Caio Martins
Para Jeanne
Apaixonara-se, tardiamente e inutilmente, por aquela mulher feita de mistérios e encantamentos. Lera todas as cartas cuidadosamente escritas em papel-linho e letra clássica perfeita, de tom azul-escuro e impecável na composição, sem assinatura. Intelectual, culta e judiciosa, nem por isso deixava ao acaso encantamentos e magias femininas, certo charme sóbrio e instigante. Restava ainda raro fragmento de alguma essência tão sutil que tornara-se, com o tempo, quase imperceptível. Dizia, num trecho da última:
“... e tens, quiçá, certeza deste teu querer que me dizes assim tão forte, se sabes que é impossível e que somente a loucura ou a tragédia honrariam? Ousas tanto por tão pouco, meu querido amigo... Nada sou senão folha que águas definitivas levam, no rio da vida e tu, pássaro de voo alto, aos ventos, no tumulto das tempestades. Chegasses tempos idos e saber-se-ia quê seria, se deuses ou demônios outro destino se nos oferecessem? Não há que nisso pensar... Ater-se a sonhos e utopias, hoje, seria por demais penoso e indesejável por inatingível. Tens tua vida e teus caminhos, eu os meus. E “Se vires que pode merecer-te/ Alguma coisa a dor que me ficou/ Da mágoa, sem remédio, de perder-te”, lembra-te que não saberei jamais de tuas carícias, nem tu de meu dispor. Não te sendo possível ser apenas e tão somente meu amigo querido, tiras-me a decisão do prazer de ter-te confidente, e me obrigas a não mais escrever-te. Eis que me impede, a honra, de transgredir compromissos assentes e invulneráveis... A menos, como eu disse, quiséssemos a tragédia, filha dileta da loucura...”
Um convite, talvez? Casada! Era casada... Por isso não assinava. Faltavam-lhe as cartas do outro jamais encontradas, mas intuía o conteúdo, quisera saber-lhe da forma e se também tão refinada. Certamente, uma dama. Como seria, como se vestiria, como andaria, comeria, choraria, cheiraria, riria, amaria? Seria desbragada e louca, ou pudicamente quieta como que contendo um vulcão? Num trecho de outra incidia, após discutir causticamente Bakunin e o Tomismo declinante:
“... Não me digas tais tolices, a elas sou alheia... Como ousas pensar em minha pele, meu calor, que se amenos são por femininos e portanto idênticos a todas as mulheres, apenas a ti te chegam por sermos naturalmente tão desiguais, porém intelectualmente tão semelhantes? Aqui, querido amigo, residem os laços: te amas em mim, porque te reconheces. Não são bem aceitas as que, como eu, invadem teus domínios e se apossam do privilégio de teus conhecimentos. O que nesse campo houver e vier a existir, é de meu interesse e gosto, me fascina, mesmo que me censurem os homens por intrometida e as mulheres por atrevida; tal peso não me arca, mas não serei por nenhum, jamais, considerada promíscua pois que motivos não os darei... Não me digas o que dizes, entre mesuras e mesinhas, às que te facilitam a saciedade de teus impulsos. Fala-me sem jaças de teus pensamentos, digas como vês o universo e o mundo, luta comigo por tuas idéias, ideais e conceitos sem tremores, e homenageia-me com a delicadeza de jamais esqueceres que sou como tu, porém diferente, por mulher. Tens meu carinho e afeto.”
Durona! Casada com marido toupeira... Sem dúvidas, um mercador, militar, navegador, membro da corte, beócio prepotente que, contando moedas, acharia estar cumprindo sua função social... Por certo, para transbordar luxúrias, meter-se-ia em bordéis para perfazer, com prostitutas, as esbórnias que conceitos arcaicos o impediriam com a esposa. A esta caberia certamente a administração doméstica, a criança dos filhos e a apresentação em cerimoniais nos quais posaria, patética, de mulher de fulano de tal, e transar por um buraco na camisola... Mal amada? Provavelmente. Porém, lia. Sabia das visões de mundo, ávida por debatê-las sem arroubos e valentias por amante das refregas, nas quais o argumento valeria mais que exóticos bigodes, vozeirões e medalhas no peito. Por isso, o fascínio pelo outro, parco em posses e definitivamente pródigo em prosopopéias...
Catou, desconsolado, a pasta com as velhas cartas recém descobertas num relicário de antiga escrivaninha, desligou o computador e meteu-se na garoa fria, ruas molhadas e multidão bovina, inconformado por não viver há mais de século atrás e conhecer a mulher sem nome que, por certo, o amaria. Como ao silente bisavô boêmio, músico, poeta e anarquista.
(img: o nascimento de vênus - alexandre cabanel) (v.califórnia, 22/10/10)
Da interminável e densa e intensa batalha entre memória e história, o que resta são palavras. Só palavras.
Serão eventualmente garimpadas nos escombros do futuro. Estão convidados, porém, a revirar hoje o blogue pelo avesso.
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Bravo,Caio!
ResponderExcluirHá muito tempo não lia uma prosa poética tão pungente e assim rica em lirismo, do começo ao fim. Perfeita no estilo, intensa e belíssima no conteúdo. É crônica para ser lida, relida, trelida e guardada para leituras posteriores.
Ressalto este trecho:
"Aqui, querido amigo, residem os laços: te amas em mim, porque te reconheces."
Parabéns e obrigada pela partilha.
Beijos
Márcia
Pedaços de cérebro, pedaços de coração!
ResponderExcluirParabéns, amigo Caio!
Abraço,
Jorge
A arte da perfeição
ResponderExcluirabraço
Tens meu carinho, afeto e minha toda admiração!
ResponderExcluirmuito bom, amigo, fiz o link no meu blog, parabéns
ResponderExcluirQue dizer de tal gentileza, Márcia? Sou-lhe grato e fico muito honrado. Reconhecemos, no outro, o que mais nos marca. Fora, evidentemente, das conjunções astrais, caprichos dos deuses e outros fatores imprevisíveis.
ResponderExcluirBeijos, minha amiga.
Grande Sader, realmente, muitos cacos e algumas relíquias, porém revividas para a atualidade. Todo amor impossível comove, Mestre.
ResponderExcluirAbração.
Meu caro Juan, obrigado pela consideração, é recíproca. Abraço, Poeta.
ResponderExcluirCarla, velhas cartas têm vida própria, segredos e estórias extraordinárias. Não sei o que restará do mundo virtual. Talvez, vagas lembranças de um carinho, um afeto. Quem sabe, uma "Cadeira Vazia"... Obrigado pela visita.
Grande Rogel Samuel, a quem reverencio e respeito:
grato pela gentileza, muitas vezes ficamos realmente eras com uma estória pronta. De repente, ela se rebela e ganha mundo.
Forte abraço, Mestre.
Que coisa. Que coisa poética e reveladora com a delicadeza de filigrana, que a ninguém fere e se encarna no avô anarquista, que se tece com uma possível e onírica linguagem do séc. XIX neste poema em prosa. Lindo.
ResponderExcluirObrigado, Aracéli. Deve-se o estilo, essencialmente, à biblioteca do Éttore - herdada pela Ginette - e às influências literárias da minha querida maninha, de cuja crítica não abro mão! Beijos!
ExcluirO existencial contundente em dois estereótipos do amor impossível. Debatem-se entre a inquietação do intelecto-tudo-ou-nada, e a acomodação para a salvaguarda da moral burguesa - "a tragédia é filha dileta da loucura". Resquícios do romantismo no pano de fundo da filosofia e das ideologias, estruturante caminho da sedução. Excelente crônica, Caio Martins..
ResponderExcluirGrato por suas palavras, Marco. Também quer revelar a perplexidade moderna que nos assoma, na atual fase de regressão neolítica nas coisas não só da Arte, mas, do jogo afetivo enquanto lúdico elemento humano. Somos, mesmo, uns bichos muito complicados... Forte abraço!
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