29 de mar. de 2011

NOVO AMOR


Caio Martins

Pour J. D'Arc.












(img:cvm-portman/holograma2011)


Meu novo amor é um mistério!

Surgiu assim como do caos
incólume, envolta em rituais
de inomináveis transparências
a sorrir, eu quedo e sério...

Meu novo amor se manifesta
com palavras pegas a dedo
exige sigilos, segredos
e os deixa em versos num varal...

Não sei de seu gosto ou cheiro
sua voz nunca ouvi, um lampejo
do olhar me diz ser ardente
e louca, palhaça, fatalle.

Se brinco ela chora
se brigo faz festa
a chamo de bicho,
diz que sou bobo
a chamo de tonta,
me diz que sou lobo...

Meu novo amor neutrônico
catódico, cibernético e anônimo
é virtual, quando quer.
Mas, meu deus...

... que linda mulher!...


17 de mar. de 2011

COISA DE BICHOS

Caio Martins
Para Stela e Alceu Valença.













(img: cvm - kelly/galaxia - 1999)

Estendeu-se
num gesto sublinhado
o véu de teus cabelos sobre meus olhos.
Diluí-me nas sombras de teus olhos
sem ansiedade, apenas
vacilei entre a dúvida
e a ironia.

O brilho de um rubi em tua orelha
revelou-me a ardentia de teu rosto.
Percorri teu rosto
vacilando entre o alumbramento
e a fria perfeição de teus traços.

O som de tua voz metálica
como o sustenido de um harmônio
fixou-me em tua boca.
Vacilei entre beijos
ou mordidas.

E assim foi lentamente
com teus braços
tuas mãos
teus seios
tuas pernas
teus pés
teu ventre
até ter-te incontida.

Até sucumbirem tramas
regras, usos e costumes
tua perspicácia
meus notáveis argumentos
diluídos febrilmente
na sofreguidão de momento
da umidade convulsa do sexo
em delírio e desvario.

Coisa de bicho-gente
no cio....


(07/03/1986. Peña Los Hermanos - Pensão da Zulmira)
Como dois animais - Alceu Valença - 1997



4 de mar. de 2011

A Espada

Caio Martins

(Veja abaixo "O Espelho", complemento desta crônica)


Aproveitando propício momento, fora atrás do sonho ainda muito menina, uma criança. A “Primavera de Praga” sucumbira sob os tanques soviéticos, havia desencontros e confusões, agitação e tristeza por toda a então Tchecoslováquia. Passou sua figura miúda e leve por manifestantes, soldados, chuva de pedras e nuvens de gás lacrimogêneo. Encontrou a ladeira de pedras antigas e a porta de ferro batido, as escadarias de carvalho e, numa sala soturna, iluminada por candeeiro a óleo, o velho sumido em trapos. A mão da mãe a soltou.

- Vim buscar a espada!
- disse, num idioma inóspito e que lhe era estranho. O velho indicou-lhe onde. Pesada, corroída pelo tempo, a madeira do cabo desaparecera há décadas, talvez, mais de séculos. Beijou a mão ressequida e frágil, pegaram a conquista e saíram apressadas. A relíquia passou alfândegas com funcionários relapsos e cansados de alguns países até, finalmente, chegar em casa. Levou-a, anos depois, a ferreiro perdido no fim do mundo, nas serras de Minas, e pediu-lhe a reconstrução. Esse também, sem palavras vãs, pegou, sopesou e pediu-lhe um mês. Estremecera de emoção. O pai, companheiro da empreitada, também.

Nos trinta dias, pegou-a. Perfeita, polida, o cabo de raiz de jacarandá amoldando-se em suas mãos pequenas como se juntos tivessem nascido. Pagou em ouro, moeda trazida de outras eras e herdadas em gerações. Lauma respirou fundo, intangível, verificando a arma ancestral milímetro a milímetro em busca de imperfeições inexistentes, fora as cicatrizes de batalhas, e pegou o caminho de volta. Completaria o ciclo com o espelho, quase impossível de encontrar. Agora, vinte e um anos passados, haveria de tê-la em ritual milenar, repor sua marca e intensidade para, finalmente, dotar-se do último elemento para a definitiva consagração espiritual.

Contudo havia um homem, frágil e perdido de si e do mundo, que lhe entrara pela pele e tornara-se, ao mesmo tempo, numa promessa de amor e perspectiva de um desastre. Daniel... reduzido, de líder emblemático e moderno guerreiro, a espantalho lamentoso por ter-lhe cruzado o caminho, na hora errada, um anjo perdido; fêmea primitiva e oblíqua, para quem o mundo começava e terminava nas genitálias e, pela graça e beleza, seduzia instintivamente os alfas de sua espécie. Letícia...

Conseguisse centrar-se, seria sua própria salvação, a libertaria para seguir sua saga e seus caminhos. Não podia permitir-se odiá-la, porém, odiava. Na sua linhagem e tradição, eram-lhe vedados humanos sentimentos banais; paixão e ódio, rancor e mágoas, desejo e medo... Filha do equilíbrio e da sabedoria, Lauma chorara apenas uma vez, quando aquele homem fraco a inundara de tanto carinho que perdera, além do controle, a férrea vontade e certeza de sexo ser como singela busca de alimento, madrugada em curso, num assalto à geladeira. Letícia era promíscua, indecorosa, irresponsável, indecente, impudica, compulsiva... E Daniel, um fraco. Ela? Uma vestal...

Teria de purificar-se e elevar-se, pôr-se acima e distante de inconsistências e vulnerabilidades cuja única função era pô-la à prova. A espada, de ferro transformado em aço na têmpera em um ser vivo, quiçá um guerreiro, há séculos, era sua garantia de poderes tais que, num momento relapso, ao putear contra um homem, matara por tabela o cãozinho da família, oculto sob o carro. A espada lhe daria o controle e a sintonia de seu lado destrutivo. Seria sua garantia, na verdade contra si mesma, e sorte de muita gente.

Limpou-a cuidadosamente, em minúcias. Empunhou e cedeu ao peso. Não era para batalhas, em tempos ditos civilizados. Depositou-a carinhosamente num altar na parede norte de seu quarto, entre cristais - alguns preciosos - envolta em villuto carmim sob um atilho de seda azul; o mesmo que, trançado, lhe segurara os cabelos quando conhecera Daniel. Satisfeita, determinada e feliz, foi à cata dos elementos que utilizaria em sua liturgia, na noite em que a lua seria apenas uma curva imperceptível na escuridão do céu. Ervas, pedras, metais, terra, fogo, água e banhada em ar, outros segredos e mistérios.

Sentou-se na cozinha, espichando as pernas e braços, espreguiçando-se prazerosamente. O gato subiu-lhe em cima e, ronronando alto, aninhou-se-lhe no colo. Sentia-se bem, apenas a memória do corpo incomodando sutilmente com reprises do sexo desbragado com um homem instável que, curto tempo atrás, a fizera sentir-se estupidamente mulher pela primeira vez na vida.

- Sabe que mais, gatinho? A sua dona está ficando louca...

(img: cvm - têmpera - trecho de “zero-hora: um anjo perdido” 1996 - publicada em 16/09/2009 .)


O Espelho

Caio Martins
A habitação é singela e minuciosa: forro e assoalho de madeira escura, móveis antigos restaurados com primor, pesado candelabro de cristais no teto, janelas e venezianas deste ao chão dando para o pequeno balcão de grades de ferro forjado. Há bibelôs caros, de coleção, dispostos como que se ao acaso nas estantes de livros como que para justificá-las. A cortina, levemente entre o bege e azul, deixa entrar a luz da manhã e impede a visão de vizinhos abelhudos. O tom, no interior, é sutilmente azulado.

O incenso lembra florestas, os círios em taças vermelhas e azuis mal se consomem. À sua frente, numa bandeja de cobre, estão pequenos objetos como cristais, gemas, pedrinhas, ossinhos, metais, sementes, cercando pesado meteorito quase esférico. Atrás, próxima de suas costas, está fincada a espada com sua empunhadura de madeira sangue, defesa e cabeça de bronze e lâmina polida e brilhante, marcada de cicatrizes de batalhas; oscila quase imperceptível, a sensibilidade da têmpera do aço absorve as menores vibrações da rua, da casa, do ar, da dona. Após, o grande espelho oval de cristal eslovaco.

Minuciosa e pacientemente, Lauma centra-se no espelho às suas costas. É alto, apresenta na superfície relevos apenas perceptíveis, sulcos improváveis, depressões aparentemente ilógicas e a austeridade de existir desde sempre. O bisel do perímetro irradia arcos-íris. Vira-o em sonhos percorrendo os espaços, percorrera antiquários até encontrá-lo, novamente em Praga. O “marchand” descrevera-o como milenar, elaborado do mais puro cristal de quartzo, revestido da mais pura prata. E propusera preço bestial. Contrapusera oferta ridícula, brigaram, mas o “marchand” fora incapaz de sustentar seu preço: despira-se ante o objeto, observara-se uns minutos nua e afirmara convicta: “- É meu!”.

Ao homem boquiaberto, estendera-lhe um cheque de valor sofrível e ordenara que o embalassem rigorosamente, acompanhando embarque e desembarque. Recorrera ao velho mestre restaurador das Minas Gerais, pagara sem discutir uma exorbitância em moedas de ouro e tinha-o, desde então, com rara moldura de ferro batido e jabuticabeira. Submetera-o a complexos rituais de exposição ao sol e à lua, limpezas com águas de mar, chuva e de fonte, batismo com arabescos de seu próprio sangue até o encantamento final, no círculo de velas e círios. Ele respondera, o triângulo central se lhe revelara nítido, a miríade de inscrições, figuras, traços e sinais deixaram-se contemplar.

Os cabelos negros, ainda curtos, estão macios e brilham como pelo de bicho sadio; os olhos poucamente rasgados harmonizam-se com o nariz pequeno, a boca de traços nítidos e equilibrados. O oval do rosto concebe-se com exatidão sobre o pescoço longo e fino, ombros frágeis e o colo atraem pela sensação de aconchego e maciez, seios surgindo sem resistências, pequenos e de aréolas ligeiramente escuras, síncronos. Os braços seguem a tendência, as mãos são delicadas e finas, de longos dedos; a cintura marca-se naturalmente e as costas retas encimam nádegas firmes, coxas de proporções esmeradas, pernas e pés são obras de joalheria. Há que saber ver Lauma. O sexo de forma extremamente precisa tem a candura do de uma criança, parcamente relevado sob negros velos, recendendo a mar. No instante, é nele que Lauma se resume.

As ondas de calor, luz e radiações percorrem-na na pele eriçada, penetram-na fluídos, dissipam-se por seus pés, afloram-lhe na mente. Repete-se o ciclo sem pressa ou interrupções, nas horas que passa depositada em pequeno tapete grená, as mãos cruzadas sob o diafragma portando a opala opalescente. No centro da cabeça, um topázio, sob a separação da vulva e o ânus, a turmalina negra. Concentra, dirige, absorve e dissipa energias pelo prazer de transformar instinto em luz. Hoje, sabe conviver com esse prazer, conhece os mecanismos dessa preparação, agindo sem esforço, totalmente abstraída de si e do local. Sintoniza-se com segredos e objetos milenares e, sentada de pernas entrelaçadas, dir-se-ia melhormente que flutua.

Tem o domínio do corpo, é esse ambiente. Sua beleza apura-se, perfaz-se atemporalmente, encontra-se no auge de força e poderes, nada afeta sua ligação cósmica. Afaga com ternura seus anjos e demônios. Ronronando, o gato cinza de tons escuros próximos ao azul profundo esparrama-se na cama ao lado, observando-a de olhos semicerrados, pontinha de língua de fora. Vez por outra, move um mínimo o rabo. Lauma descruza eternamente as mãos, estende ao alto os braços de dedos entrelaçados e indicadores retos. A lentitude dá maior beleza ao movimento em direção ao teto e além deste. Os seios realçam-se, bicos duros, o rosto expressa paz e serenidade, a boca abre-se demasiadamente perfeita, lábios aquecidos e confortantes. O gato, inquieto, muda de posição, ronronando alto.

No conjunto de sensualidade, paz, delicadeza e suavidade Lauma condensa-se em sua plenitude, sabe que deve obrigatoriamente desfrutar desse momento incomum e quase impossível de ser conseguido, pois antes não era capaz, depois não mais terá condições. Outro será seu trabalho. Despede-se de vínculos, um vento agita as cortinas, o gato mia e escorrega para o sol lá fora. Retoma-se no momento em que vive. Boceja, sorri, respira com gosto. Junta os badulaques parcimoniosamente, cantando cantigas de encantar. Depõe os círios na lousa de mármore azul da parede norte, ao lado e alto da cama, à cabeceira da qual a espada é ajustada em seus suportes. Envolve-se num roupão cor de pitanga e vai contemplar o bairro desde o balcão. O espelho a espia, agora opaco, pelas costas.

(img: womanstudio81 - trecho de zero hora, um anjo perdido - 1996.)

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