25 de fev. de 2011

PEIXES FRITOS

Caio Martins
















(img: grilhões. foto: lee garland/bbc brasil)

Os meus amigos sabem:
não zombarei das palavras.
Brincarei, contudo
com seu sentido, porém
exigirei de mim um instante
de disciplina e solidão.

As usarei, impunes
na comoção de moça reticente
justificação de noite mal dormida
prisão de ventre
dizer, do governo,
que é ladrão.

Desprezo montagens raras
purpurinas, holofotes
parafernálias visuais...
Bastam-me um lápis, um papel
a voz que não conseguiram calar
nesta curta eternidade consumada.

Desajeitado escriba menor
deixarei as palavras me aliciarem,
eternas visitas inconformistas
feias cicatrizes em feridas
limpando a bunda com mentalidades torpes
demasiado preocupadas com críticos de arte.

Nem brincar com palavras
nem versos como armas, nem
grilhões dourados de escolas, estilos, imposições:
chegará o dia de estarmos todos mortos.

Destilarei meus humores
meus amores
meine Weltanschauung estropiada
mi tesón por la vida como vierem
escrevendo, escrevendo, escrevendo
e me bastará que em meus versos
meus amores se riam, festeiros
meus amigos me abracem,
meus inimigos me desconheçam.

Os restos são o sentir latente
lancinantes gestos, viveres, fatos
consumidos sem tratos
longe de tantos sóis, patéticos
aplausos de deuses, demônios formatados
como peixes fritos
num prato.

Pensão da Zulmira - 26/06/1987.

17 de fev. de 2011

PAPEL NO BAR


Caio Martins.


Amigo fiadaputa... tomava cachaça, nada além de cachaça e chope, dizendo que uísque e quejandos eram coisas de boiola - sem fazer concessões para qualquer química colorida ou perfumada. E triturava, feito um degenerado, pratadas soberanas de torresmo na falta de iscas de peixe, amante obcecado de feijoadas, picanhas, costelas, pernas de cordeiro... Magro feito um cabo USB apesar de tudo, calado e quieto e olhos vigilantes, parecendo estar sempre pronto para saltar e sair na porrada. Não sentava de costas para as portas ou janelas, escolhia sempre os cantos, de onde observava, com olhar cínico e perfunctório, a mulherada. E as havia, aos montes, solitárias e ansiosas e despudoradas.

- E aquela loiraça? Vai dizer que não é um avião? Já-já ‘tô nessa, mano...
- Uh! Sei não! 'Cê ‘tá muito antigo, m’ermão. Agora é informática... Avião já era... Fosse, essa seria teco-teco... Perna curta, bunda baixa, teta de silicone, tingida e mais rolada que pedra de rio... Sucata!
- Caaraalho! Já se olhou no espelho, meu? Passou do prazo de validade faz tempo, nem falar da garantia e esnoba um mulherão desses? ‘Tá precisando de camisa de força, meu!
- ‘Tá afim de faturar uma grinfa, ou tá dando mole p’ra cima de mim? Quero não! Bagulho por bagulho fico comigo mesmo! Vai lá, que o açougue tá aberto, meu! Vai, borracheiro!

Chamou o garçom e pediu mais uma e mais um. Saiu para fumar na esquina. Nestes tempos de “politicamente correto”, era um belzebu anacrônico - a moda era “bala”, cristal, cocaína. Voltou, o amigo papeava com a loiraça, ambos cheios de risos e salamaleques de moda nas baladas. Era dos tempos das noitadas e boemia. Tomou a cachaça de a golinhos, triturou um torresmo, arrematou com o chope. Daí o novo casal da balada veio; levantou-se frio feito rabo de foca. Apresentados, olhou a moça da cabeça aos pés, rodeou, pediu licença e passou-lhe a mão na bunda. Ela deu um pulinho e disparou num riso incontrolável. - Cara mais louco! - repetia.

- ‘Tá certo... Tá certo... Inda ‘tá de jeito, dá pro gasto. Vão com deus, crianças - e voltou a sentar-se, aparentemente alheio a tudo e todos. O outro - indignado - catou a boneca, de arranque, e saíram sem despedirem-se. Ficou no canto, isolado e invisível, os olhos incisivos não perdoando nada nem tudo, manguaçando ritualmente. Levantou o dedo, o garçom veio pachola. Pediu papel e uma caneta. Impudica e misteriosa, ousada e atrevida, mas solene e serena feito uma gota de orvalho num parabrisas (tinham-se extinguido, há tempos, as flores), a lágrima levou uma eternidade até explodir no tampo sintético da mesa. Não é fácil escrever à mulher amada, ausente pelos milênios etc.. - Puta ironia! - se dissera ao despedi-la.

Escreveu um poema devagar e com letra excepcionalmente caprichada como não se usa mais, depois leu várias vezes. O garçom trouxe outra leva de mineirinha esperta, dispensou o chope e o torresmo. Deixando o papel sobre a mesa saiu para outro cigarro politicamente incorreto, chovia parcamente. Pertinho, a praça. Na praça, o banco... Alí o encontraram - a falsa loira siliconada de bunda baixa e o amigo - quase no raiar do dia, teso e lagrimado da chovisna, um rito feliz no rosto paraláxico e mortinho da silva.

Morrera de amor e de saudades.

(img: amigos - tela de joão werner)







10 de fev. de 2011

RÉQUIEM GRANÍTICO


Caio Martins














(img: cvm - jaquie-tela/2001)

Menina vadia
brincando de pedra
cadê tua impudícia
teu jeito de cio?

A pedra é inútil
a pedra é amorfa
a pedra é tão fria
a pedra é estática
a pedra errática
tem oclusões vaginais
tem pedrinha hepática
por beber sonhos demais.

Quer ser celebridade
quer invadir a cidade
nua nos jornais...

A pedra quer ser escultura
a pedra quer ser pintura
a pedra quer ser partitura
quer ser imagem de santa
beijada no pé, num altar
quer ser a heroína
da hecatombe universal.

No meio da vida
nua se viu
no meio do peito
da cama do poeta...

... e armou o capeta.

Vai ver que de tanto
brincar que era pedra
no enleio do ato
chutou o amor
que virou, de repente,
pedrinha miúda
num pé de sapato...

(Vila Mirim, 01/12/1966 - Pensão da Zulmira, 14/06/1987.)


7 de fev. de 2011

OPOSTOS

Caio Martins












(img: carnavalveneza/wikki)

Desde o início foste reticente,
não se perguntou se eu te queria.
Tomaste conta de mim
sem importar-te com meu pranto
e espanto de bofetada.

Houve momentos nos quais
não me dei conta de teu domínio.
Na memória nada resta, o resto
sempre foi teu pé na garganta,
a espada no peito, retilíneo
jogo unilateral.

Inerme
mal aprendi a defender-me
fraco
tentei mostrar-me astuto
insensato
me reconheci no teu oposto.

Julguei, nalguns momentos
tomar-te toda, sugar
os cálices de teu corpo
embebedar-me de teus licores
tomar-te sacrílego, fremente
até ter-te tonta e louca
incapaz de seres sensata.

Desafiei-te:
que esmagasses!
Brigaria e criaria tudo de novo
sem o pânico da alcatéia.

Perdi os momentos, movimentos
do solo desvairado, sem estréias.

E não houve também mulher alguma
capaz de suicidar-me
tirar-me tudo, o nada
que sempre tive... Que pena!

Mas tu, Vida
escorres a cada segundo
dentre meus dedos, te insinuas
e negaceias, me invades
e me deixas só.

A cada segundo, o irritante
é pressentir-te o sorriso no rosto.

No rosto
do teu oposto.

(Hotel Bradesco – Ribeirão Preto.
10/09/1986.)

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