Caio Martins

(img: cvm - porta do cárcere da Central de Polícia montevideana, esquina de San José e Yi)
A estaca
estanca a corda
no caminho da rua.
Nesta madrugada em solitária
tudo foi gasto, perdido
na corrosão de mitos.
Já gritei, briguei, joguei
a sorte, a vida, a morte
preparei conspirações
quedas e ascensões.
Enjaulado
confesso ter perdido batalhas.
A estaca
estanca a corda
no caminho da rua.
Dentro da madrugada uiva um cão
louco e comovente
desde sempre preso.
Coleira, corda, portão
o caminho da rua e da vida
acenando do outro lado.
Solidarizo-me.
Sempre fui solidário
com vira-latas,
nem sempre minha mão ficou contida ...
Uiva, meu caro amigo.
Dentro da noite, noite adentro
uiva
até fundires teu lamento
ao cimento da tua estaca.
Uiva alto e a bom som
até fundirem-se, pele e couro
a coleira e teu pescoço, teu ódio
e o osso que roemos juntos.
Uiva, para a noite escutar.
De minha cela de prisão, compañero,
eu que já fui guerreiro
e já não sou poeta, mais nada
uivarei contigo
de meu poleiro.
(montevideo - 27/11/1969 - aislamento del centro general
de instrucción de oficiales de la reserva - cgior)
Caio,
ResponderExcluirPrimeiro, venho agradecer as doces palavras que deixaste pra mim no meu pequeno espaço de liberdade de expressão.
Segundo, plena e inteira, eu me fiz leitura desses versos, e como pulsa os sentimentos e as sensações de cada palavra aqui formada, em algo que pelo que notei, foi vivido.
Parabenizo com coração a ti.
Lendo seu perfil, imagino o quanto és, e o quanto já não experimentou, para esse espaço ficar até pequeno para tanto que dentro há.
Que haja muita troca entre nós.
Beijos na alma
Chris
Caio, este poema é tão intenso que chega a doer o peito, amigo!
ResponderExcluirA prisão - um fato - revela também um sentimento: o de "estar emocionalmente aprisionado". As amarras existem e parecem querer estancar algo que não pode ser contido: a nobreza de caráter, a solidariedade, mesmo diante da solidão.
Obrigada pela partilha!
Beijos
Márcia
Parada dura a casa de pedra mano.... tô na que o truta queimou a fita na boa mas ficou sempre na moral e tem mais história que a bíblia, tá ligado?? Bota o babado pra correr mano-véio que a galera toda quer saber cumé que foi. Valeu aí mano mandou bem. Fui....
ResponderExcluirChris , tudo ficou na história. "Viajei, briguei, aprendi"( Drummond: As bruxas ), vivi. A vida foi complacente, não se foi. E essa delicadeza que em ti se reconhece, faz valer a pena.
ResponderExcluirMarcinha, só há solidão quando nos ausentamos de nós mesmos, como diz, do Acre, o amigo Pitter Lucena. Que o beijo da vida "...seja um beijo mais do que faceiro", e teu sentir e expressão jamais se percam, num lindo "furor festeiro".
Lima, Lima : "O poeta é um fingidor"( Álvaro de Campos ), ou, como diz o Dudu Nobre, "tinha cachaça no meio". Na hora do pega, bom malaco não chia, cabrito que é burro, berra. Passou, maninho. Ficou a certeza de que era justo. O resto, mais que poesia, é verso.
Como sempre, de situações duras e críticas, Caio acaba fazendo graça:
ResponderExcluir"De minha cela de prisão,compañero,
eu que já fui guerreiro
e já não sou poeta, mais nada
uivarei contigo de meu poleiro.
Eita Venâncio!
Nunca nos contou a história querido amigo, paizão, mestre e conselheiro (não falas nada, escutas muito). Do que sabemos, ias fugir da prisão ajudado pelos operários de um frigorífico, que estacionariam um caminhão junto a um muro alto e pularias em cima com outros presos, e que um soldado da guarda punha no correio cartas tuas para a família e amigos. Tens que escrever a história toda não só por eles mas por ti e teu código de honra difícil de ser encontrado e mais ainda de ser seguido. A publicação desse poema nos dá esperanças de conhecer a saga de um poeta libertário, algum dia. Promete que sim, e também faço minhas as palavras dos demais, destacando as do Jorge Sader. Bjs. Tchüss.
ResponderExcluirJorge e Chris: sempre há lugar para bom humor, principalmente se saímos vivos do incêndio. Prometo que um dia conto os causos. É só coincidir a insônia de todo mundo... faço dormirem rapidinho, com direito a cafuné e cantiga de ninar. Abração.
ResponderExcluirCaio
ResponderExcluirTrata-se este poema em prosa um dos mais lindos que li de sua autoria. Um sentido de auto-crítica, revelado fragmentos de um passado cujos espísódios eu próprio só conheço "fragmentos". Há passados que não podem ser passados, hão que ser passados para o presente e para o futuro. Agora, esta de "e já não sou poeta, mais nada...". Se algo vc é ou sempre foi é poeta, ô meu.
Grande Milton,
ResponderExcluirsigo me encontrando só como mero escrivinhador metido a besta (talvez, a condição para a poesia) que não briga com, e nem rejeita qualquer momento do passado. Na trombada com totalitarismos, no Brasil e fora dele, tive sorte, saí vivo. Quem sabe a vivência na periferia da Vila Califórnia tenha ajudado muito. Mas, nada disso tem importância ante o significado da palavra amigo. Obrigado, meu amigo.
Forte abraço.