Caio Martins

Levavam espingardas e o carcamano debochado e falador, dono da única venda da região, duas garruchas 44 tauxiadas de prata, na cinta. A fúria se aguentou no freio, escorregou feito caxingui e saiu do risco. Subiu, depois da mata, a estrada esburacada e pedregosa, já nas terras do pai. Parou na capelinha e caldeou jura de morte. Não lhe dissera, o velho Aquiles - jagunço que fora pé-de-tronco de Dioguinho nos fins dos oitocentos e que lhe fizera a mão nas armas, que mãe era coisa sagrada? Foi a passo, o sol queimando as costas, aquecendo venenos. Sábado, estavam todos no descanso e preparando o terço. Entrou quieto e saiu calado, a papo-amarelo de esguelha já carregada e o resto da munição no embornal. Pegou o burro Sereno - que burro não dá incerteza - no cabresto, pulou encima em pelo e refez a trilha, a passo.
Desceu fino ante as seis portas da venda, o debochado e a caterva riam no balcão. Chegou manso, cabeça baixa e olhando de lado, de repente falou o nome do sujeito e perguntou que é que estava falando da mãe. Do riso fez-se silêncio de pegar com a mão. Antes de ouvir o “- Que é que tá dizendo, moleque!” - já pipocou o primeiro tiro que torou a ponta da orelha do fulano e botou, eram uns cinco ou seis, os basbaques em correria. E foi a carga toda, menos duas balas, arrebentando garrafas, arrancando trens das prateleiras e, a última, quando o carcamano pulou a janela do fundo, tirou-lhe lasca da bunda. Com duas, ainda tinha de quê se valer no recuo, se acossado, aprendera com o padrinho, o Grande. Saiu devagarinho, solerte, metendo mais munição na carabina. Por todo lado, ninguém. Escafederam.
Chegou em casa na toada em que foi. Na cozinha, pegou os apetrechos do pai e limpou a cortadeira, cuidadosa e concentradamente. A mãe veio e perguntou que diabos andava fazendo com a carabina, no seu sotaque siciliano arrastado e o vestido de terço azul, de golinha e florezinhas fru-fuzando. Disse que só fora afinar a mira, que depois falava com o pai. Veio este, alarmado e bufando. Saíram ao pátio de secar café e contou-lhe os fatos da coisa feita, curto e certeiro. O homem tropicou nos cascos. Parando de xingar, olhou duro o moleque nos olhos, segurando-o pelos ombros e sacudindo:
- Fiadaputa! Cabeça de mula! Por que não me disse antes de armar essa desgraçeira? Eu é que tenho de resolver isso! Por que?
- Porque se o senhor vai, aí ‘tava o boi no chão... Ia e matava. Não tinha senão...
- Senão? Que bosta de senão, seu besta?!
- Daí a mãe ficava sem marido e nós sem pai. Eu sei onde atiro. Eu sumindo, é boca de menos e a família segue sem mais... Mas dá em nada, pai, esse se mete no cu do mundo e nunca mais fala da mãe de ninguém. É um cagão, pai, vai ter outra vez não...
Levou um chacoalhão, sonoro cascudo na cabeça e sapatão na bunda, a ordem de arrumar uma trouxa de roupas, pegar o Sereno e amoitar-se, uns tempos, na distante Lagoa Preta, na casa dos parentes. Lá ainda mantinham, naquele primeiro quarto de século, jagunços e arsenal. Foi. Um tempo, e voltaria herói da mãe, cisma do pai e orgulho do Aquiles Grande, o último dos trabuqueiros. O carcamano sumira e, diz quem conta, estaria correndo até hoje, no Inferno, com o Tinhoso cascando-lhe fogo no rabo.
(img: cvm - pietá - michelangelo, sobre arquivos)