Caio Martins.

Dormia, entregue inerme, empapado de suor. Vinda da ducha, ajoelhou-se ao lado mergulhada no calor intenso do sótão, cama larga e lençóis de algodão cru. Prendeu os cabelos molhados, respirou fundo e observou o homem. Na testa, entrada dos cabelos, larga cicatriz muito antiga se mostrava quase nada, no lusco-fusco, azuis cortinas leves endelicando um meio-de-tarde ardido. Intrigou-se. Outras, supercílio esquerdo, lábio superior, corte no queixo, traço na têmpora, a forma de uma moeda perto da orelha. Intrigou-se ainda mais.
Viu-se, fascinada, seguindo as trilhas: contou mais de cem marcas, pequenas, grandes, lineares, disformes, enfim, até os pés, escrevia-se uma história e estórias que lhe eram desconhecidas. Tanto fez que ele resmungou e virou-se, de bruços. E, nada. Não tinha cicatrizes pelas costas, salvo uma redonda e dura, seguida de um traço fino comprido como seu indicador. Tiro? Saída. Na frente, certamente algumas eram de bala, outras pareciam faca; aquele sobrevivente metera-se, trombando de frente, em violências.
Imaginação solta, se diz que aquele não era homem de fugir. Gostou do corpo, de rosto feio. Talhado a cinzel, traços duros, barba densa e áspera, início de calvície avançando e, riu-se, orelhas de abano. Orelhudo. Sentiu-lhe o cheiro: entre cavalo e mel. Avaliou-lhe os músculos. Poderia, quisesse, submetê-la com uma só mão. Grandes, pesadas, grossas, grandes veias no dorso e subindo pelos braços. Um animal saudável... Porém, a tratara com delicadeza e suavidade, sem pressa e dissolvendo-lhe a ansiedade. Só a conduzira. Dança.
Estirou-se ao lado e, apoiada no cotovelo, seguiu bisbilhotando. Como que se comandado, virou-se de costas, esparramando pernas e braços. Sentiu-se coibida, pouco, riu-se nervosa, culpa boba logo desaparecida, nunca tivera a oportunidade de ver um homem assim à vontade, escancarado. No bar disseram-lhe, apresentando, que era um chato maravilhoso, calado e sóbrio, em fase de recuperação de violenta dor de corno por separação, recente e acidentada, de mulher louca. Ela também, de um cafajeste. Apenas lhe dissera: “-Venha!” - e fora.
Levou susto, dando com olhar intrigado e meio sorriso. Perguntou sobre as cicatrizes. O rosto suado endureceu ligeiramente; depois, vencido e sem saída, disse-lhe que era do ofício de caçar e prender. Noite adentro, depois de um jantarzinho caprichado de peixe, contou-lhe o caso de cada uma. Madrugada, e foram ao mar. Matara, quase morrera, vezes. Disse-lhe que não tinha marcas nas costas. Respondeu que entre morrer fugindo ou lutando, preferia a segunda. Perguntou se as cicatrizes, marcas do caminho da vida, doíam.
- Não! Só as de dentro... às vezes muito forte...
- Comigo também... Você é um homem triste.
- Não! Só não temos razão de rir. Acho que andamos bem machucados...
- Acha que poderia me amar?
- Acha que poderia ser minha amiga?
No silêncio de cortar com serra da volta, a mulher ensandecida surgiu-lhes, assombrando, na frente. Na mão a arma; girou-a no ar como se nada, pela primeira vez na vida deu as costas, protegendo, recebeu a carga de tiros. Fugiu, a louca. Ficou em estado de choque. Não se deu conta das pessoas, viatura, ambulância, confusão. Só foi. Nada soube explicar. Tempos depois, caminhos da mesma praia, quebrada por dentro, murmurou vezes, sem lágrimas:
“- Meu amigo!”.