19 de fev. de 2012

O BEIJO

Caio Martins

(o beijo - pablo picasso - 1931)
Tudo complicado. Enrolado demais, duas cabeças em alta rotação, o mundo espiando e rindo, no fundo um cenário de tempestades. Nenhuma mulher chamara mais a atenção, ela passara a ser-lhe o centro cósmico, o vetor, tudo reduzido aos olhos escuros, os cabelos rebeldes, a boca de menina chorona, os traços severos do rosto, o jeito de maria-moita. Ele alfa, safado diplomado em escolas privadas e públicas, de quartos de virgenzinhas ansiosas a pródigos bordéis...  
           
Amor? Antes fosse... Paixão! Entregara-se feito um pacote sem remetente, aberto, pronto para uso. Contra a vontade própria, mas inerme ao tal de Destino (Sujeitinho canalha!)... Ela dissera-lhe isso: - Destino! E quebrara-lhe a couraça, a coragem suicida, o ímpeto de guerreiro. Apatetou-se da maneira mais vergonhosa. Aliás, ambos... Ah!, noites insones, espera angustiada de um telefonema, um e-mail, tremenda e apavorante luta contra sentimentos, batalhas catastróficas contra os instintos, gritos estonteantes de guerra contra a sensação de perda antecipada, ante a trombada com o impossível de quem jamais se dera por perdido... Estava perdido...
           
E então, decisões firmes e irrevogáveis tomadas, resgate de todas as armas, artes, manhas e recursos, montado numa determinação heroica de romper os próprios limites e cortar os vínculos, descobre, desacorçoado, que ela sentira sua falta... Que não gostara nem um pouquinho disso... Que queria tratar do assunto com toda a seriedade! Mulher imprevisível... Quase criança, nascera adulta... Nada dominava do mundo dos lençóis, mas definia, dona, suas essências.  
           
Claro: fossem simples, comuns, gente como toda a gente, e tudo seria fantasticamente fácil. Mas, não eram, não... Eram complicados, cheios de teorias e padrões, eram mentais, cerebrais, donos de muita determinação, cada qual espiando o outro de suas trincheiras e posições, firmes e decididos, heroicos e retumbantes... patéticos, enfim. Não poderiam senão tratar do tema “- Não quero perder você!”  - rindo?... ou chorando, qual a diferença? As multidões se movem pelas tripas... assim, os amantes...

Horas de abobrinhas, reticências, vazios mentais tentando serem preenchidos com explicações até que bem ajambradas... E, então, veio festa de fim de ano e o beijo. Nada altamente preparado, erótico-vampiresco, tonante, devorador, sôfrego, estilo encontro de buracos-negros galáticos, voos desorbitantes de línguas, mãos, braços e pernas em convulsão, babas e pulsações, pornocinematográfico: beijo besta, delicadinho, gentil, improvisado, tímido, sem querer... Com jeito de ternurinha boba, com alento suspenso, coisa de criança levada, de primeiro beijo... Toque mudo e suave de lábios sem roteiros, bocas ingenuamente premeditadas mas, assim mesmo, leve sufoco sem esfregação subsequente. Beijo-beijo...
           
Desses que não acontecem mais, kantianos sem tempo nem espaço, que jamais se repetirão por mais que se repitam, fora de moda. Nada mudou, depois. Somente alguma coisa girou ao contrário nos confins cósmicos, perderam-se algumas galáxias, explodiram algumas nebulosas, num anteprelúdio de fim do mundo. Teria sido tudo mais simples, começassem por aí. Na falta de plateia, alguns anjos tontos, desinformados, seguramente aplaudiram. A Divindade, competente, fez-se de lesa, a saber de nada... estabelecera-se, após tanta negaça, a trajetória do desastre.    

(scsul - 10/03/2001) 

15 de fev. de 2012

EVOLUTION

Caio Martins.












(img: explosão nuclear - web)

Já podemos explodir
- dizem os jornais - 
o planeta centenas de vezes,
- Que coisa!... uma só seria demais...

Ao léu pasta o gado
ao matadouro
pasta o gado...

O poeta é um saltimbanco
o poema é um vagabundo
que pode um verso inútil
contra um míssil nuclear?
A bomba de nêutrons
derreterá a arte
ninguém dá parte
e pelas avenidas se entulham
androides enlatados
em conserva, entalados
cuja sobrevivência é um vício
cuja inconsciência é um ofício.

Ao léu pasta o gado
ao matadouro
pasta o gado...

No espaço sideral há brilhos
sinistros de metais
enquanto a vida abaixo escorre
condenada
desenfreada
por trilhos virtuais.

Ao léu pasta o gado
ao matadouro
pasta o gado...

No limite do planeta
os limites por um triz
a liberdade ancilosada
é velha locomotiva a vapor
se decompondo nas pradarias
enquanto em órbitas, estelares
espaciais engenhos reluzentes
se (de)codificam, frenéticos
sobre os destinos do planeta
e seus piolhos patéticos...

Ao léu pasta o gado
ao matadouro
pasta o gado...

(26/06/1987 - Pensão da Zulmira)


10 de fev. de 2012

A CALCINHA

Caio Martins.
(ilustração: Damaride Marangelli - esperimenti-1)


Ficara olhando o buraco da porta catatônico e paranóico, atônito e estupefato... Merda!... Só restara a calcinha pendurada na torneira do chuveiro! De novo! Por que? Para que? Vestindo uma toalha que logo se perdera, saira aos berros pelos corredores, vertiginosa escadaria de seis andares: o meio da rua... e tinha voz poderosa, o labrego... Depois de reconduzido ao covil - o gato  ronronando e atentamente seguindo o teclado - escreveu desbragado, emocionado às lágrimas e desconsolado:

"... se sabias que se em outra mulher, estou em ti, se sabias que sou ciumento, egoísta, possessivo? Se sabias que ia te ferir? Ah!, que desamor, que dor, que merda... Querias brincar de Cinderela, Bela Adormecida, beijasses sapos, mas tiveste de escolher um artista sempre na beira do colapso... Pôr-me uma coleira? Eu, músico, que me afundo na noite, eu que por gosto bato, apanho, grito e brigo? Eu, músico, num palco tocando salsa, abaixo estonteantes fêmeas sacundindo pródigas tetas? Por que eu? Puta! Puta, puta, putaaaaa...

... agora é teu cheiro no travesseiro, as manchas no colchão e a maldita calcinha na torneira do chuveiro... Queria tudo certinho, bonitinho, direitinho... justo eu, errado no tempo e no mundo, eu suicida e demencial, eu sem peias nem coleiras, eu sem eira nem beira, eu que estava tão feliz? Com que direito entraste assim na minha casa, na minha pele, na minha cabeça, viraste do avesso minha música e minha anarquia?

Nem um retrato, merda, nem um maldito de um retrato... Se ele aparecer aqui, mato teu gato ! Vou quebrar teu prato, torcer teu garfo, tua colher, tua faca, quebrar teu copo, rasgar tuas roupas, tua toalha, jogar no lixo teu sabonete e perfumes e xampus... meu deus, vou botar fogo na casa... Teu cheiro no travesseiro... Nos lençóis, teu cheiro... nas minhas camisas, sapatos, calças, cuecas, meias, na minha vida, teu cheiro...

O gosto de teus seios entalado na garganta, de tua saliva, baba, marcas de tuas unhas, de teus dentes, no meu pente teus cabelos, e me expulsas enquanto pulso, e te vais, novamente sais sem adeus, nunca mais? Levando tuas coxas doidas, tua vagina louca, tua bunda demencial? Ai... Eu não posso, não quero acreditar... O buraco negro da porta... Deveria ter-te deixado torta e agônica e arfante e lambuzada e mordida e esfolada num quarto de motel, o michê no aparador; daí, eu sim: até logo e nunca mais... Deveria, na primeira vez, pegar meu saxofone, cair na noite, noutra louca, noutras bocas, noutros cheiros, noutros gostos, mas não: quis acreditar, era o amor da vida, era o grande amor da puta da vida...

Que orgia! Tudo que querias era isso, fêmea atroz e voraz e ancestral... Saíste pela porta satisfeita, quebrando ancas, empinando as tetas astuta, teatral... Entre o suicídio e a orgia, escolho os dois e vou; quando voltar, qualquer dia estarás outra vez na minha cama, a me arrebentar uivando entre soluços, lamentos e gemidos, depois berrar da porta de novo que não amas, não gostas, nem queres e bença e tchau... Do maldito buraco negro da porta...  A porra da calcinha na torneira do chuveiro e teu grito de guerra edgarallanpoeliano novamente rasgando os ouvidos excitados do edifício extasiado e expectante pela próxima vez:

- Nunca mais! Ouviu bem, cabeção? NUNCA MAIS !!! "...

Deram-lhe umas fedorentas calças velhas, na delegacia. Depois de algum tempo e muita lamentação, o delegado, verificando não estar chapado nem bêbado, se compadecera vendo ser artista e culto, ensandecido por tórrida paixão; mandara uma viatura levá-lo de volta à toca...

(scsul-julho 1996 - "toquinha")


2 de fev. de 2012

ODÓ ÌYÁ, YÈYÉ OMO EJÁ!

Caio Martins


Iemanjá,
ser do mar
ser de amar
mareia:

Yèyé omo ejá!  Sereia...

Alabê do Ketu
Axogun aquieto
as fúrias do Orun,
Ogun no Àyié!

Odò ìyá !








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