12 de dez. de 2012

Relíquia de guerra

 Caio Martins

Pegou a arma, relíquia de guerra,  e botou em cima da mesa. Reiúna, como diria seu já falecido e estimado compadre Trindade, que lhe dera couto e abrigo no passado, pondo a enorme estatura épica de ébano e parca artilharia contra as patrulhas do governo. Pois, fora um insurreto, um insurgente, um rebelado...  Dizia-se, a sorrir, velho, muito velho...

A moçoila, monitor à frente, ouvia e gravava - quase catatônica - as histórias de embates, combates, guerras, num rol de violência nos quais astúcias e manhas traçavam, em segundos, táticas e estratégias mais que exemplares: deslumbrantes! Afinal, sempre sobrevivera. Salvara-se de homéricas pancadarias, tiroteios, prisões, cercos, enfim... era um guerreiro. Não se salvara, incidentalmente, das mulheres de sua vida. Sempre estavam presentes, às vezes com muito espalhafato. Que paixões avassaladoras... que freges de tremendo sacana...
   
Dissera ser, ela, a primeira e única a ouvir seus causos, nos quais afirmava a fidelidade  a si mesmo e seus códigos de honra. A cara, um labirinto de rugas. Os olhos baços, com aquele cansaço antigo de quem já percorreu e viveu - ida e volta - a história do mundo. As mãos nem tão firmes, mas ainda capazes de carinhos e desatinos inimagináveis. Elegante. Era, para uma jovem fêmea ativa da espécie, um interessante macho solitário, renuente ao rebanho.

Fumava, o desgraçado... um após o outro. Tomava cachaça braba e, no arrepio das modas circundantes de amplas e abundantes ofertas gratuitas, pagava putas. Dizia, cínico, que não pelo serviço, mas, para que se fossem. Politicamente incorreto; porém, algum sentido oculto e definitivo, premente e sub-reptício, a atraía poderosamente. Mais que o necessário.

Pergunta-lhe, então, de mulher em sua vida. Remontando a placa lateral do revólver, ele pára e sorri, fixando mirada astuta  na câmera do notebook. E após compungido silêncio, barulhento como briga de facas, lhe devolve a pergunta: "- Por que?" Mais que em linha virtual sente-se em campo físico, material. Fora pega... Não por um moleque, descartável com simples e sonoro “- Vaza, mané!”. Mas, por um predador oportunista e experimentado, conhecedor de jogos que não mais são jogados pelas manhas, sensibilidade e inteligência exigidas. Ah! - saberia das coisas.

Prudente seria apertar o botão “off” e sair da entrevista, mas o sentido clandestino não permite. O temor? Por que, aceita a pauta, pusera-se a cuidar de arma enquanto não respondia, mas, virando suas perguntas pelo avesso, dizia somente o que queria? Seria um fato extraordinário - embora pavoroso - se o sujeito se suicidasse ante a câmera. Indícios. Não vacila: suplica-lhe o endereço, veemente, a voz uma oitava acima, já vestindo caríssima blusa de fio de garrafas “pet” recicladas, subindo acrobática nos saltos de policarbonato e exigindo-lhe, com autoridade que jamais pensara ter, que a esperasse. Não descarta o imperioso batom vermelho.

Encontra a porta aberta. No meio da sala de ares solenes de antiquário, a mesa posta à luz de velas, com rosas vermelhas gloriosas exibindo-se impudicas, sombreando um "cabernet" raríssimo à espera e, da cozinha, um cheiro irresistível de delícias inimagináveis vindas da "rotisserie" da esquina... fora, mais que traída, atraída. Mas, afinal, dava-lhe introito de Musa, tratando-a como se à última esperança de Balzac, em harmonia com a ascensão emblemática de Beatriz ao paraíso de Dante. E afinal, ao receber galante beijo na mão, vê ter porte altivo e superior, de quem se basta e providencia, de um cavalheiro intemporal. De quem realmente sabe das coisas... Rituais.

Diria, tempos depois e famosa, que um dia e por acaso, vésperas de Ano Novo, conhecera um homem que a levara a ser muito mais que prosaica mulher. Guardaria a relíquia de guerra como troféu da paixão feérica e deixar-lhe-ía  parcas  lágrimas e rosa vermelha única, no último ritual.

(scs - 12/12/12 - img: sean connery-highlander)


2 comentários:

  1. Sinto como se estivesse numa grande sala, onde uns poucos conversam sobre o presente incerto.
    Caio conduziu bem uma redação fechada aparentemente, mas de portas abertas para quem quiser entender.

    Abraço,
    Jorge

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  2. É vero, Jorge Sader... às vezes, a multidão ausente nas salas de visita faz muito barulho... Forte abraço!


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Na busca da excelência aprende-se mais com os inimigos que com os amigos. Estes festejam todas nossas besteiras e involuímos. Aqueles, criticam até nossos melhores acertos e nos superamos.

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