Euclides da Cunha, reportagem de um genocídio.



Ao Mestre, irmão e amigo Luiz Olinto Tortorello.


O principal não é a vida particular do autor, mas seu trabalho e a obra resultante. E sempre que aparece um expoente, todos que nada produzem passam a analisá-lo, explicá-lo, desmontá-lo, como se assim, num tipo estranho de biopsia, pudessem descobrir como produziu sua obra e, por consequência, tomar posse magicamente de seus dons, de sua arte.

A “indústria da arte”(sic!)notadamente a de “best-sellers” é a confirmação mais crua da impossibilidade de destrinchar o dom da escrita, e comprovação do reinado próspero, financeiramente, da mediocridade. A literatura converte-se num produto enlatado, pasteurizado, destinado não à informação e formação do leitor, mas, ao contrário, num elemento anestesiador de sua consciência. Constrói-se um livro em linha de montagem da mesma forma que um computador, um automóvel, um edifício pré-moldado, badulaques de consumo. Escreve-se aquilo que se supõe o povo quer ler e comprar.

Euclides da Cunha escrevia aquilo que em sua época - como hoje - as forças dominantes não queriam exposto e desvendado, como ocorre em “Os Sertões”, reportagem de um genocídio.

O Jornalista e os fatos

Mais dois fatores são determinantes da publicação literária em nossos dias: primeiro, a transformação lingüística imposta pela mídia, normalmente repetidora de traduções lineares do idioma inglês norte-americano e agravada pela má formação dos professores de português, principalmente no ensino fundamental e básico. Isso impede os leitores de entenderem quaisquer obras que empreguem linguagem de qualidade, rica no vocabulário e nos recursos de ortografia e sintaxe, ao serem submetidos violentamente à estereotipagem do estilo. Tudo que não representar essa tendência medíocre de escrever conforme o idioma dominante, o inglês, é considerado antiquado, rebuscado e, portanto, desnecessário.

Se o locutor principal ou o ator de moda da rede de televisão campeão de audiência afirmar que “Eu vou ir!” – essa será a matriz para o tempo futuro, tradução linear, pobre e ridícula do “I will go!”, mas que, por isso, dá às pessoas a identidade com o centro do poder, a Metrópole. É a única forma de se sentirem vivas, mesmo que como patéticos imitadores. Pior, imitadores de imitadores. Depois, está a questão da identidade, na qual prima a vergonha de ser brasileiro e de ser capaz de produzir obras-primas. Na época de Euclides, o narcótico cultural, especialmente o literário, era europeu, notadamente o francês. Veja-se os uniformes militares, os maneios das classes altas e, até hoje, sua repercussão nos desfiles de escolas de samba...

No século antepassado, as metrópoles culturais e políticas, França e Inglaterra, determinavam os modismos, os trejeitos, os tiques dos que se consideravam "elites" e, por isso, cultos. Imitavam-nas despudoradamente, e o povo os imitava. Produzia-se, mesmo com expoentes, uma literatura repicada de efeitos originários de autores estrangeiros de nomeada, e não havia autor que os não citasse, para denotar a seriedade de seus pensamentos. Era o "moderno", como a República surgindo tardiamente um século após a Revolução Francesa sob os auspícios do ouro inglês de uma Inglaterra monárquica todo-poderosa... E essa modernidade clonada, sem identidade própria, adúltera e vulgar, tinha seus extremos no mais tacanho e no mais evoluído.

Fim do Império, inícios da República, e o sentimento de repúdio ao sistema leva um homem religioso, simples e comum, porém letrado, a transformar-se no líder dos excluídos da nova cultura, das novas regras políticas e sociais do jogo, numa área restrita e agreste. O bacharel provisionado e construtor de templos Antônio Vicente Mendes Maciel, assim foi descrito por Euclides antes de reportar o massacre de Canudos: - Antonio Conselheiro, espécie bizarra de grande homem pelo avesso, tem o grande valor de sintetizar admiravelmente todos os elementos negativos, todos os agentes de redução do nosso povo. Porém, foi o líder que reuniu sua gente e criou Canudos, com sua mensagem sebastianista arcaica montada no seu carisma ancestral, mesmo bíblico. A República - alegando-se ameaçada - os reprime e os destrói.

Euclides da Cunha foi, quanto à personagem, sua antítese. Sem pendores religiosos, técnico, militar, letrado, intelectual complexo e republicano militante de primeira linha, viu no que chamou de “Nova Vendéia” uma ameaça à modernidade importada pelo país e, por decisão própria, inimistou-se com o sebastianista caboclo, escrevendo a respeito na mídia mais influente da época, “O Estado de São Paulo”, usando todos os recursos do idioma. A República, satisfeita, o revela e o promove.

Sendo verdade que o comentário é que define o jornalista e o separa do simples repórter, como este foi ao lugar dos fatos para informar ao público sobre o "levante monarquista". E voltou como o primeiro, fiel não à verdade da República, mas à dos fatos, de acordo com seus princípios e valores. Reportagem maldita, reveladora da ferocidade humana na guerra, os escritos de Euclides fugiram, contudo, da retratação sanguinária do massacre de Canudos como se justa fora a causa, e ele mero repórter do lado vencedor.

Todavia, no momento seguinte, e durante cinco anos, dedica-se ao comentário. Usa da vastidão de seus conhecimentos de história, geografia, sociologia, filosofia, da técnica da guerra, das tendências de avaliação do ser humano e seu caráter, para relatar novamente os fatos, desta vez absolvendo a simplicidade das crenças e revoltas sertanejas e condenando o aparato ostentatório, repressor e o caráter oligarca e sanguinário da República que, então, o denigre e despreza.

Brilha o jornalista e romancista, o escritor sem encomendas. Biógrafo preciosista de uma campanha militar infeliz e desastrosa, revê seus escritos infinitas vezes, infinitas vezes refaz capítulos e parágrafos inteiros, ansiando chegar o mais próximo possível da verdade e lutando com os próprios princípios, crenças e valores, na medida em que estes dela o afastavam. Obra eternamente inconclusa, “Os Sertões” projetam uma realidade capaz de reproduzir-se na forma infinitamente: a favela, eufemisticamente chamada, nestas eras de maquiagens e de "politicamente correto", de “comunidades”...

Quisesse reproduzir e trazer novamente à vida um momento nefasto da história, quisesse ser somente exato na observação e severo na análise, quisesse unicamente resgatar o que não fora dito, ou o fora de maneira equivocada nas reportagens, Euclides manifestou a curiosidade e a perspicácia do jornalista, a paixão do romancista e, principalmente na segunda parte (O Homem), a sensibilidade de um poeta.

Entendendo, em “A Terra”, a realidade segundo seus conhecimentos científicos – que eram os da época – e respeitando sua natureza agreste, sua formação militar deu-lhe a facilidade de ver em “O Homem” e avaliar em “A Luta”, a desproporção de recursos para resolver o que seria, em primeira instância, um caso de polícia, transformado em simulacro de guerra-santa pelo poder político.

Relata, assim, um massacre, uma experiência genocida em nome dos ideais republicanos, somente comparável à campanha contra Solano López, na Guerra do Paraguai. Os métodos foram os mesmos, as desculpas as mesmas, as mesmas foram as atrocidades e personagens. Faltou-lhes o gênio do narrador, um Euclides para perpetuá-la como saga do povo paraguaio em luta por sua própria identidade. Canudos não era uma tentativa de voltar à monarquia. Foi uma tentativa de afirmar-se num universo fechado, fora dos padrões impostos pelas classes dominantes e sua modernidade emprestada, imitadoras torpes dos processos e procedimentos das metrópoles da época. Essa busca de identidade foi-lhes insuportável, aos imitadores, de aí o massacre, e a destruição imposta ao povoado.

Este é o cerne do trabalho de Euclides da Cunha em “Os Sertões”, sua principal produção. É obra absolutamente atual. Canudos, abstraídas as circunstâncias, pulveriza-se hoje nos cenários urbanos.

Críticas e a predominância do talento

O melhor dos críticos, sendo isso somente, é um reles medíocre, pois o artista não se dispõe a criticar o trabalho alheio, ocupado que está com seu próprio trabalho criativo. E principalmente aqueles que não têm nem dom, talento, experiência e, portanto, competência para produzir algo parecido ou superior em qualidade, parasitam-lhe a obra, ou denegrindo-a ao atribuir a genialidade aos infortúnios da vida, ou comparando-a com outras de maior nomeada, para minimizá-la e, se possível, obscurecê-la.

Dos críticos mais encarniçados dos trabalhos de Euclides da Cunha, destacando-se “Os Sertões”, ninguém, ou quase, lembra-lhes os nomes. Daqueles que mais se empolgaram com sua maestria, igualmente, dado não ser exclusivamente para eles que produzem os autênticos escritores. A consagração pública, nacional e internacional, dá-se pela aceitação ou não da obra, pelo fato de ter provocado, nos leitores, as fortes emoções e mudanças que somente a literatura de qualidade pode proporcionar, até mesmo tratando-se de simples entretenimento. Imagine-se, então, ao tratar de fatos graves, reveladores do que há de mais sórdido na essência humana.

Grandes nomes dos estudiosos da História, dentre os quais permito-me destacar o de Nelson Werneck Sodré, posicionaram-se por Euclides da Cunha, para desmistificar comentaristas ou despreparados, ou mal intencionados ou ambos, e situar o escritor no quadro de uma realidade brasileira diferente daquela proposta pela cultura dominante, mas, como sempre, na qual crimes terríveis são mostrados como heroísmo helênico, algozes como vítimas e, principalmente, quem os denuncia, como inimigos da civilização e da civilidade.

Republicano ferrenho, Euclides da Cunha tornou-se, na verdade, áspero crítico da Primeira República dos marechais, sem abrir mão de seus ideais republicanos mais elevados. Ao denunciar o genocídio de Canudos, chamou sobre si a ira dos que, em nome de uma democracia imposta e corrompida de berço, tratavam os próprios crimes como feitos memoráveis, justos e moralmente inatacáveis. Como sempre foi, é e será.

Acolhido pela intelectualidade sadia, encontrou ali defensores de peso, mas foi a opinião pública que o consagrou, ao identificar sua obra com a realidade nacional da época. Recentemente, quando sua história foi transformada em dramalhão televisivo pasteurizado, ganhou a simpatia das novas gerações. Mesmo que mediocremente centrado em sentimentos e emoções duvidosas, o roteiro mostrou o que ninguém poderia tirar-lhe: a genialidade. A tentativa de reduzi-lo a excêntrico marido traído, emocionalmente descontrolado, não foi forte o suficiente para macular-lhe a aura de idealista, mestre da literatura e do jornalismo, e o resultado foi a ânsia de conhecimento por sua obra que voltou a acontecer, perto de um século após seu nascimento.
Monte Santo e favelas: um paralelo necessário

Monte Santo, destroçada no sertão nos inícios do século passado, foi a ação dos miseráveis e despossuídos de aglomerar-se segundo suas tendências próprias, que ressurge, nesta época, nas periferias dos grandes centros urbanos. A favela tem atuando, desconsideradas as circunstâncias subjetivas, todos os elementos fáticos, práticos e materiais de Canudos. Não importa se seus líderes, ao invés de místicos religiosos, sejam sub-chefes do narcotráfico, ou se a população acessa informações por Internet, TV a cabo, jornais e o que convencionamos chamar "mídia", ou ainda se os materiais utilizados na construção sejam industrializados ou sua sucata. O desenho geopolítico da favela é a repetição diferenciada do desenho de Canudos, onde quer que ela se estabeleça. Veja-se, nas imagens, as caractéristicas no mapa do Exército durante a guerra, acima, e a favela da Rocinha, abaixo, tomada ao acaso.


A atitude das populações é semelhante: desde a proliferação de violência, posse de armas, até o enfrentamento da autoridade não importam quais as consequências. Mudam-se as religiões e crenças, mas não muda a sistemática de existência. Mudam-se as circunstâncias políticas, mas não muda o estilo de vida aleatório e quase estagnado. Peguemos os mapas de Canudos, e os mapas das favelas em geral que circundam os grandes centros urbanos, e teremos a mesma arquitetura arrevesada, primitiva, desurbanizada e, em sua essência, desordenadamente tribal. Mesmo projetos de desfavelamento e construção de residências urbanizadas terminam favelando-se, como ocorre em em praticamente todas as grandes cidades.

A República dos tempos de Euclides respondeu ao fenômeno de sua negação por miseráveis com canhões Krupp, última novidade adquirida para guerras, e que deveria ser provada. A República do Terceiro Milênio trata de coibi-lo pelo uso da Justiça com ou sem força policial, nos casos de posse indevida, e de apoio estrutural onde já não mais cabem os instrumentos jurídicos. Com raras exceções, os programas não obtêm resultados positivos. Muitas vezes, um "incêndio acidental" resolve o caso...

A República no Brasil, desde seus inícios, não garantiu nem teto, nem trabalho, nem saúde, nem educação ou infra-estrutura para seus filhos, a menos que aceitem ser cidadãos segundo os padrões e moldes das classes dirigentes, miseráveis ou não, o que significa, em última instância, que paguem religiosamente seus impostos e gerem o mínimo possível de problemas. Os excluídos, contudo, muitas vezes se rebelam, principalmente quando não querem o cabresto institucional e a ele são coagidos, sem desconsiderar a índole de seus indivíduos.

A rebelião dos defasados e marginalizados tem, sempre, a conotação épica própria dos movimentos rebeldes sociais sem diretiva, jamais revolucionários, pois que o poder, não o querem, mas são capazes de entregá-lo ao messiânico de turno que repita, até a exaustão, representar seus rancores e suas queixas, e lhes dê a mínima esperança de alguma conquista, tanto faz uma promessa de vida eterna, um atendimento médico, dinheiro do tráfico de drogas e armas, quanto uma televisão em cores. Seja ele um chefe do crime organizado ou um político populista ou o partido ou organização que representam, a rebelião produz um “Estado paralelo” com seus heróis e mártires, se retro-alimenta da própria saga e serve, cegamente, aos propósitos dessas lideranças que não vacilam em conduzi-la ao massacre, muitas vezes servindo aos desígnios do poder que pretensamente enfrentam e afrontam.

Circunspeto e igualmente apaixonado, “Os Sertões” nos leva ao retrato dessa realidade num momento histórico específico, seja na descrição da terra ou no perfil do homem que a ocupa, mas é na descrição da luta que define os elásticos e arquetípicos limites da crueldade humana, sempre presentes quando de submeter uma população se trata. A República idealizada por Euclides da Cunha não prescindia de heróis, mas esquecia-se que estes só existem quando produzem seus mártires. Viu, nos militares canhestros, não a falsa elegância e inutilidade de seus vistosos uniformes europeus, ainda napoleônicos, mas a ferocidade humana sem freios, entretanto desencadeada legalmente. Se os louvou nas reportagens iniciais sobre a guerra até mesmo por ser parte da máquina militar, em “Os Sertões” se auto-critica e repudia a crueldade. Se na terceira expedição, a do sanguinário Moreira César, Antônio Conselheiro foi o herói para seu povo, o primeiro foi considerado mártir para o seu e isso exigia vingança, no contexto da ironia de tratar-se de um só povo, incapaz de firmar-se como nação democrática.

Estilo e recursos do autor

O estilo forte, vigoroso e sonoro do autor, o fato de usar palavras complexas, desconhecidas ou desusadas, a faculdade de dar tom e ritmo ao relato convertem a obra numa ópera sem orquestra, na qual o estilo do roteiro, sob o troar dos canhões, produz a música. E esta, é epopeica e vibrante, justificando, o recurso até mesmo ao barroco, a qualidade obtida na narrativa que, por certo, não era destinada aos preguiçosos, nem aos incultos. Peça de oratória, romance épico, poema vertiginoso, foi escrito com paixão, parecendo sempre caminhar para uma armadilha, mas retomando o relato com precisão no momento seguinte.

Jamais por confusa ou hermética, a obra desafia pelo uso de praticamente todos os recursos de estilo, pelo vocabulário exigente e pertinente, pela velocidade de concatenação e preciosidade da construção das partes, dos capítulos, parágrafos e frases. Trata-se essencialmente de um trabalho de revelação. Há que ter sensibilidade e inteligência para entendê-lo. O escritor que montava pontes segundo os mais rígidos princípios da engenharia, remontava seus textos com a liberdade e disponibilidade que somente têm os que dominam um ofício, estão familiarizados com seus materiais, arsenais e manhas, seus limites e, mesmo sob o risco de transgredir modismos ou receitas prontas tão ao gosto da intelectualidade erudita, parasita e improdutiva, reinventa a linguagem a cada passo, dela fazendo parte.

Valendo-se dos conceitos de estilo de sua época, foi buscar, na eloqüência ostensiva da declamação, oratória e posta em cena, a vida que a narrativa exigia, gerando intensidade lírica capaz de transfigurar o drama, não importando o uso e abuso de neologismos, arcaísmos, a invenção de palavras e a violação da gramática. Sem essa relação dialética com o mundo, o idioma e o país de sua época, Euclides não poderia ter escrito “Os Sertões”, mas produziria, sem problemas, suas outras obras, incluindo reportagens, artigos, poemas e crônicas ligeiramente mais bem comportados. Três pequenos exemplos nos clarificam: presságios da Primeira Grande Guerra, e Euclides assim definiu, em "Contrastes e Confrontos", a Alemanha de Guilherme II, em1904:

[...] É o caso típico de um povo sob a ameaça permanente de seu mesmo progresso. Passando, com uma rapidez sem par na história, do régimen agrícola em que aplicavam, há meio século, três quartos de sua gente, para o máximo régimen industrial, onde se aplicam hoje dois terços da sua atividade – ficou duplamente adstrita a todas as exigências do expansionismo obrigatório. Para viver e para agir. [...] Está numa alternativa. Ou isolar-se num papel secundário e obscuro, procurando, na imigração pacífica, um desafogo à sua carga humana – ou expandir-se , sistematicamente conquistadora, arriscando-se às maiores lutas.
Preferiu o último. Não tinha por onde sair.

Essa, sem a menor dúvida, a razão de duas grandes guerras internacionais nas quais a Alemanha intentou conquistar territórios e recursos que lhe faltavam, por "não ter espaço vital". E Euclides bateu duro naqueles que, tementes da Alemanha, consideravam as imigrações de seus filhos para o sul do Brasil como política de ocupação. Assim arremata sua crítica a tais cassandras, chamem-se Von Bulow, ou Dom Pedro Primeiro:

[...] Podemos deixar de lado essas frases contra fantasmas e voltar à luta real, à campanha austera do nosso alevantamento próprio. Que a Alemanha sonhe à vontade: é a grande terra idealista por excelência, onde os mesmos matemáticos da envergadura de um Leibniz são poetas.
Ali nasceu Schiller, de quem se conhece um verso admirável:

- Arcádia, pátria ideal de toda a gente!

Sendo assim, errou o minúsculo sociólogo precitado. A Arcádia da Alemanha não é o Brasil. Lá está dentro dela mesmo, no seu melhor retalho, na Prússia liricamente guerreira e fantasista, onde, nesta hora, tumultuam não sabemos quantos marechais devaneadores e não sabemos quantos filósofos belicosos.

Perfeccionista, trabalhava poemas com se lapidasse rara jóia, esmerando-se principalmente nos sonetos. Em "Marat", nos diz:

Foi a alma cruel das barricadas!...
Misto de luz e lama!... se ele ria,
As púrpuras gelavam-se e rangia
Mais de um trono se dava gargalhadas!...


Fanático da luz... porém seguia
Do crime as torvas, lívidas pisadas.
Armava, à noite, aos corações ciladas
Batia o despotismo à luz do dia.


No seu cérebro premente negrejavam
Os planos mais cruéis e cintilavam
As idéias mais bravas e brilhantes.


Há muito que um punhal gelou-lhe o seio...
Passou... deixou na história um rastro cheio
De lágrimas e luzes ofuscantes.

Bastam estes exemplos. Elegante no estilo, sutil na referência, contundente no ataque, o autor usa a linguagem de forma a exauri-la em seu mais amplo potencial, destinada contudo a seleto grupo de leitores preocupados com as circunstâncias mundiais, num país imensamente analfabeto. Seja falando de arte em “A Vida das Estátuas”, da história em “Anchieta”, da saga dos buscadores de ouro e pedras preciosas de Minas Gerais em “Garimpeiros”, na crítica à decadência lusitana em “Uma Comédia Histórica”, enfim, em seus artigos e crônicas, o jornalista prova que sempre o comentarista é que o classifica, define e expõe. Sempre escreveu com coragem e eloqüência, propriedade e conhecimento, energia e paixão.

O livro inacabado

É, contudo, em “Os Sertões” que o talento de Euclides explode, incontido no desparramar de seus potenciais, mas firme no propósito da denúncia de uma iniqüidade, metódico no delineamento do roteiro amplo no qual, nos momentos certos e por vezes inesperadamente, as explosões levam o relato a tal intensidade, que é impossível largá-lo, mesmo sobre eles refletir numa primeira leitura. É aqui que se configura, maximamente, o esplendor do gênio.

Falaríamos horas, até a exaustão, sobre esse autor e sua obra. E não conseguiríamos, nem com o elogio mais desbragado, nem com a crítica mais severa, desvendar as origens do seu mérito. Sabemos que é um dom ancorado por talento invulgar. Mas, como todos os grandes artistas, Euclides não se ateve só ao primeiro, ou ao segundo, subjacentes. Estudou muito, pesquisou muito, trabalhou febril em sua ânsia por conhecimentos, jamais transigindo com a evidência dos fatos, porém cultivando o prazer de viver com plena intensidade sua época, dela participando e, ao imortalizar um de seus momentos mais penosos, imortalizar-se reciprocamente. Temos, com ele, dívida de honra, mais que de gratidão.

E honrar seu trabalho e sua obra, é divulgá-los não como produto estático, coisas de museu: é resgatar, deles, seus métodos e procedimentos, aprender deles a disciplina e seriedade, a dedicação e abnegação que a escrita exige, o respeito e a consciência de que a língua portuguesa carece, num caldeamento de identidade própria, consolidada, dinâmica e capaz de nos ressaltar como povo e nação.


Porque se são, o artista e o escriba escravos dos modismos alheios, um simulacro pior do que aquilo que representam, povo sem identidade é povo sem liberdade. Assim, Euclides não justificou o Conselheiro e o arraial de Canudos, os aceitou como fato em si e, ao denunciar um genocídio, não pretendeu renegar seus ideais, sua República Utópica: fortaleceu-se na própria autenticidade e combateu, com as armas que dispunha como jornalista e escritor, a aberrante inversão dos princípios democráticos de igualdade, fraternidade e liberdade na republiqueta dos marechais a serviço do poder econômico caboclo e internacional. "Os Sertões" é um grito de repúdio ao arbítrio, aos desmandos do Estado e um chamado à consciência e resistência para os que se consideram cidadãos, e livres.

(Caio Martins. 15/10/2002 - discurso para a Academia de Letras da Grande São Paulo.)
(img: euclides da cunha, por portinari) (referências para consulta: wikipedia)

7 comentários:

  1. Anônimo3/6/10 06:27

    Grande Caio Martins!

    Essa é talvez a melhor resenha sobre Euclides que li. Ajudou imensamente a compreender o escritor maior de sua época.

    Jairo Negris
    Brasília/DF.

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    1. Jairo, Euclides da Cunha tem de ser visto em sua época, mas, a partir do momento em que constata e denuncia a violência do Estado contra pequeno grupo "rebelde", assume universalidade pungente. Grato por suas palavras.

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  2. Caio, este seu trabalho precisa ser mais divulgado, tamanha a riqueza de conteúdo e forma.
    Bravo!

    Márcia

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    1. Márcia, tese levantada em meio e momento inóspitos, o artigo busca trazer aquele momento histórico para a atualidade. "Os Sertões" são o único relato crível - de cunho jornalístico - publicado desde a carta quinhentista de Pero Vaz de Caminha. Acredito podermos, através dele, valorizar tanto o autor, quanto sua obra maior. Obrigado por sua gentileza.

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  3. Não li "Os Sertões",porque não sei... Há sempre tanto a ler. Mas você me deixou curiosa. Vou procurar por aí. Também não assisti a minissérie Global;odeio essas coisas picadinhas. Mas li "Anna de Assis", do Jefferson de Andrade, que só mostra um lado do Euclides da Cunha, o lado pai e marido,e descreve em minúcias a sua tragédia. O livro é tendencioso, mas nem tanto sem valor, ao retratar a sociedade daquela época. E seu drama familiar é inacreditavelmente brutal.
    Como você fez muito bem ao comparar Canudos com as favelas atuais,a violência do assassinato de Euclides com suas macabras consequências, só encontra parâmetro com os crimes atuais,quando se atira criancinhas das janelas,ou as arrasta pelo asfalto.Quanto a várias outras colocações de seu trabalho: política, emprego da língua...só me resta parabenizá-lo. Um abraço.

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    1. Grato por suas palavras, Teresinha. Se nas escolhas literária e jornalística Euclides foi magistral, errou nas escolhas pessoais. Personalidade reta e índole forte, não sobreviveu à insídia. Canudos se repete aleatoriamente no tempo, em nossos dias e nos vindouros. Teve relator à altura de todos os tempos. Não é leitura nem amena, nem fácil. Porém, vale a pena desfrutá-la.

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  4. Caio, li seus comentários. Por coincidência estou no mês Euclidiano: estou não pag. 700 da "Guerra do fim do mundo" de Mário Vargas Lhosa cuja enredo se baseia em Euclides, romanceado personagens convertidos por Antonio Conselheiro ao cristianismo à sua moda.Na "releitura" de "Os Sertões", tenho já resenha escrita, sem revisão ainda, até a "quarta expedição" que toma 1/3 do livro. O que noto é a imensa coragem daqueles jagunços convertidos que massacraram as "forças republicanas". Aliás, na terceira expedição, houve verdadeira deserção covarde se os dois termos não têm significado semelhante na espécie. Antonio Conselheiro fora uma esperança àquela gente abandonada, ignorante, esfomeada, respirando seca que era convencida porque ele chamava a república como o "anti-Cristo" e tudo mais. Euclides "define" Antonio Conselheiro. Tudo isto posto para dizer que gostei de sua abordagem diferente, sempre sabendo de seu talento de escritor. Abraço. MM

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