20 de dez. de 2011

A FLOR DO NATAL

Caio Martins
Mas, chamava-se Flor? Ninguém mais  se chamava Flor de há muito tempo. Flô... Tão certo quanto existir o Efeito Borboleta... Por que não Efeito Lagartixa? Efeito Plasmático Nanotecnológico Orbital? Flor? Não acreditava... Inda por cima, morena tingida... Pior que uma loira burra, só uma morena tingida... Chapinhas... Saltos assassinos... Microssaia imperdível, blusinha ‘tánamão”, batãozão vermelho combinando com a calcinha, sombras azuis... Falsos ouros nos pulsos, orelhas, pescoço... Aquilo não era uma mulher... era um atentado à segurança pública... Não iria ao encontro mas nem se o Cramunhão o levasse pras profundas...

Assim martirizado e angustiado, sufocado e temeroso, lembrou do ditado do Vô Venâncio, criancinha ainda era: “- Firma a cangaia que a coisa ‘tá feia!”... O Vô... bicho brabo, da roça, sertão, pezão espalhado, olhadela de esgueia... jagunço! Saíra atrás dos primos e tios de carabina quando - ele aos doze anos - foram pescar. E, calorão de espoucar macaúba, tchibum no rio, homaiada pelada... Os parentes descobriram que lhe apareciam os primeiros pelos: já era homem! E lhe deram cigarro de palha, cachaça e o levaram à zona. Fora a parte mais difícil, a mulata era grande, farta, carnuda... Ele? Magricela e um trenzinho miúdo, sumido... Desde aquele entonces, só se dedicara às magrelinhas baixinhas...

O Vô ficara macho... Pegara a carabina e a cambada desandara no mato, uns dias... Depois, tudo voltara ao normal. Ele, agora ali de anelão no dedo, nos trinques, pinta de doutor... não podia negar a raça, afinal ganhara a Flor num jogo de bilhar. Não que a periguete fosse o prêmio: vencera um otário que se dizia campeão, levara a grana e a morena se lhe achegara, sestrosa... Morenaça loira... Uns peitos espetados, olhos negros, de volúpia, boca de tesão... e aquelas pernas, suntuosas colunas de ... de... não lembrou de batepronto o nome do material. Lera algo num autor de mais de século atrás: - Êh! bundão véio sem porteira!... Âmbar, cacete!

Na rede social, papeara muito com a Flor... A moça era ligeira, tascava inglês adoidado, dizia que sim, talvez, que não, quem sabe... Marcara o encontro. Ela afirmara que se apaixonara ao vê-lo jogar e quebrar as pernas do Kelvin (sic!), tido por fodão no bilhar, mas, de fato um zéarruela, malandro agulha  dos que quando sai da linha só leva no rabo... Depenara o otário, pagara bebida pro bar inteiro... Agora, ia para o sacrifício... Aquela imagem da mulatona da primeira vez assombrando, nem armamento tivera para tanta batalha... Trauma! Pior ainda: era véspera de Natal... Ele Natal, viajante, perdido na cidade infernal a centenas de quilômetros de casa... Casa?  

Largou o carro no estacionamento, não sem antes dar recado que se sumisse estepe, ou o próprio pé-de-lata, ia ter “cena de sangue” e viraria, o guardador, notícia ruim nos programas carniceiros da TV... Chegou andando feito sapo na porta da buate, de dentro vinha o som do pancadão dos nóias transtornados. Freguês, chegou ao segurança - armário negão de dois por um e meio - e pediu que chamasse a donzela... Sentiu as mãos frias, vontade desesperada de vazar, pegar estrada, voltar para casa... Casa? Não tinha casa... Daí a moça veio, até que estava bonita mesmo tingida... Bonita? Um arrazo!

Saem de braços, cafonas, ela quase um palmo mais alta, direção ao hotel. Diz-lhe que não está bem, melhor um jantarzinho, depois veriam. Flor o observa, já à mesa, longamente em silêncio... E aí na lata, sem tapumes, lhe diz: -Você tem vergonha de mim? Eu sou o que sou, querido... E não fico de santa, de cocota enrustida! Sou puta... e daí? Congela... olha muito o rosto, procurando e procurando... observa feito coruja o gogó... nada! Então se arma de insuspeita coragem da gota serena e mete a mão dentre as generosas coxas cor de âmbar da Flor... Leva soberana bolacha na orelha, a fera já se levantantando na fúria, já tirando o sapato de salto assassino e com febre ainda mais assassina nos olhos...

- Para-para-para-para... ‘Taquepariu! ... e desanda a gargalhar, até às lágrimas e doer de tripas... O povão? Ah! O povão sempre quer sangue... Flor trava, estupefata, a vela de Natal deita uma tépida lágrima vermelha... Conseguindo respirar, ele toma baita alento, abre os braços e desanda a gritar:
'Táqueriu! Deus é pai, não é carrasco... Bendito seja... Louvado seja... ‘Taquepariu!!! Você é mulher! Você é mulher!!! ... O povão? Ah! O povão, exorcizado, aplaude delirante... Natal... Ficam ali enroscados um tempo, entre lágrimas, beijos desesperados, num abraço torto e doído que finalmente sai, meio que cambaleando como que dançando, para a avenida...

(img: mulata - di cavalcanti)

Urupema, 20/12/11.   

26 de nov. de 2011

SILÊNCIOS

Caio Martins

Para Jeanne.
















(img: cvm.kidman - aquarela 2011)


Te amo...

A memória, faca
laica
- insaciável, transitória -
quebra seus pertences
sem contar com glórias.

Fecha seus claustros

- insondáveis pergaminhos -
e cala
a trajetória tensa do sentir
árdua, impenetrável bala.

Contemplo teu olhar
- inquietante arquitetura -
e me diluo aos segundos
de cada século
em que perduras...

A memória insiste
- indecifrável sintonia -
e cala.
Não há tempo, lugar,
nem sinfonias...

Nas luzes de prenúncios
- inda que desande o caos -
te calas...
Sabes que te amarei
ao som de teus silêncios...


15 de out. de 2011

O Erro...

Caio Martins.

Saiu calmo, como se diz, “na moral”, “na boa”. A mulher o espiava da janela do hotel, deu-lhe festivo adeuzinho. No carro (como sempre imundo por fora, mas máquina ajustada em pleno exercício das funções e veterano de outros adeuses) relaxou tratando de ser ágil naquele já então inferno de amebas histéricas submergidas em gases tóxicos, aço e asfalto. Os hormônios da fêmea ainda agiam em suas veias, glândulas, instintos. Pagara a prostituta não pelo serviço, mas, para poder ir-se deslingado, ou para que ela assim se fora. Na estrada parou num frege-moscas, engoliu um gole de cachaça, um sanduíche qualquer com guaraná, um café fervido, calibrou pneus no posto, encheu o tanque. E acelerou.

Recebera avisos, alarmes, insinuações e conselhos. Desnecessários... Sabia que não haveria retorno - a menos que se tornasse um traidor - e que o momento era aquele. Horas mais, teria de brincar de herói ou tornar-se mártir. Não fora para o que nascera. Naquele “treze de dezembro de 1968, vinte e quatro membros do alto escalão do governo militar se reuniram e editaram o Ato Institucional 5, o famigerado AI-5, que possibilitara o fechamento do Congresso Nacional e acabara com o direito de habeas corpus dos parlamentares, direito adquirido com a Constituição - já fajuta - de 1967”. Os anos de chumbo tomavam seu perfil mais ensandecido.

O discurso de um senador, Márcio Moreira Alves, clamando pela volta da democracia, fechara as portas à luta legal e aberta. Era o momento da clandestinidade, da ausência absoluta dos entes queridos, amigos, família; tempo das identidades falsas, da solidão por escolha segura, dos segredos e das entrelinhas. Da certeza que era o momento só do bilhete de ida, e da presença ineludível da morte. Quando se elege lutar contra uma tirania - invés de calar-se ou fugir - e levantar-se em armas, os caminhos da vida se estreitam, beira-se precipícios e, não havendo estrutura moral que sustente, raia-se à loucura. Não há lugar para erros.

Não era o caso. Não temia a morte, mas a dor; não temia o combate, mas a tortura. Não seria presa fácil, como tantos que, inermes, se lançaram contra a máquina de moer gente. Dizia que não se importava em partir desde que levasse alguns canalhas consigo. Acelerava... No coldre uma automática, pelos bolsos carregadores e, dominante, uma saudade infeliz e incômoda, angustiante e incisiva da moça de olhos claros, franzina e esbelta, cujo sorriso lhe derretia as couraças e o transformava, de guerreiro, em deslumbrado menino. Meses... meses... Já não doíam mais o tiro na barriga, outro na perna, mais um no braço. O que doía, era a ausência.

Num posto perto do destino, mandou lavar o carro, fez a barba no banheiro. Cabelos curtos, terno impecável, postura alfa, passou barreiras de desajambrados soldadinhos, deixou o carro no cafofo, ao chegar à cidade, e não resistiu. Assumindo cuidados extraordinários, rondando feito lobo, entrou no edifício. Tinha as chaves, conhecia as manhas da velha fechadura. Girou o trinco, entrou e sentiu o cheiro de coisas de mulher. Acendeu a luz, trancou a porta. Ela deveria estar dormindo, seminua naquele calorão de fim de ano. Ouviu inaudível ruído, como um estalo de cama, dirigiu-se ao quarto na ânsia de vê-la.

Nem se deu conta ao levar o tiro na cara.

(img: cvm - tiro - 2011)




29 de set. de 2011

Canção para Jeanne

Caio Martins










Nas tuas frágeis,
longas noites de silêncios
distâncias, instâncias
precariedades
- impenitente -
és cidade que percorro
a passo, gestos parcos
mudas palavras
eloquentes...

Mas se me dás
nalgum instante
esse prazer finito
de comoção cósmica
cômica
das luzes de teu riso
eu não me importo...

Te amo,
nada mais é preciso.


14 de set. de 2011

SEGREDOS

Caio Martins













(img: franz eybl - mädchen)


Tens ar indefeso
nem de mulher, ou de criança
mas guardas impensáveis segredos
que não os entende nem a própria natureza.

E se acaso me lanço em tuas trilhas
- indecifradas trajetórias sem retornos -
a fúria da terra me aterra
mas, por paixão, não retrocedo.

E me tens como se fosses dona
por mais que eu esperneie e bata e grite
por saberes que estarei em teu caminho
entre troncos, frutas e sementes...

Conheço o teu poder, as tuas manhas
e mesmo que me custe o tempo, a vida
tudo que faço é ceder à tua magia
deslumbrado ante tantos brinquedinhos...

(em “mulher - imagens e poemas” - jan/99 - scsul - fundação pró-memória)





3 de ago. de 2011

LUA

Caio Martins















(img: autorittrato damaride marangelli)

Séria surges
quando não mais te esperam
e vens detrás de olhos verdes
rubra boca vestida de festa.

E mentes, inventas
impudica, descarada
oscilando enfáticos seios
cabelos longos, longos
braços e pernas
noturna praia úmida
ávida de despojos...

Que desperdício de cenário!

Pensar que bastaria um só sorriso
(mesmo que não viesses nua)
e não naufragarias nas armadilhas
de meu amar promíscuo
tão frágil
tão precário...

(em "mulher, imagens e poemas" - 1999 - fundação pró-memória s.c. do sul)

19 de jul. de 2011

Génesis

Caio Martins













(img: genesis 2011 - tela aramado)


Entre arrepios
de tua pele suada
ofegante, entre
suspiros, queixumes
lágrimas e grito
te desmanchas
comovendo o universo.

Entre tantos entretantos
e tua nudez safada
vou
comovido animal liberto
em disparada
por teus meandros e recantos.

Depois nos olhamos
compreensivos
contemplando o que sobrou
dos bisonhos
fêmea ancestral
e macho astuto
definitivamente
expulsos do rebanho...

28 de jun. de 2011

BAILARINAS

Caio Martins













(img: cvm - mariann/arquivo - 1998)

Atrás da figura
etérea, desconvexa,
que flutua num palco
como quem
se perde na esquina;
atrás
da sinfonia patética
das cruéis sapatilhas
tules arrogantes,
asfixiantes corpetes
e frágeis calcinhas,
está presente
contida
a mulher
onde o homem se perde
onde o homem se encontra
some e consome;
a mulher
onde tudo começa
onde tudo termina
esperando
escondida
a menor distração
da menina...

Adriana Calcanhoto - de Chico Buarque e Edu Lobo





12 de jun. de 2011

TEUS PASSOS

Caio Martins













(img: cvm - leca35 - 2007)



Te diria todas as palavras
me denunciarias em quaisquer gestos
e náufragos, bêbados, tontos
me perderia em teus caprichos
irremediavelmente
até rasgar-me nos cacos
de teu riso cristalino de mulher...

Até
deixares teus cheiros em meu espaço
rastros de tuas garras em minha pele
e em minha boca teu gosto de (a)mar...

Até
ver a porta que abriste
incerta
fechar-se após teus passos desertos.

Até
alçares, liberta, teu voo
após dizer-me até sempre...
quem sabe...
nunca mais...

(aeroporto de congonhas - 25/12/07)
 

22 de mai. de 2011

O MOMENTO MÁGICO

Caio Martins

Para Stela.












(img: cvm - lucienne059 s/hubble - tela 2007)


A exorbitância de cerveja
os restos de música
estonteavam-me.

A estrada de volta ora se estreitava
ora adquiria os limites do mundo.
Ficava para trás, na velocidade
passava de novo adiante.

Santo porre, confesso.

O guarda noturno, oculto
pelas árvores da minha rua
espreitava
sinistro e curioso.
Saudei-o de um buzinaço...
infelizmente não morreu de susto.

E no meu portão
e no meu jardim
me esperavas, irritada.

Tudo ficara por falar.
Nada nos dissemos, no instante
murmurei “- Vem!”

Na bagunça de meu quarto invadido
baixaste os olhos, engoliste
um soluço, arrancaste tuas roupas,
frenética
as minhas roupas
e nos mordemos, arranhamos, lambemos
uivamos
embriagados de cio.

Prodigiosos
reinventamos o sexo.
Litúrgicos
nos lambuzamos de mel.

E, quando já dia
saí de teu corpo zonzo, extenuado, incrédulo
te demoraste em meu olhar
e levantaste, inspecionaste
os destroços do cenário cheirando a mar e mel
teu corpo e meu corpo
como para ver se restara algo.

Foi nesse estranho momento
que me ocorreu, ateu que sou
que deus ainda inventa coisas como as tuas
e disseste enternecida, como dona:

"- Palhaço!"

(16/03/1986-06:00 -terra nova - sbc.)

5 de mai. de 2011

HIATO

Caio Martins.

Para Ethel.












Sempre há
tenso hiato
entre corpos
de mulher e de homem.

O essencial, melancólica
harmonia caótica
na qual intensos se consomem,
se o sentir se pensa, é fato raro.

Entre quatro paredes, entre
dois, a dança crispa seus disparos,
enlanguesce e se define:

os corpos não têm noção,
nem querem, do que oscila
entre o sórdido e o sublime.

(sbc - páginas amarelas - 01/02/1991 - sp - 05/05/2011).

28 de abr. de 2011

LARGO DE SÃO FRANCISCO

Caio Martins
Para Silvana Garcia











(imgart: cvm - lgosfrancisco-beijo-2009)


Passam as gentes pelos átrios
arcos e capitéis, no páteo
vem a moça sem pressa
levando os seios espetados
bandeiras em dia da pátria
e a menininha disfarça
o medo da imensidão...

O Largo não passa.  

A Faculdade de Direito
de tradição libertária
saúda o velho menestrel.
Já a ocupei em armas
bradei da tribuna alarmas
fugi de ser bacharel.

A Igreja atrapalha
o fluxo da cidade
faz caretas à mocidade
que nela não liga mais.

O Largo de São Francisco
suspira um tempo passado
num templo embolorado
onde havia idéias, ideais
escorrem com letras mortas.

Carrega ossos em suas tumbas
já não produz mais poetas
noturnos de alvorecer
requenta memórias das quais
a cidade esqueceu de esquecer.

A única elisão simpática
na patética estética eclética
cinza, suja, gris
é Silvana que vem flutuante
atrás de seus peitos densos
atrás de seus jeitos mansos
de sorriso desbragado
com sua voz quase rouca
vestido entrado nas coxas
despertar um poeta infenso
que a beija com deleite
e leva como enfeite
rubra boca na boca.

A menininha alerta:
- Mamãe... olha um palhaço! -
e sai correndo, feliz.

(Pensão da Zulmira - 20/07/1987

21 de abr. de 2011

PECADOS...

Caio Martins.














(img:cvm - mariann - 1999)


Tivesses, talvez
apagadas estrelas, outros
tempos, ritmos, rituais
não farias, quem sabe
arderem em fúria medíocres átomos
e amebas cruas, partes
atávicas deste universo
elementar.

Porém, ao teu corpo consumir
meus olhos, estruturas,
a textura de meu sexo
meu nexo e sentidos,
pulsaste liberta e vadia,
ilha in(can)descente
de magia essencial.

Mulher...

E depois ficaram
só os traços
de tuas unhas e dentes
teu abraço
de longos braços e pernas,
teu cheiro, o jeito
de menina antiga, (e)terna,
o sabor acre
desta paixão desorbitada,
ancestral.

Soubessem deste delírio
“irreverente-devasso-amoral”
medíocres átomos e amebas
cruas empedradas,
suspeitassem
- os puros, santos e anódinos -
desta loucura atemporal
e seríamos fuzilados...

(26/12/1990 - sb. do campo)

13 de abr. de 2011

“SHIFT + DEL”: O MUNDO AZUL

Caio Martins
Recebera, numa noite chuvosa e fria, mais uma mensagem da “ex”, intempestiva mulher que o deixara feito trapo de chão ao partir inopinadamente... Pedira-lhe não telefonar (a voz o detonava!) Dizia-se amiga, mas que “estavam num jogo perigoso” ao trocar “e-mails". Dos anos vividos juntos questionara: “- Foi tão ruim assim?” - e que não precisava ser grosseiro ao responder suas mensagens, patati-patatá... Pirou na batatinha! Escrevera em minutos, enviara a mensagem e suspirara fundo... Só releu longo tempo depois:

“Foi mal... E não tenho desculpas para a raiva, bronca ou, como diz elegantemente, "grosseria". Supõe, ainda, reações que uma mulher nunca teve ou terá, no mais das vezes rindo dos meus ou seus momentos de cio e impertinência. Não importasse, não teria suposto e errado. Então diz que sente saudade, sim, e me chama de ingrato... Ou nunca soube, sequer entendeu o que houve comigo até partir e menos ainda depois, ou faz jogo no mínimo irresponsável e noutro extremo, não importando as intenções, muito safado. Luz no picadeiro, a questão como sempre é a do método, todavia este nos trai na mesma proporção que o prazer do jogo nos atrai. Cremos que sempre é menos arriscado com time conhecido. As lembranças de pele são, via de regra, traiçoeiras. Amar é outra coisa, pelo que me penitencio.

Ficaram-lhe, porém, marcas profundas, além de um nome profissional que sempre exigirá explicações principalmente para quem nunca gostará de ouvi-las, às vezes um lugar, ou o comentário num filme, um gesto, cheiro, cor, insignificâncias, quando fantasmas sempre sairão do baú, pois se não há vontade de preservar o outro, NADA foi resolvido e o ciclo se perpetua, com ele péssimos momentos para mim, como os deste ano. Se não pensou nisso, é mais que hora. Não terminou. Tem de terminar. Se pensou, então haja bronca ante a sacanagem.

Fiquei na toca por sobrevivência. Deveria partir, queimar os navios, não deixar rastros nem traços. Deveria ter sido realmente grosseiro e dito que jamais a veria, ouviria ou leria de novo, que fim é fim, porta na cara sem o pé no vão do batente. Contudo, não fui capaz. Errei pensando que você seria. E toda vez na qual cheguei a pensar que, enfim, tinha superado o desastre, a moça vem, virtualmente (timidez?), começando tudo de novo. Qual TUDO? O que couber na pasta Sentimento de Perda. Nada desejável ou elogiável. É tão difícil de entender isso? Que remexer na cicatriz causa dor maior que a do ferimento? Êta! Dramalhão mexicano! Nelson Rodrigues diria diferente, que amor de pica é o que fica... Começamos mal, terminamos pior,e não acho um termo adequado para esta parte do roteiro definido por você como "ficando perigoso". Então, porque cutucar o pior de mim?


Aí, partido entre o orgulho de sabê-la bem sucedida, com promoção, apartamento, telefone, carro e esse "tudo" acima, entre a sensação de prazer por haver acertado plenamente na perspectiva de sua trajetória e o inferno da sua ausência (lá vai o Nelsão, de novo!), não posso adoçar, descartado, ao tê-la remexendo a lixeira. É pedir o impossível. O sintoma mais "dramático", destrutivo e corrosivo é ontológico: a mediocridade do ciúme. Coisas absolutamente imbecis como encher a cabeça perguntando com quem estará, dando para quem, vivendo o quê com quem, e se o tal quem (estranho nome!) sabe que a ... (evitemos palavrões, é grosseria, certo?) telefona e escreve gracinhas, filho da puta de um corno (ao menos intelectualmente...). Ou, do lado adversário, comprar provocação primária e dizer que a outra me mandaria tomar no cu (tanta delicadeza comove!), partindo para trocação (veja os combates do MMA) retórica.


Daí, o Bozzo se pergunta: puta que pariu!!! O quê essa &%$#@+-/|\ quer comigo, aqui quietinho no meu canto, tentando botar ordem na vida no pior ano vivido? Tá com saudade? Foda-se! Se aguente! Tá no cio sem macho? Vá se catar! E segue por aí adiante... É ruim! Muito ruim! Preciso de tudo, menos disso!


Se (ah!, esse infernal, traiçoeiro e covarde recurso patético de sempre deixar uma porta aberta...) não é nada disso, então fodeu tudo de uma vez! Aí só teria o caminho de sumir no mundo, e essa merda dá um trabalho do cacete; não estou mais para heroísmos. Sou eu, não importa como? Sabe o caminho! Não? Perdoe a teatralidade ridícula, mas, fique longe de mim. Não quero brincar mais, estou fora do jogo...”
 


Riu-se do (agora!) ridículo. Nunca obtivera resposta. Nunca mais soubera dela. Veterano de tantas “guerras” - aquela fora a mais dramática - selecionou o arquivo, apertou as teclas “Shift+Del”, desligou a máquina de fazer doido e foi dar peixe ao gato vira-lata na janela. Lá fora naquele outono magistral, tirante a luz amarela da rua, o mundo era azul...

(img: fabian pérez - el farol) 


5 de abr. de 2011

PERMANÊNCIA

Caio Martins













(Img: cvm - jackie2001 s/unbekannt)


Vês, nesta cidade ensandecida
esta casa escancarada?
Entra, fica um só instante.

Não há cadeiras, cama, mesa
só resta um poço com água.
O balde sumiu...

Havia um jardim, já sem flores
mas ainda há terra
não oxidada pelas guerras.

O telhado já caiu, não tenhas medo.
No porão há velharias
famintas de companhia.

Entra! Vem!
Num caco de espelho reflete
teu olhar de susto, tua vida
tão esperada pelas paredes mambembes
ameaçando ruir ao teu menor suspiro.

Estas ruínas pedem
que tua vida as habitem.
Este jardim só deseja
ver crescer capim, matinho...
Pedir flor
seria descabida exigência.

Não temas, não!
De nada importa o que sejas, ou ainda
o que pensas, venhas ser:
esta casa te aceita, não te explica.

Sempre parti cantando
sempre voltei amargo.
- Nunca fui bonzinho, perdoai!

Mas já sonhei, foi lindo
até a vida (re)voltar-se
e dar-me cuspida na cara.

O medo habita comigo
ulcera meu umbigo
corrói meu ânimo
macula meu beijo, mas te recebo
sem qualquer explicação.

(centro acadêmico de scs - a casa da esquina - I. 17/03/1968)

29 de mar. de 2011

NOVO AMOR


Caio Martins

Pour J. D'Arc.












(img:cvm-portman/holograma2011)


Meu novo amor é um mistério!

Surgiu assim como do caos
incólume, envolta em rituais
de inomináveis transparências
a sorrir, eu quedo e sério...

Meu novo amor se manifesta
com palavras pegas a dedo
exige sigilos, segredos
e os deixa em versos num varal...

Não sei de seu gosto ou cheiro
sua voz nunca ouvi, um lampejo
do olhar me diz ser ardente
e louca, palhaça, fatalle.

Se brinco ela chora
se brigo faz festa
a chamo de bicho,
diz que sou bobo
a chamo de tonta,
me diz que sou lobo...

Meu novo amor neutrônico
catódico, cibernético e anônimo
é virtual, quando quer.
Mas, meu deus...

... que linda mulher!...


17 de mar. de 2011

COISA DE BICHOS

Caio Martins
Para Stela e Alceu Valença.













(img: cvm - kelly/galaxia - 1999)

Estendeu-se
num gesto sublinhado
o véu de teus cabelos sobre meus olhos.
Diluí-me nas sombras de teus olhos
sem ansiedade, apenas
vacilei entre a dúvida
e a ironia.

O brilho de um rubi em tua orelha
revelou-me a ardentia de teu rosto.
Percorri teu rosto
vacilando entre o alumbramento
e a fria perfeição de teus traços.

O som de tua voz metálica
como o sustenido de um harmônio
fixou-me em tua boca.
Vacilei entre beijos
ou mordidas.

E assim foi lentamente
com teus braços
tuas mãos
teus seios
tuas pernas
teus pés
teu ventre
até ter-te incontida.

Até sucumbirem tramas
regras, usos e costumes
tua perspicácia
meus notáveis argumentos
diluídos febrilmente
na sofreguidão de momento
da umidade convulsa do sexo
em delírio e desvario.

Coisa de bicho-gente
no cio....


(07/03/1986. Peña Los Hermanos - Pensão da Zulmira)
Como dois animais - Alceu Valença - 1997



4 de mar. de 2011

A Espada

Caio Martins

(Veja abaixo "O Espelho", complemento desta crônica)


Aproveitando propício momento, fora atrás do sonho ainda muito menina, uma criança. A “Primavera de Praga” sucumbira sob os tanques soviéticos, havia desencontros e confusões, agitação e tristeza por toda a então Tchecoslováquia. Passou sua figura miúda e leve por manifestantes, soldados, chuva de pedras e nuvens de gás lacrimogêneo. Encontrou a ladeira de pedras antigas e a porta de ferro batido, as escadarias de carvalho e, numa sala soturna, iluminada por candeeiro a óleo, o velho sumido em trapos. A mão da mãe a soltou.

- Vim buscar a espada!
- disse, num idioma inóspito e que lhe era estranho. O velho indicou-lhe onde. Pesada, corroída pelo tempo, a madeira do cabo desaparecera há décadas, talvez, mais de séculos. Beijou a mão ressequida e frágil, pegaram a conquista e saíram apressadas. A relíquia passou alfândegas com funcionários relapsos e cansados de alguns países até, finalmente, chegar em casa. Levou-a, anos depois, a ferreiro perdido no fim do mundo, nas serras de Minas, e pediu-lhe a reconstrução. Esse também, sem palavras vãs, pegou, sopesou e pediu-lhe um mês. Estremecera de emoção. O pai, companheiro da empreitada, também.

Nos trinta dias, pegou-a. Perfeita, polida, o cabo de raiz de jacarandá amoldando-se em suas mãos pequenas como se juntos tivessem nascido. Pagou em ouro, moeda trazida de outras eras e herdadas em gerações. Lauma respirou fundo, intangível, verificando a arma ancestral milímetro a milímetro em busca de imperfeições inexistentes, fora as cicatrizes de batalhas, e pegou o caminho de volta. Completaria o ciclo com o espelho, quase impossível de encontrar. Agora, vinte e um anos passados, haveria de tê-la em ritual milenar, repor sua marca e intensidade para, finalmente, dotar-se do último elemento para a definitiva consagração espiritual.

Contudo havia um homem, frágil e perdido de si e do mundo, que lhe entrara pela pele e tornara-se, ao mesmo tempo, numa promessa de amor e perspectiva de um desastre. Daniel... reduzido, de líder emblemático e moderno guerreiro, a espantalho lamentoso por ter-lhe cruzado o caminho, na hora errada, um anjo perdido; fêmea primitiva e oblíqua, para quem o mundo começava e terminava nas genitálias e, pela graça e beleza, seduzia instintivamente os alfas de sua espécie. Letícia...

Conseguisse centrar-se, seria sua própria salvação, a libertaria para seguir sua saga e seus caminhos. Não podia permitir-se odiá-la, porém, odiava. Na sua linhagem e tradição, eram-lhe vedados humanos sentimentos banais; paixão e ódio, rancor e mágoas, desejo e medo... Filha do equilíbrio e da sabedoria, Lauma chorara apenas uma vez, quando aquele homem fraco a inundara de tanto carinho que perdera, além do controle, a férrea vontade e certeza de sexo ser como singela busca de alimento, madrugada em curso, num assalto à geladeira. Letícia era promíscua, indecorosa, irresponsável, indecente, impudica, compulsiva... E Daniel, um fraco. Ela? Uma vestal...

Teria de purificar-se e elevar-se, pôr-se acima e distante de inconsistências e vulnerabilidades cuja única função era pô-la à prova. A espada, de ferro transformado em aço na têmpera em um ser vivo, quiçá um guerreiro, há séculos, era sua garantia de poderes tais que, num momento relapso, ao putear contra um homem, matara por tabela o cãozinho da família, oculto sob o carro. A espada lhe daria o controle e a sintonia de seu lado destrutivo. Seria sua garantia, na verdade contra si mesma, e sorte de muita gente.

Limpou-a cuidadosamente, em minúcias. Empunhou e cedeu ao peso. Não era para batalhas, em tempos ditos civilizados. Depositou-a carinhosamente num altar na parede norte de seu quarto, entre cristais - alguns preciosos - envolta em villuto carmim sob um atilho de seda azul; o mesmo que, trançado, lhe segurara os cabelos quando conhecera Daniel. Satisfeita, determinada e feliz, foi à cata dos elementos que utilizaria em sua liturgia, na noite em que a lua seria apenas uma curva imperceptível na escuridão do céu. Ervas, pedras, metais, terra, fogo, água e banhada em ar, outros segredos e mistérios.

Sentou-se na cozinha, espichando as pernas e braços, espreguiçando-se prazerosamente. O gato subiu-lhe em cima e, ronronando alto, aninhou-se-lhe no colo. Sentia-se bem, apenas a memória do corpo incomodando sutilmente com reprises do sexo desbragado com um homem instável que, curto tempo atrás, a fizera sentir-se estupidamente mulher pela primeira vez na vida.

- Sabe que mais, gatinho? A sua dona está ficando louca...

(img: cvm - têmpera - trecho de “zero-hora: um anjo perdido” 1996 - publicada em 16/09/2009 .)


O Espelho

Caio Martins
A habitação é singela e minuciosa: forro e assoalho de madeira escura, móveis antigos restaurados com primor, pesado candelabro de cristais no teto, janelas e venezianas deste ao chão dando para o pequeno balcão de grades de ferro forjado. Há bibelôs caros, de coleção, dispostos como que se ao acaso nas estantes de livros como que para justificá-las. A cortina, levemente entre o bege e azul, deixa entrar a luz da manhã e impede a visão de vizinhos abelhudos. O tom, no interior, é sutilmente azulado.

O incenso lembra florestas, os círios em taças vermelhas e azuis mal se consomem. À sua frente, numa bandeja de cobre, estão pequenos objetos como cristais, gemas, pedrinhas, ossinhos, metais, sementes, cercando pesado meteorito quase esférico. Atrás, próxima de suas costas, está fincada a espada com sua empunhadura de madeira sangue, defesa e cabeça de bronze e lâmina polida e brilhante, marcada de cicatrizes de batalhas; oscila quase imperceptível, a sensibilidade da têmpera do aço absorve as menores vibrações da rua, da casa, do ar, da dona. Após, o grande espelho oval de cristal eslovaco.

Minuciosa e pacientemente, Lauma centra-se no espelho às suas costas. É alto, apresenta na superfície relevos apenas perceptíveis, sulcos improváveis, depressões aparentemente ilógicas e a austeridade de existir desde sempre. O bisel do perímetro irradia arcos-íris. Vira-o em sonhos percorrendo os espaços, percorrera antiquários até encontrá-lo, novamente em Praga. O “marchand” descrevera-o como milenar, elaborado do mais puro cristal de quartzo, revestido da mais pura prata. E propusera preço bestial. Contrapusera oferta ridícula, brigaram, mas o “marchand” fora incapaz de sustentar seu preço: despira-se ante o objeto, observara-se uns minutos nua e afirmara convicta: “- É meu!”.

Ao homem boquiaberto, estendera-lhe um cheque de valor sofrível e ordenara que o embalassem rigorosamente, acompanhando embarque e desembarque. Recorrera ao velho mestre restaurador das Minas Gerais, pagara sem discutir uma exorbitância em moedas de ouro e tinha-o, desde então, com rara moldura de ferro batido e jabuticabeira. Submetera-o a complexos rituais de exposição ao sol e à lua, limpezas com águas de mar, chuva e de fonte, batismo com arabescos de seu próprio sangue até o encantamento final, no círculo de velas e círios. Ele respondera, o triângulo central se lhe revelara nítido, a miríade de inscrições, figuras, traços e sinais deixaram-se contemplar.

Os cabelos negros, ainda curtos, estão macios e brilham como pelo de bicho sadio; os olhos poucamente rasgados harmonizam-se com o nariz pequeno, a boca de traços nítidos e equilibrados. O oval do rosto concebe-se com exatidão sobre o pescoço longo e fino, ombros frágeis e o colo atraem pela sensação de aconchego e maciez, seios surgindo sem resistências, pequenos e de aréolas ligeiramente escuras, síncronos. Os braços seguem a tendência, as mãos são delicadas e finas, de longos dedos; a cintura marca-se naturalmente e as costas retas encimam nádegas firmes, coxas de proporções esmeradas, pernas e pés são obras de joalheria. Há que saber ver Lauma. O sexo de forma extremamente precisa tem a candura do de uma criança, parcamente relevado sob negros velos, recendendo a mar. No instante, é nele que Lauma se resume.

As ondas de calor, luz e radiações percorrem-na na pele eriçada, penetram-na fluídos, dissipam-se por seus pés, afloram-lhe na mente. Repete-se o ciclo sem pressa ou interrupções, nas horas que passa depositada em pequeno tapete grená, as mãos cruzadas sob o diafragma portando a opala opalescente. No centro da cabeça, um topázio, sob a separação da vulva e o ânus, a turmalina negra. Concentra, dirige, absorve e dissipa energias pelo prazer de transformar instinto em luz. Hoje, sabe conviver com esse prazer, conhece os mecanismos dessa preparação, agindo sem esforço, totalmente abstraída de si e do local. Sintoniza-se com segredos e objetos milenares e, sentada de pernas entrelaçadas, dir-se-ia melhormente que flutua.

Tem o domínio do corpo, é esse ambiente. Sua beleza apura-se, perfaz-se atemporalmente, encontra-se no auge de força e poderes, nada afeta sua ligação cósmica. Afaga com ternura seus anjos e demônios. Ronronando, o gato cinza de tons escuros próximos ao azul profundo esparrama-se na cama ao lado, observando-a de olhos semicerrados, pontinha de língua de fora. Vez por outra, move um mínimo o rabo. Lauma descruza eternamente as mãos, estende ao alto os braços de dedos entrelaçados e indicadores retos. A lentitude dá maior beleza ao movimento em direção ao teto e além deste. Os seios realçam-se, bicos duros, o rosto expressa paz e serenidade, a boca abre-se demasiadamente perfeita, lábios aquecidos e confortantes. O gato, inquieto, muda de posição, ronronando alto.

No conjunto de sensualidade, paz, delicadeza e suavidade Lauma condensa-se em sua plenitude, sabe que deve obrigatoriamente desfrutar desse momento incomum e quase impossível de ser conseguido, pois antes não era capaz, depois não mais terá condições. Outro será seu trabalho. Despede-se de vínculos, um vento agita as cortinas, o gato mia e escorrega para o sol lá fora. Retoma-se no momento em que vive. Boceja, sorri, respira com gosto. Junta os badulaques parcimoniosamente, cantando cantigas de encantar. Depõe os círios na lousa de mármore azul da parede norte, ao lado e alto da cama, à cabeceira da qual a espada é ajustada em seus suportes. Envolve-se num roupão cor de pitanga e vai contemplar o bairro desde o balcão. O espelho a espia, agora opaco, pelas costas.

(img: womanstudio81 - trecho de zero hora, um anjo perdido - 1996.)

25 de fev. de 2011

PEIXES FRITOS

Caio Martins
















(img: grilhões. foto: lee garland/bbc brasil)

Os meus amigos sabem:
não zombarei das palavras.
Brincarei, contudo
com seu sentido, porém
exigirei de mim um instante
de disciplina e solidão.

As usarei, impunes
na comoção de moça reticente
justificação de noite mal dormida
prisão de ventre
dizer, do governo,
que é ladrão.

Desprezo montagens raras
purpurinas, holofotes
parafernálias visuais...
Bastam-me um lápis, um papel
a voz que não conseguiram calar
nesta curta eternidade consumada.

Desajeitado escriba menor
deixarei as palavras me aliciarem,
eternas visitas inconformistas
feias cicatrizes em feridas
limpando a bunda com mentalidades torpes
demasiado preocupadas com críticos de arte.

Nem brincar com palavras
nem versos como armas, nem
grilhões dourados de escolas, estilos, imposições:
chegará o dia de estarmos todos mortos.

Destilarei meus humores
meus amores
meine Weltanschauung estropiada
mi tesón por la vida como vierem
escrevendo, escrevendo, escrevendo
e me bastará que em meus versos
meus amores se riam, festeiros
meus amigos me abracem,
meus inimigos me desconheçam.

Os restos são o sentir latente
lancinantes gestos, viveres, fatos
consumidos sem tratos
longe de tantos sóis, patéticos
aplausos de deuses, demônios formatados
como peixes fritos
num prato.

Pensão da Zulmira - 26/06/1987.

17 de fev. de 2011

PAPEL NO BAR


Caio Martins.


Amigo fiadaputa... tomava cachaça, nada além de cachaça e chope, dizendo que uísque e quejandos eram coisas de boiola - sem fazer concessões para qualquer química colorida ou perfumada. E triturava, feito um degenerado, pratadas soberanas de torresmo na falta de iscas de peixe, amante obcecado de feijoadas, picanhas, costelas, pernas de cordeiro... Magro feito um cabo USB apesar de tudo, calado e quieto e olhos vigilantes, parecendo estar sempre pronto para saltar e sair na porrada. Não sentava de costas para as portas ou janelas, escolhia sempre os cantos, de onde observava, com olhar cínico e perfunctório, a mulherada. E as havia, aos montes, solitárias e ansiosas e despudoradas.

- E aquela loiraça? Vai dizer que não é um avião? Já-já ‘tô nessa, mano...
- Uh! Sei não! 'Cê ‘tá muito antigo, m’ermão. Agora é informática... Avião já era... Fosse, essa seria teco-teco... Perna curta, bunda baixa, teta de silicone, tingida e mais rolada que pedra de rio... Sucata!
- Caaraalho! Já se olhou no espelho, meu? Passou do prazo de validade faz tempo, nem falar da garantia e esnoba um mulherão desses? ‘Tá precisando de camisa de força, meu!
- ‘Tá afim de faturar uma grinfa, ou tá dando mole p’ra cima de mim? Quero não! Bagulho por bagulho fico comigo mesmo! Vai lá, que o açougue tá aberto, meu! Vai, borracheiro!

Chamou o garçom e pediu mais uma e mais um. Saiu para fumar na esquina. Nestes tempos de “politicamente correto”, era um belzebu anacrônico - a moda era “bala”, cristal, cocaína. Voltou, o amigo papeava com a loiraça, ambos cheios de risos e salamaleques de moda nas baladas. Era dos tempos das noitadas e boemia. Tomou a cachaça de a golinhos, triturou um torresmo, arrematou com o chope. Daí o novo casal da balada veio; levantou-se frio feito rabo de foca. Apresentados, olhou a moça da cabeça aos pés, rodeou, pediu licença e passou-lhe a mão na bunda. Ela deu um pulinho e disparou num riso incontrolável. - Cara mais louco! - repetia.

- ‘Tá certo... Tá certo... Inda ‘tá de jeito, dá pro gasto. Vão com deus, crianças - e voltou a sentar-se, aparentemente alheio a tudo e todos. O outro - indignado - catou a boneca, de arranque, e saíram sem despedirem-se. Ficou no canto, isolado e invisível, os olhos incisivos não perdoando nada nem tudo, manguaçando ritualmente. Levantou o dedo, o garçom veio pachola. Pediu papel e uma caneta. Impudica e misteriosa, ousada e atrevida, mas solene e serena feito uma gota de orvalho num parabrisas (tinham-se extinguido, há tempos, as flores), a lágrima levou uma eternidade até explodir no tampo sintético da mesa. Não é fácil escrever à mulher amada, ausente pelos milênios etc.. - Puta ironia! - se dissera ao despedi-la.

Escreveu um poema devagar e com letra excepcionalmente caprichada como não se usa mais, depois leu várias vezes. O garçom trouxe outra leva de mineirinha esperta, dispensou o chope e o torresmo. Deixando o papel sobre a mesa saiu para outro cigarro politicamente incorreto, chovia parcamente. Pertinho, a praça. Na praça, o banco... Alí o encontraram - a falsa loira siliconada de bunda baixa e o amigo - quase no raiar do dia, teso e lagrimado da chovisna, um rito feliz no rosto paraláxico e mortinho da silva.

Morrera de amor e de saudades.

(img: amigos - tela de joão werner)







10 de fev. de 2011

RÉQUIEM GRANÍTICO


Caio Martins














(img: cvm - jaquie-tela/2001)

Menina vadia
brincando de pedra
cadê tua impudícia
teu jeito de cio?

A pedra é inútil
a pedra é amorfa
a pedra é tão fria
a pedra é estática
a pedra errática
tem oclusões vaginais
tem pedrinha hepática
por beber sonhos demais.

Quer ser celebridade
quer invadir a cidade
nua nos jornais...

A pedra quer ser escultura
a pedra quer ser pintura
a pedra quer ser partitura
quer ser imagem de santa
beijada no pé, num altar
quer ser a heroína
da hecatombe universal.

No meio da vida
nua se viu
no meio do peito
da cama do poeta...

... e armou o capeta.

Vai ver que de tanto
brincar que era pedra
no enleio do ato
chutou o amor
que virou, de repente,
pedrinha miúda
num pé de sapato...

(Vila Mirim, 01/12/1966 - Pensão da Zulmira, 14/06/1987.)


7 de fev. de 2011

OPOSTOS

Caio Martins












(img: carnavalveneza/wikki)

Desde o início foste reticente,
não se perguntou se eu te queria.
Tomaste conta de mim
sem importar-te com meu pranto
e espanto de bofetada.

Houve momentos nos quais
não me dei conta de teu domínio.
Na memória nada resta, o resto
sempre foi teu pé na garganta,
a espada no peito, retilíneo
jogo unilateral.

Inerme
mal aprendi a defender-me
fraco
tentei mostrar-me astuto
insensato
me reconheci no teu oposto.

Julguei, nalguns momentos
tomar-te toda, sugar
os cálices de teu corpo
embebedar-me de teus licores
tomar-te sacrílego, fremente
até ter-te tonta e louca
incapaz de seres sensata.

Desafiei-te:
que esmagasses!
Brigaria e criaria tudo de novo
sem o pânico da alcatéia.

Perdi os momentos, movimentos
do solo desvairado, sem estréias.

E não houve também mulher alguma
capaz de suicidar-me
tirar-me tudo, o nada
que sempre tive... Que pena!

Mas tu, Vida
escorres a cada segundo
dentre meus dedos, te insinuas
e negaceias, me invades
e me deixas só.

A cada segundo, o irritante
é pressentir-te o sorriso no rosto.

No rosto
do teu oposto.

(Hotel Bradesco – Ribeirão Preto.
10/09/1986.)

27 de jan. de 2011

ESPELHO

Caio Martins.















(img: womenstudio-112 - christian coigny)



Não! Não me ames, jamais! Te amas
em mim nua em semiluz, destelhos
de teu olhar, em teu corpo flamas
como fora eu só teu espelho.

Exerces sem pudor os teus enfeites
de vestal e vês, no vidro, teus silêncios
marcados por teus dentes em meu peito.

Não, não amas senão a irreverência
das doidices que invento tão a esmo
somente para refletir teus risos.

Mas se vens tão intangente, alheia
de teus brinquedos, jogos e artifícios
cedo, em abandono, aos teus caprichos
precários de mulher, ninfa, sereia...



15 de jan. de 2011

DRÍADE

Caio Martins

Não viria? Não? Despedaçou o celular na parede. Chutou a porta, derrubou cadeiras, o gato Loki, assustado, escafedeu feito um capeta. Da estante, aquela fotografia em moldura acrílica - tão adorada - a espiá-lo impunemente voou com soberana bolacha, o sangue do talho na mão abriu caminho purpurando e puxou o freio: a hematofobia vinha das reminiscências de guerras, arquetípicas, eras de espadas e setas, lanças e óleo fervente e que tais. A bruxa Baba-Yaga diria que fora guerreiro feroz - dileto filho de Thor e neto de Odin - caído em desgraça pela paixão por mulher insólita por ele requestada ainda menina, cujos olhos azuis e riso de prazeres, formas e gestos inimagináveis sob a revoada da cabeleira clara aturdiam e ensandeciam os homens. Zonzo, tentou limpar o corte e o envolveu com um pano de prato. Não podia desmaiar. Maldita! Bendita! Filha da puta! Amor da sua vida... anjo... vadia... Foi ao vizinho, pálido e cambaleante, pedir-lhe que o levasse ao pronto-socorro.

Depois, mão costurada e atada, ignorou a baderna. Pegou a foto - incólume na moldura a prova de tapas - e ficou olhando, olhando e olhando, anestesiado. Não havia dor, nem houvera lesão séria. Na próxima usaria um martelo. Sorriu, por fim. Como não desejar instintivamente a beleza marcada por delicadeza e suavidade, não amar o riso leve, as idéias loucas, a eterna ciclotimia etérea, aquela timidez subjacente num piscar ousado, cruzar de pernas, entremostrar de seios, oscilar de cintura, semovente e, sem explicações, enviar-lhe da boca linda tolo beijo ao partir, sabendo que a queria toda, inteira, pelos séculos? Não amá-la quando, após o sexo eterno e aos pouquinhos, lhe sorria, e adormecia? Tantas outras magias e mistérios, ardis e estratagemas? Os deuses não lhe eram favoráveis, certamente. Maldita estrige, que o instigara com carochinhas para boi dormir... Porém, a lenda implícita o fascinara. Escreveria, fosse dado a tal, conto ou poema, crônica sem adjetivos e advérbios, meramente fática, relato frio de antropólogo.

Diria que, em meio de furioso combate, gritos de morte e de guerra vira, sob uma carreta tombada, aqueles olhos azuis em carinha suja e parara, petrificado. A voz aguda lhe gritara cuidado e o aço adversário o atingira pelas costas transverso, invés de reto. Caíra, espada revirando no ar para longe. O lanfranhudo, horripilante e banhado em sangue alheio, fedendo suor antigo e novo, vísceras e bosta de gado, dera uns passos ao redor para contemplar a caça: gostava de cortar cabeças. Rabo de olho vira a menina sair da encoberta, pegar a pesada espada que lhe escapulira e, silenciosa feito serpente mas rápida feito raio, vir e metê-la, um terço, na coxa do carrasco. Saltara, atracara-se com o molosso, o lançara ao chão e, empunhando a arma alheia, o degolara de um só golpe. A batalha decidira-se em volta, Jormungand morta. Pegara a menina ao colo, ao vir, o dono das tropas, cobrá-la. - “Thrud é minha!” - dissera. A soldadesca enristara lanças, aquilo era afronta punível com a vida.

“- Lutaste bem, mataste muitos e me serviste com honra! É tua!” - A levara às montanhas, seu ermo. Cuidara-lhe as feridas, deixara a cabana limpa, até botara cortinas floridas nas janelas. Entendia da cozinha, dos bichos e das roupas lavadas. Sempre muda e calada, cabisbaixa, interrogada por que não falava ou encarava, dissera-lhe que era uma escrava e elas não deveriam incomodar seu amo. Fora quando depositara-se, definitivamente, naqueles olhos azuis, perdera-se naquele sorriso lindo... E dissera que não era escrava mas, seria sua mulher, quando crescesse. Ela queria voltar à própria aldeia, sua casa. Quisera ver, foram e voltaram; não havia mais uma nem outra. Não chorara. Meio da noite seguinte, viera até seu canto e perguntara: “- Se eu não quiser ser sua mulher, me mata?” Respondera que a trocaria por um cavalo, virara para o lado e dormira. Nunca mais a vira. Deixara florezinhas amarelas no mesão da cozinha... Ainda escreveria a história, quem sabe... um dia... ‘taquepariu...

Adormeceu pesadamente, chapado com os medicamentos. Anestesia e antibióticos, antitetânica e sabe-se lá que poções sintéticas diabólicas... não se fazia mais guerreiros como antigamente. Acordou com o gato se enroscando no travesseiro e ronronando alto, contente. Janelas abertas, casa arrumada, cheiro bom de comida. Na mesa da cozinha bocas-de-leão e, do chuveiro, o vulto no vidro embaçado e o canto enigmático da mulher imprevisível. Era feliz e nem sabia.


(img-art: cvm - crisricci - tela)
(adaptado de Zero Hora: um anjo perdido)



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