12 de out. de 2009

EXÍLIOS


Caio Martins

Para Maria Augusta - (Buenos Aires/1974)

Atrás, um exército, e dos lados, mata por cima. Aquela serra era, todavia ruim e trancada, léguas de mato menos inimigo que tantos tais que vira. Do grupo de besta de cidade metido em coisa de armas, salvava ninguém. Gabirus. Um me desafiava, passou bala perto da orelha, cismei. Vi que, mais uma, aquele estava morto. Ajeitei defesas, mamente, eu. A moça me tinha dito, séria, as tramas de levar-me para o bando deles, na sombra.

Nem sabia, desgostei profundo. Asco. Não cheiravam nem fediam.
Daí agradeci, ela estava com uma blusa aberta, mostrando um seio pequeno, gostoso de se brincar com ele; levei a mão, veio, arisco, tapa na cara, jaguatirica. Seguiu falando como se nada, a cara ardia - eitcha! - deslumbre que tinha pela moça; inteira. Nesse dia, já no terminar dos vam’bora, a gente caminhava passo a passo, serra acima, oscilando debaixo de fuzil e das mochilas. Pesadas, estavam. Muito arquejava demais, ela, que era coragem que se me esvaía. Derroteiros. Peleja alheia.

As correias entravam fundo nos ombros morenos, as pernas tremiam a cada passo, então parei - que a gente era bengala dos cegos - sem dizer nada arranquei-lhe a mochila, passei para mim, peso de mula de tropa. Ela falou só com os olhos. Fomos subindo, subindo, ela atrás de mim com as armas, empurrando quando eu pedia, a pendente aquela judiava, descaminhos. Cantava na cabeça para Ossãnhim, nenhum pé se perdia. Chegamos, enfim, onde era o ponto de descanso, numa beira de serra danada de funda; lá em cima, um ar que ardia. Ela ajeitou o mochilão, eu fiquei sentado, respirando fundo, fungando bufado. Todo o corpo um formigueiro, eletricidade, onçado. Chegaram, os assonsados.

Ela arrumou minha rede, pedi no chão, desarrumou, fez a cama dela colada. Aí o do comando arengou sobre tarefas, elogiou a vanguarda, ela e eu, me nomeou chefe de operações para o dia seguinte. Pedi, num particular, que não. Que já estava tudo no fim, fuga do cerco, que não começasse de novo então, incomodasse com besteiras, que não valia a pena, que a situação não dava para mais, que melhor assim, de pau-mandado, no cabresto, fazendo direito, mas não mandador, capataz sem autoridade de gente sem lei que não cidades. Adiantou nada. O caboclo estava trembleque nas pernas, injuriado: queria bicho do mato para garantir a fuga. Eu.

Daí, enfezado e armando desastres, deitei, antes passei na queda d’água para escorrer cansaço. E depois de tanto tempo - Eta! banho gelado da gota serena! - fiquei num cheiro bom de limpo e lavado; até peguei navalha e cortei barba, no escuro do lusco-fusco do pé da noite, tivesse uma água de barbear de cheiro, ficaria bom demais. Deitando, virei para o lado de lá do canto dela. Daí que depois da guarda, madrugadinhas, veio, e enveredou na minha lona. Chão, folhas debaixo.

Veio... Disparou meu coração tão forte que parecia que o mundo ouvia. Cheirava a sabonete, perfume de mato, cheirava a mulher nos aprontes, cheirava! Orvalhos... Foi uma eternidade muito devagarinha, aquela. Sem susto, cada um sabia do outro desde sempre, a gente era uma coisa que mal se movia. Chorou muda, dentes fundo no meu ombro, que não ouvissem. Clandestinos. Mundão errado, dentro de cada um do resto vivia uma violência pantanosa, como se tudo o que era sentido de vida atolasse, ali. Para mim, despenava, boi de guia. Uma só vez tanta ternura, definitiva, e nunca mais? Assim?

Zero nos prazos, pé no mundo, decidi que não voltaria à guerra. Não mais soube. Cada um com sua saga, tercei ferros, forçado, em outras terras sem matas, serras, ela. Ficou na cicatriz no ombro, no gosto e cheiro moreno, nos grotões das memórias tontas - tantas demais - delicadezas na ressaca de entreveros, na dúvida de ter pego - únicos hora e tempo certos - na serra, a senda errada da vida, ela para outros lados. Não mais. Exílios...

(img: cvm-maciçorubi /H52- trecho de “Anti-horário” - 1976 - RBI)


13 comentários:

  1. Eu lendo o Caio e quase certo de que relia Grande Sertão. Comovente. Melhor não poderia.

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  2. Guilherme Jr.14/10/09 10:15

    Usou ferramenta alheia de fato, Dr. Jorge. Mas com a propriedade de quem escreveu Fuzuê (publicado há alguns meses) em gíria. Certamente o autor trabalhou ou trabalha com traduções, mas não é isso que importa. O essencial é a história decorrente de fatos e entrelinhas, um retrato da esquerda brasileira daquelas épocas sombrias. Novamente deixa a curiosidade sobre um romance não publicado e guardado, o que não deveria, há que sair da "senda errada da vida". Li com prazer.

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  3. Mestre Caio, você me fez lembrar da época que passei na caserna. Das operações em plena Ditadura Militar. Dos aperreios, da solidão, da dureza dos manobras, do inferno verde chamado Amazônia. Depois de tantos dias varando a mata, com medo de onça braba, começando raizes, folhas e ervas durante treinamento de sobrevivência, sonhava com a cidade, a cama limpa e cheirosa, os amigos, a família, a mulher desejada e a maldita manguaça nos finais de semana. Não deixe de publicar suas memórias. Estamos aqui para ajudar. Grande abraço.

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  4. Caio, Guimarães Rosa é meu autor preferido e além da beleza dos seus enredos, a reinvenção da linguagem do sertão é algo que, pra mim, beira à metafísica. E agora você me apresenta um texto tão próximo desse estar além do que a palavra pode dizer e me diz que ainda está pensando em publicar? Por favor nossas mentes e sensibilidade precisam desse deleite. ADOREI!!!

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  5. Se é verdade que nada se perde e tudo se transforma o conto é um vazamento desse processo. Tem várias poesias e contos que deixa escapar partes da história neste blog. Tinha é que fazer um para contar o que aconteceu de jeito simples e sem enfeites mais jornalístico ainda mais num país que ninguém quer pensar e só anda atrás de besteira e perdeu a memória e imaginação. Parabéns assim mesmo!

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  6. Emocionante! E vc escreve de uma maneira tão peculiar, é tudo tão vc mesmo com as palavras...Lindo!!!
    Passou da hora de publicar!

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  7. Essa Marselinha é o blog da minha filha, depois que escrevi o comentário é que vi que estava com a identidade dela.
    Marisete Zanon

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  8. Caio, este texto é forte, intenso, em todos os sentidos - a época em que a estória se passa, as diferentes sensações vivenciadas... Diria que é de um lirismo quase que contido...
    Magnífico!
    Beijos,
    Márcia

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  9. Mestre Jorge, a personagem conta o conto - por isso a primeira pessoa - e "empresta" o estilo. Emoções não seriam diferentes se em Ipanema, Cabrobó ou Kodiak. Éramos jovens.

    Guilherme, "Anti-horário" não pretendeu ser denúncia ou crítica, nem retratos de condições humanas. Só uma estória na História que, como em "Fuzuê", usou recursos de estilo até por desafio. E, realmente, não editar nem reescrever, foi caminho errado.

    Lucena, mesmo nas piores condições, a certeza da volta à "cama limpa e cheirosa" nos faz aguentar qualquer coisa. Difícil é quando não se sabe se haverá volta. E sei que você, com toda a generosidade acreana, estará sempre pronto a ajudar amigos. Com manguaça e tudo o mais...

    , a forma, muitas vezes, oculta inexplicáveis conteúdos. A mente jamais os deslanchará mas, a sensibilidade, sempre os perpassa. Feliz, se gostou. É sentença maior.

    Maitê, esse trecho "vazou", realmente. Quando soube da morte de Guta, nada doera tanto quanto doeu. Todavia, não cabe a mim mais uma "reportagem" da época. Muito já foi escrito, mais que o suficiente. É fato que ganhamos a batalha contra o arbítrio, mas estamos perdendo a guerra contra a estupidez humana. Eternamente.

    Mari, ainda não passou, mas está na hora de criar vergonha na cara e publicar - respondendo a todos. E, muitos beijos, carinhos e mimos para Marcelinha... Ficou ainda mais gratificante com a identidade dela.

    Márcia, vindo de ti, é honraria rara. A característica do original é esse lirismo contido que tem para mim, atualmente, na tua obra nítida expressão. O que não significa, absolutamente, que se abstenha de espernear, sair no braço e botar a boca no trombone se necessário. Ou derreter-se, miseravelmente, se alguma paixão irremediável assim exigir. Veja-se "Ao som de madrigais", no Boteco.

    Abração a todos. E, toca a escrever até aprender.

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  10. Vc é generoso, da forma das suas vivências e da sua escrita, lendo o que escreveu, os comentários e a resposta a eles, vejo o quanto tenho que aprender e ler-te mais..
    beijo na alma

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  11. Chris, a generosidade é de todos e fico feliz pelos contraditórios. Forçam a tomar atitudes, como a de querer sempre aprender e melhorar. Fico, também, vaidoso pelo "quero mais", especialmente vindo de ti, cujo acervo é inimitável. A recíproca é, além de verdadeira, uma honra.

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  12. Milton Martins7/11/09 18:08

    Caio
    Já disse que seu estilo me dá aquela dorzinho de cotovelo. Já disse, também, que vc deveria repor suas memórias num livro. Vejo que, devagar vc vai revelando passagens daqueles idos o que é muito bom. Espero um dia ler as "memórias integrais". Parabéns pelo texto. MM

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  13. Milton, vindo de escritor da sua competência, é, mais que elogio, imposição de melhorar cada vez mais, não importando o trabalho necessário. Para o ano que vem espero terminar não memórias, mas, as estórias nelas contidas. Que os deuses me ajudem...

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Na busca da excelência aprende-se mais com os inimigos que com os amigos. Estes festejam todas nossas besteiras e involuímos. Aqueles, criticam até nossos melhores acertos e nos superamos.

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