10 de fev. de 2012

A CALCINHA

Caio Martins.
(ilustração: Damaride Marangelli - esperimenti-1)


Ficara olhando o buraco da porta catatônico e paranóico, atônito e estupefato... Merda!... Só restara a calcinha pendurada na torneira do chuveiro! De novo! Por que? Para que? Vestindo uma toalha que logo se perdera, saira aos berros pelos corredores, vertiginosa escadaria de seis andares: o meio da rua... e tinha voz poderosa, o labrego... Depois de reconduzido ao covil - o gato  ronronando e atentamente seguindo o teclado - escreveu desbragado, emocionado às lágrimas e desconsolado:

"... se sabias que se em outra mulher, estou em ti, se sabias que sou ciumento, egoísta, possessivo? Se sabias que ia te ferir? Ah!, que desamor, que dor, que merda... Querias brincar de Cinderela, Bela Adormecida, beijasses sapos, mas tiveste de escolher um artista sempre na beira do colapso... Pôr-me uma coleira? Eu, músico, que me afundo na noite, eu que por gosto bato, apanho, grito e brigo? Eu, músico, num palco tocando salsa, abaixo estonteantes fêmeas sacundindo pródigas tetas? Por que eu? Puta! Puta, puta, putaaaaa...

... agora é teu cheiro no travesseiro, as manchas no colchão e a maldita calcinha na torneira do chuveiro... Queria tudo certinho, bonitinho, direitinho... justo eu, errado no tempo e no mundo, eu suicida e demencial, eu sem peias nem coleiras, eu sem eira nem beira, eu que estava tão feliz? Com que direito entraste assim na minha casa, na minha pele, na minha cabeça, viraste do avesso minha música e minha anarquia?

Nem um retrato, merda, nem um maldito de um retrato... Se ele aparecer aqui, mato teu gato ! Vou quebrar teu prato, torcer teu garfo, tua colher, tua faca, quebrar teu copo, rasgar tuas roupas, tua toalha, jogar no lixo teu sabonete e perfumes e xampus... meu deus, vou botar fogo na casa... Teu cheiro no travesseiro... Nos lençóis, teu cheiro... nas minhas camisas, sapatos, calças, cuecas, meias, na minha vida, teu cheiro...

O gosto de teus seios entalado na garganta, de tua saliva, baba, marcas de tuas unhas, de teus dentes, no meu pente teus cabelos, e me expulsas enquanto pulso, e te vais, novamente sais sem adeus, nunca mais? Levando tuas coxas doidas, tua vagina louca, tua bunda demencial? Ai... Eu não posso, não quero acreditar... O buraco negro da porta... Deveria ter-te deixado torta e agônica e arfante e lambuzada e mordida e esfolada num quarto de motel, o michê no aparador; daí, eu sim: até logo e nunca mais... Deveria, na primeira vez, pegar meu saxofone, cair na noite, noutra louca, noutras bocas, noutros cheiros, noutros gostos, mas não: quis acreditar, era o amor da vida, era o grande amor da puta da vida...

Que orgia! Tudo que querias era isso, fêmea atroz e voraz e ancestral... Saíste pela porta satisfeita, quebrando ancas, empinando as tetas astuta, teatral... Entre o suicídio e a orgia, escolho os dois e vou; quando voltar, qualquer dia estarás outra vez na minha cama, a me arrebentar uivando entre soluços, lamentos e gemidos, depois berrar da porta de novo que não amas, não gostas, nem queres e bença e tchau... Do maldito buraco negro da porta...  A porra da calcinha na torneira do chuveiro e teu grito de guerra edgarallanpoeliano novamente rasgando os ouvidos excitados do edifício extasiado e expectante pela próxima vez:

- Nunca mais! Ouviu bem, cabeção? NUNCA MAIS !!! "...

Deram-lhe umas fedorentas calças velhas, na delegacia. Depois de algum tempo e muita lamentação, o delegado, verificando não estar chapado nem bêbado, se compadecera vendo ser artista e culto, ensandecido por tórrida paixão; mandara uma viatura levá-lo de volta à toca...

(scsul-julho 1996 - "toquinha")


4 comentários:

  1. Tadinho!!!




    www.pedradosertao.blogspot.com

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  2. Mas quem é esta desastrada que quer arranjar encrenca onde mora o barulho?
    Desenvolveu com muita classe, Caio.
    Abraço,
    Jorge

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  3. wow! forte ....
    obrigado por compartilhar minha pintura. :)

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  4. Araceli, bota tadinho nisso... Como se diz na periferia, pipocou na batatinha numa boa!
    Grato pela visita!

    Grato por suas palavras, Jorge... Mas, sempre há quem se diverte jogando gasolina na fogueira... E ilusões, sonhos, desejos, terminam num buraco negro qualquer do universo.


    Eu que lhe agradeço a generosidade, Damaride, o que muito me honra pela qualidade de seus trabalhos impecáveis.
    Como soe ocorrer, esses sentimentos passionais são via de regra devastadores. Grato por sua gentileza e sua visita. Beijos.

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Na busca da excelência aprende-se mais com os inimigos que com os amigos. Estes festejam todas nossas besteiras e involuímos. Aqueles, criticam até nossos melhores acertos e nos superamos.

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