passo, gesto, movimento. Quando se fora, a música permanecera nos ouvidos e dançara horas, só, no quarto do hotel.
Subiu no degrau da loja de roupas para melhor ver. Então cruzaram-se, os olhares. Finda a dança da vez, veio. Incomuns, os trajes de aeromoça num fim de tarde quente, no coração de Buenos Aires. Estava tensa, ansiosa, em plena síndrome de tensão pré-menstrual e, acima de tudo, ainda furiosa com um canalha que, na saída do avião, lhe passara a mão na bunda. Papito vem, como se a conhecesse desde sempre lhe beija a face e diz, sem sorrir: “- Bailás el tango, nenita?” - e a puxa para o meio da roda. Deixa a mala ao lado do Gordo, dizendo não saber, que não, mas a turma aplaude e grita: “- La azafata! La azafata!...”
- Gordo, metale “El dia que me quieras” ! - e a ela: - No te preocupés, nena, lo tenéz en la sangre! Yo lo sé! Solamente segui la música e dejate llevar!
Feito. "- Un, dos, un, dos - derecha - izsquierda - un, dos, tres - eso, de nuevo - pero sos un fenómeno - de nuevo...” - a voz grave e macia, o bandoneón, e tem a sensação de levitar, o tango acaba... - Gordo, metale "Sur" ! - e seguem, sente a saia justa prender-lhe os movimentos, percebe que ao perder o passo ele corrige, sente o corpo como que no cio, mas, diferente. Fecha os olhos, percebe que a mão, em suas costas, mal a toca. Esquece a rua, só existe a música, os movimentos harmônicos, sinuosos, perfeitos... E acorda com os aplausos, curvada para trás, os olhos muito velhos enternecidos fixos nos seus, a turba gritando: “ - La azafata! La azafata! La azafata! ” - porém, tem de ir.
Leva-a até a valise, El Gordo levanta, beija-lhe a mão e diz, baixinho: “- La requetecontra puta madre que los mil parió! Papito, és una diosa! Una diosa! Jamás he visto eso! Ni que hubieran mamado en la misma teta!” Sai rapidamente, por odiar expor-se. Cedo, terá outro voo de longa distância, não pode falhar. Levará a sensação mágica da dança delirante, os olhos velhos e os sons do bandoneón do Gordo: - Papito, volto la outra semana, te prometo! - e ele: “- Te aguardo, nenita! Te aguardo...
O Gordo, após esperar algum tempo, sai à procura do amigo. O encontra no Café Tortoni, fumando e tomando calvados, derrubado e sorumbático. Senta, pede um café. Papito sequer o olha.
- Che, que carajo que te pasa, boludo ?! Te esperé un montón, y te encuentro amargando una curda! Que te pasa, salame?
- La perdemos, Gordo... La perdemos...
- Que los parió, la perdemos quien, sorete?
- La nena del otro dia, la azafata... en ese avión que desapareció anteayer en el mar...
- Pero sos un tarado hijo de puta! Te enamoraste de la piba... Tás chifla’o! Puede ser tu nieta, pedazo de mula... Quién te dijo la mierda esa?
- Lo sé, Gordo, lo sé. Solamente lo sé! Pasado mañana no vá estar allá! Me duele el zoncora, Gordo! Y calláte, por Diós no digas mas una sola puta de palabrita, o te cago a palos!
Chega sereno, o Gordo já está lá. E, no reflexo da vitrine, ela. Cabelos presos num coque tenso, vestido sem costas colado, púrpura, de rasgo até o alto da coxa, saltos temerários. Ordena que toque novamente “El dia que me quieras”, vem, a toma pela mão, a enlaça e dançam. Pesa, na Calle Florida, denso silêncio. Dançam; quando fecha o último movimento, a tem pela cintura, curvada, solta... E a beija suave, delicadamente, antes de reconduzi-la fora das gentes que, perplexas, não aplaudem. Senta-se na calçada, diz ao Gordo que lhe dói o coração.
- Pero cabrón, bailaste con quien carajo? Tás chifla’o de piedra, te piantaste? Hablá conmigo... Hablá!... No te vayas, desgracia’o... No te vayas...
(img: estudio para el tango - fabian perez)
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El dia que me quieras
Carlos Gardel ( maldonado, 11 de dezembro de 1890 — mendelín,24 de junho de 1935 )
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E as luzes se apagam. Feham-se os panos.
ResponderExcluirNão é de leitura fácil pela vertigem do relato, o uso do tempo presente no organograma do tempo e o castelhano "portenho". Personagens fortes, que poderiam ser comparados com D.Quixote e Sancho Pança contra os moinhos da modernidade. Os ex-donos do bairro ganham a vida divertindo turistas, Dulcinéia de TPM morre num desastre de avião. Tragédia estritamente para letra de tango, comovente pela dor do sentimento de perda. Deu um nó na garganta.
ResponderExcluirAmigo obrigada por se ter registado
ResponderExcluircomo meu seguidor.Tem algum poema
seu que gostaria que eu inserisse
no meu blogue? Se sim, basta
deixar um comentário no meu
blogue, se o puder tirar daqui.
Um abraço e bom fim de semana./Irene
Jorge, companheiro leal de tantas jornadas, esse deveria ser o fecho do texto... Apagam-se as luzes, fecham-se os panos. Há que aprender com os Mestres do estilo.
ResponderExcluirGuilherme, na massificação pela mediocridade, todos os valores culturais que conduzem a universos elevados de sentimentos, consciência e inteligência são massacrados. Não há que lamentar-se, há que seguir lutando contra os moinhos de vento da burrice. Boa batalha, meu amigo.
Irene, acompanhar o "Silenciosamente Ouvindo" é um tributo ao seu trabalho.
Será uma honra, ter um poema publicado em sua página. Entre no "Prosa e Verso de Boteco" - Fale conosco - e mande-me seu endereço. Obrigado pelo carinho.
Caio, seu texto é de tamanha intensidade que me levou à Calle Florida para assistir ao espetáculo. E lá fiquei por um bom tempo...
ResponderExcluirO final surreal é belíssimo! Se num primeiro momento a dor é aplacada, logo em seguida ela se torna ainda mais pungente.
Beijos
Márcia
O tango, Márcia, começou nos bordéis, clandestino. Hoje resiste à "indústria da cultura"(sic!) e imbecilidade eletrônico-cibernética sobrevivendo em "ghetos", nos quais não se é lá muito bem recebido se não formos convidados. Muitos jovens, mesmo dançando de "jeans" e tênis (não sei como conseguem) o cultuam. Sobreviverá.
ResponderExcluir"Cuando se muere un bailarín, una estrella se apaga!"
Quem já não quis nesta vida correr atrás de um momento no qual o mundo parou?
ResponderExcluirEssa Calle Florida realiza esse desejo.
Muito bom, Caio.
Clélia Helmann
Clélia, suas palavras me envaidecem. Criar e destruir, degradar e restaurar são partes da condição humana.
ResponderExcluirÉ desafio imenso resgatar um momento de tais ciclos, fixando-o no tempo apenas com palavras.
Mais que todas elas, todavia, fala o sentimento da imagem de Fabian Perez, na ilustração: não basta "bailar", há que estar em transe.
Acho que a cozinha é divã de muita gente :)
ResponderExcluirLinda música!
Vanessa, sem a menor dúvida. Daí a originalidade do nome de seu blog, o "Meu divã é na cozinha". Dentre outros, o meu também.
ResponderExcluirEl dia que me quieras é bela declaração de amor, a escolhi adrede para a crônica: "o dia que me quiseres/ a rosa se enfeitará/ se vestirá de festas ..." - E Sur, mencionado, já lamenta o fim de uma época. São chaves para o texto.
Grato pela presença, volte sempre.
Caião,
ResponderExcluirtem essa tradução da letra, não sei se está tudo nos trinques
EL DIA QUE ME QUIERAS
Letra e Música de Alfredo Le Pera e Carlos Gardel
Gravado em 1935. (tradução literal).
Acaricia meu sonho
o suave murmúrio
de teu suspirar,
como sorri a vida
se teus olhos negros
me querem mirar.
E se é meu o abrigo
de teu riso leve
que é como um cantar,
se me aquieta a ferida,
tudo, tudo se olvida.
O dia que me queiras
a rosa que engalana,
se vestirá de festa
com sua melhor cor.
E ao vento, as campanas
dirão que já és minha,
e loucas, as fontes,
se contarão seu amor.
A noite que me queiras
desde o azul do céu,
estrelas ciumentas
nos olharão passar.
E um raio misterioso
fará ninho em teus cabelos,
vagalumes curiosos, que verão
que és meu consolo.
(falado)
No dia que me queiras
não haverá mais que harmonia.
Será clara a aurora
e alegre o manancial.
Trará quieta, a brisa,
rumor de melodia.
E nos darão as fontes
seu canto de cristal.
(fecha fala)
O dia que me queiras
adoçará suas cordas
o pássaro cantor.
Florescerá a vida,
não existirá a dor
E um raio misterioso
fará ninho em teus cabelos,
vagalumes curiosos, que verão
que és meu consolo...
Se não tá certo, deleta.
Rafa.
Grande Rafinha..., obrigado pela postagem. Está nos conformes, principalmente pela apresentação da autoria e data de gravação. Se alguém discordar, por favor, envie a correção.
ResponderExcluirObrigado, e não desapareça, pô!
Adorei o texto e mais ainda a música, que me levou à infância, com meu pai acordando a gente no domingo ao som do Carlos...que bom!!!
ResponderExcluirAdoro você e seus textos..some não!
Beijos!
Caio,
ResponderExcluirQue maravilha o tango...como eu gosto de dançar o tango!... Tem como que um cerimonial/ritual fascinante. Sente-se uma cumplicidade entre os corpos...uma ligação plena de envolvimento...
Um abraço,
Nela
Sol, também tenho lembranças notáveis devido o tango. Três anos em Buenos Aires, parte dos quais como taxista, criaram raízes profundas.
ResponderExcluirGrato pelas palavras, sempre delicadas. E aqui estamos, espero que por muito tempo.
Nela, é cumplicidade total. Mente, sentimentos, corpos, música, formam o que você tão bem definiu: um ritual, um cerimonial. Você não dança o tango: ele dança você. Certamente voltarei ao tema. Em - http://caiovmartins.blogspot.com/2009/04/el-tango.html - há um texto a respeito, gostaria que o lesse. Obrigado pela visita, volte sempre.
Las campanas entoaram e criaram eco.
ResponderExcluirAh...Caio, tu alma es porteña...
Hermoso estás en inspiración.
Moça aérea, talvez anjo a levar Gardel por entre vôos...e assim foi.
Sem a poesia de nuvens mas o estrondo dramático que um tango pede.
AMEI SUA POSTAGEM.
Bárbara, tens o dom das minúcias. BsAs é uma das cidades onde nunca precisei perguntar nada, como se nela houvera vivido antes do estágio atual, mero rito de passagem.
ResponderExcluirAeromoças: não é fácil atender um bando de prepotentes, sem tombar a traquitana, num tubo metálico a 10km de altura e 900km por hora... Há que dedicar-lhes, minimamente, um gesto de ternura. Um dia, ganham asas...
Gracias porteñas por la presencia y el apoyo.
Te gusto, crea.
ResponderExcluirCaio,como é belo o tango,não é mesmo?Seu conto mostra o dia a dia dos dançarinos argentinos pelas ruas de Buenos Aires e que qualquer mulher é capaz de acompanhar um profissional desses,sentindo-se diferente!Gostei muito!Abraços,
ResponderExcluirb, "gustar" tem conjugação imbricada, a dança de pronomes e sua posição parece (já que estamos no Carnaval) samba de criolo doido. Pero, a mi también me gusta tu estilo.
ResponderExcluirAnne, um prazer, vê-la por aqui. Falei mais que devia de tango, então registro, de sua autoria:
Nesse intenso samba enredo
Desfilar pela avenida
Acabar com o sossego
De quem dorme pela vida!
Também temos lá nossas milongas...
Forte abraço, meninas.
Linda música.
ResponderExcluirVanessa, grato pela visita e por acompanhar o blog com tanta simpatia. Prometo não mais misturar ofícios, e conversar sempre com a jornalista.
ResponderExcluirBeijos.
Meu Deus!!!... Não tem ningueém para fazer um clip da cena final??? O Papito chegando no ponto que sempre dança e olhando a vitrine com "o reflexo" (não para alguém, entenderam???) de um manequim de vestido vermelho e dizendo ao Gordo para tocar, sainddo dançando sozinho, no meio surge a aero-moça em seus braços e todo mundo congelado, ela desaparecendo depois do beijo e ele voltando para a calçada, sentando e morrendo e o Gordo chorando??? Seria de arrebentar o que sobrou do coração depois de ler o conto... Acha alguém para fazer um clip, Caio.
ResponderExcluirLígia, conhecendo seu estilo profissional, direto e claro, posso dizer que não é menor, sua emoção, que ao compor o texto.
ResponderExcluirO final acabou também me "pegando na veia", ao transmitir a "visão" das cenas. Sabe como funciono.
Infelizmente não lido com vídeos, estacionei na fotografia. Todavia, o roteiro está aberto.
Obrigado pela generosidade, e mantenha contato.
Oi..voltei pra dizer que fiquei toda boba com seu elogio ao meu texto...poxa, você, uma pessoa que admiro e escreve tão bem, elogiando um simples relato da minha emoção sobre o carnaval..putz!
ResponderExcluirFiquei super feliz!!!Voltei,tá...rsrs..aparece mais vezes!!
Beijos
Sol, muitas vezes o que achamos um "simples relato" tem símbologia insuspeita, não obtida mesmo em textos trabalhosamente elaborados. É o caso desse a que se refere.
ResponderExcluirAbraços, sempre que possível passarei por seu blog.