27 de set. de 2010

TRAVESSURA

Caio Martins
Para Cristina Lima











(img: PB & cores - Isabel Filipe)


Te amei... Como te amei...

Quando te conheci, teu cio
temia as profecias de um amante.
Meu vazio nada temia,
não tinha mais acertos.

A ti, te inventou deus ciumento
zeloso de sua cria.
A mim abortou-me apressada
deusa renegada
bêbada de ironia.

Te vestias de negro, eu
o branco
sujo de tantas cores.
Eras arredia, olhavas
desconfiada um homem sem alvuras.

Te levei a ver a lua...

Na ida ao teu corpo
perdi-me, porém cada poro teu
eu reconheço.
Sabes, hoje,
da minha geografia.

Como te amei... e foi tão pouco!

E no crivo do olhar,
frágeis espelhos findos,
duas crianças se contemplam nuas
assustadas,
rindo.

Pensão da Zulmira
23/06/1987

17 de set. de 2010

OFÍCIOS

Caio Martins








(img: charles chaplin - arquivos)

A Peña Folclórica Los Hermanos
era providencial:
ficava na frente
dum hospital.

Perto ficavam bombeiros
um pouco além,
a Polícia Militar.

Falhando tudo isso
tinha lá uma capela
onde se podia rezar.

Como noite após noite
pela grade da capelinha
(sob os risos dos bombeiros
e às vistas da polícia)
o bêbado roubava as esmolas
com esmero artesanal.

Assobiei
acenei-lhe como sempre
da janela de minha nave
ancorada no bar.

Parou
bamboleou ectoplasmático
riu torto e como sempre
retumbou:

- Vai pra puta que te pariu, me’rmão!...


... e seguiu, solene, em seu ofício
enquanto a noite principiava
devagarinho a chorar...

(s.b. do campo - 07/03/1986/03:00h.)

9 de set. de 2010

AMOR SEM-VERGONHA


Caio Martins


Varou a noite na diagramação. Seis da manhã, a passos rápidos e sem olhar sequer as graças das meninas do ponto de ônibus, meteu-se na padaria, engoliu às pressas um copo de café e dois pães de queijo, comprou cigarros e voltou na mesma toada. Fechou o arquivo como .ps, fez a última revisão técnica e mandou por ftp. Dez minutos, e o chefe ligou dizendo que estava limpo. Respirou aliviado. Abriu o correio, leu as mensagens e resolveu responder pela tarde. Despiu-se e desabou na cama.

E a mulher novamente visitou-lhe o sono, com seus olhares azuis, seu sorriso de beijos. Desta vez, em sombria viagem por estranha cidade, pedras de calçamento polidas e edifícios antigos, estátuas, quadros, vitrais. Ela eram elas, num forte cheiro de incenso e mar. E veio a descida aos trancos para o inferno. Sumia, sumia... Dante escrevera, por sua amada, talvez um dos mais belos poemas. Ele? Acordara no grito suando, já buscando de onde viria a porrada, depois respirara aliviado. Ao lado, o apito histérico.

Era o chefe, ao celular. Mandariam novo trabalho como sempre para ontem. Almoçou no boteco a dois quarteirões, voltou e o telefone, a partir de então, não mais parou. O jornalista nervoso por ter esquecido metade das legendas, o fotógrafo pedindo pelo amor de deus que tratasse as fotos de definição deplorável, o chefe perguntando se já estava pronto. Armou-se da costumeira paciência, ligou o pc, descarregou os arquivos e... adeus, tela. Fora-se, para merecido descanso, o tubo do monitor.

O leve cheiro de queimado foi o atestado de óbito. Dois minutos e destripou o velho amigo. Suicidara-se, talvez cansado de tantos maus tratos. Veio o pânico. A cpu, felizmente, segurara-se no no-break. Fim de mês, já no vermelho e crédito estourado, todos os amigos micreiros desaparecidos por esticarem o feriadão, precisava levantar dinheiro, comprar outro monitor. O sonho, pareceu-lhe, fora uma advertência. Mas, não cairia em nenhum abismo. Revirou a casa, encontrou as alianças.

No dia de apocalipse, em meio a uma discussão idiota, a mulher jogara a aliança na escrivaninha, depois do bate-boca se fora, levando seus badulaques, roupas e o gato. Coração pequeno, apertado, queimou pneus até o banco. Penhorou... Miseravelmente pela metade do preço do ouro no mercado. A moça da caixa disse-lhe que poderia resgatar em noventa dias. Meteu-se num supermercado, comprou um lcd de ocasião, olho no relógio e, de novo, disparou pelo trânsito.

Instalou, já horas atrasado, calibrou as cores a olho, e foi liquidando página a página do jornaleco nanico freneticamente. O telefone ali, insistindo: vinha bronca e palavrão, ia bronca e palavrão. Perto das oito da noite, sua deadline, novamente acionou o ftp. Nem respondeu ao "ok!" festeiro do chefe. Ficou ali parado, olhando a tela em branco. Sem pensar ligou para a paixão antiga irremediável e insolúvel - que jurara, mil vezes, nunca mais procurar - contou-lhe o sonho, a correria e disse-lhe que penhorara as alianças da "ex". O silêncio o fez voltar ao planeta; lamentar-se não adiantaria, a besteira já estava feita.

- Ainda está aí?
- Posso ser franca?
- Deve! Já me arrependi de ter ligado... 'Tá azeda comigo?
- Não é isso... Não seria menos complicado ir ao jornal e resolver tudo lá? Até mesmo pegar um monitor emprestado? Por que você sempre complica tudo? Mané... Cabeção!
- ‘Tá rindo por causa das alianças, é? Gostou?
- Ah! Meu deus... Nada a ver, desencana! ‘Tô rindo porque você é burro! E sem-vergonha...
- Você vem? Ou quer que eu vá?


Silêncio. Desses de pegar na mão. Finalmente, ela diz-lhe o nome duas vezes, num suspirão. Responde um “eu”, tenso. Pausa, pergunta-lhe novamente quem iria. A moça ri e murmura, como que lamentando-se, charmes:

- Eu... sou burra e sem-vergonha...

(img: cvm - leca002b/2008 - grato pela imagem de ilustração).

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