8 de abr. de 2014

O ACASO

Caio Martins

À frente, a mulher com o rosto dividido entre parca luz e densas sombras. Ao lado o estacionamento lúgubre, vazio e, após ele, a rua desiluminada com predadores rondando. Sentia-lhe o calor e o cheiro, ouvia os passos das feras em atalaia. Lugar perigoso, absconso, propício para a consumação de um crime. Temeu por ela. O 38 tirado das garras de um pivete há meses incomodava, na virilha; o cano na cara mudara de mão num átimo, massacrara o delinquente porém, por motivos ao acaso, não o matara. Ficara com a arma.

A mulher, de traços lapidados com suavidade e perfeição, falava descontraída, não pressentia os perigos. Ele persistia no eterno estado de alerta, embora a beleza e candura atenuassem a prontidão. Fora uma vida inteira assim mas, mesmo que sitiados pela cidade, não havia como ficar totalmente imune à sedução espontânea e invulgar, que o atingia mesmo que nela não se fixasse. Não necessitava esquadrinhar um território para saber-lhe os mistérios e trilhas. Era-lhe natural mapear aparências e formas sem precipitações ou hipóteses; via, e sabia.
 
Olhou-lhe um instante o arfar, na escuridão a meialua crescente; aspirou fundo o ar, atentou ao ruído dos grilos e carros e passos na rua. Ao longe, latia um cão. Por acaso, viu-se envolvido num sortilégio. A mulher era belíssima. Era, inconsciente, todas as mulheres que lhe haviam contado e perguntado sobre tantas cicatrizes. Que poder sortílego emanava dos traços, dos gestos, da voz, da forma cênica de mirá-lo, entre luz e sombra... e o cheiro, entre flor e fruta, entre luar e maresia. Sorriu contrafeito, ao pegar-se emocionado. Levou-a ao carro, estremeceu ao beijo na face e abraço e calor irresponsáveis, perscrutou a saída desde os telhados à mais insignificante sombra fugidia dos meiofios e lhe disse, parco: "- Vá agora!".

Não houve réplicas. Foi. Temeu, ainda que raro instante, pelo que lhe poderia acontecer nas ruas antes dela chegar à própria toca na qual, feito menina, se aconchegaria nas almofadas do sofá e abraçaria um velho urso desmontado, de pelúcia. A sensação de conforto cortou-se abruptamente: sequer percebera o moleque aproximar-se furtivo e, feroz, descarregar-lhe uma arma nas costas. Nada é por acaso...

(img: cvm - yara35-2008/sp sobre lua crescente 03/2014/scs)

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