27 de dez. de 2010

NOVO LIVRO DE MÁRCIA SANCHEZ LUZ

Quero-te ao som do silêncio!

Editora Protexto lança Quero-te ao som do silêncio!, livro de sonetos de Márcia Sanchez Luz, prefaciado pelo jornalista Caio Martins e quarta capa com comentários de Leila Míccolis, Rogel Samuel, Graça Graúna, Marco Bastos, Jorge Sader Filho e Airo Zamoner.


"Márcia trata a forma poética como artesã, dominando materiais e ferramentas nos limites das potencialidades. Entalha e esculpe, pinta e tece sem esforços, lapida e compõe em ritmo impecável, como que em métrica de cadência sinfônica.

Há que ter, todavia, inteligência e sensibilidade para deles auferir dimensões humanas tênues e vitais, pois Márcia torna-se, pela límpida criatividade e autonomia, numa referência para quem vive significados intensamente.

E nos chega suavemente e sem alaridos, transcendendo a mera alegoria e revelando, aliciente e plena, até do mais corriqueiro, a Poesia. "Quero-te ao som do silêncio!" é um convite a partilhar desse encantamento." (Caio Martins).

Capa: imagem do quadro "Despida de Gravidade", do artista plástico Gustavo Saba, gentilmente cedida pelo autor.

Para adquirir o livro, basta clicar na capa ou no site da Editora.


"Bandolins" - Oswaldo Montenegro.




21 de dez. de 2010

NATAL 1987

Caio Martins

À Cristina Lima.












(img: j.foster - divulgação - 2001)

Volto meteórico
da Buenos Aires cafetina
por átimos de tua presença
e não encontro ninguém.
Nada... menina...

Quando, profano e safado
atingido no plexo
recolhi estropiadas asas
em bar inóspito no coração de São Paulo
dormias impune com teu ardor
e Mistérios de teu sexo...

Lá fora havia
hiatos rangentes
de estuporado espasmo,
triste festa tardia.

Ah!, se no teu sono eu,
atrevido, galante,
ectoplasmático
anjo safado, atônito
me materializasse em tua cama...

Acariciaria desvelado
cada de teus poros
e no lamento de teus orgasmos
o natal do dia escancarado
me despedaçaria com sua luz,
anjo profano vitimado
na aura doída de São Paulo.

Natal?
Não, hoje não é mais nada
nenhum dia...

(Casa Rosada - 25/12/1987 - Pensão da Zulmira.)


10 de dez. de 2010

CANÇÃO PARA DENISE

Caio Martins
Em homenagem a Márcia Sanchez Luz.









(img: cvm - lenda - "mulher, imagens e poemas" nov99)

Pintura torpe
no descompasso
do tempo trágico
que não te faz eterna
mas fugaz,
que não te perpetua
mas corrói,
que não te dá
senão curto esplendor
que me deleite...

Mulher, mulher
que fizeste a algum deus
esfarrapado e troncho
que te corrompe
enquanto és linda
e te abandona
quando és lenda...

(publicado em 27/03/09)



"Teresinha" - de Chico Buarque, com Maria Bethânia.

22 de nov. de 2010

DESCOMPASSO

Caio Martins
Para Jeanne











(img: linga-3 - christian coigny)

Por que temer, mulher, que eu me desfaça
nas guerras de teu mundo incoerente
que dilaceram teus véus de inocente
essência elementar, com tua graça?

Quisera fosse o mundo indiferente
a tal ardor sutil mas que ameaça
a ordem do universo enquanto traça
vitrais de cicatrizes indecentes.

Desatas tuas bandeiras e sidérea
orbitas aos desmandos do que eu faço
só por querer-te assim tão louca e séria.

E vai-se enfim a noite em descompasso
de dança calcinada e já cinérea
enquanto dormes, farta, em meu cansaço.

10 de nov. de 2010

LA CANCIÓN

Caio Martins
A Sérgio, Vania y Cristina.












(Img: cvm - antonietta: fantasias de mujer - portada)

Intentabas una canción de amor...

No era para tanto
pero se te aflojó el brazo
quedó chueco el abrazo
y atragantado tu verso.

Las palabras te salieran amargas.

Amor alucinado
con la ansiedad de un perseguido
un niño asustado
un hombre
que no sabe más jugar al héroe.

En el metro cuadrado del palco
del boliche rasca,
cantor,
la luz de foco de lata
te encandila:
suenan tumbadoras pesadas
llamando demónios atorrantes...
Cantás como nunca
candombes, la salsa más hiriente
y... esa canción de amor...

Delante tuyo
mujeres lindas bailan frenéticas
conscientes del espetáculo...
Y el perfume de hembras
brillo de miradas
movimientos de celo
la provocación
el alcool
humareda de puchos y deseos
cadéncia de mis tumbadoras
locuras de guitarras
esa mujer rúbia
y ardiente
con sus promesas de miel
y de serpientes
tanta danza
tanta música
tanto canto
tanto tanto
te hundieran.

Pero, no era para tanto.


A mi, en las tumbadoras, nomás,
cuando detuve la mirada
en inquietante escote y senos

como otros no hay en la Tierra
solo se me fué un compás...

Cantabas una canción de amor
mientras alli se bailaba a la guerra...

(Los Hermanos. 13/10/86 – 07/05/2007)


24 de out. de 2010

A AMANTE DO ANARQUISTA

Caio Martins
Para Jeanne

Apaixonara-se, tardiamente e inutilmente, por aquela mulher feita de mistérios e encantamentos. Lera todas as cartas cuidadosamente escritas em papel-linho e letra clássica perfeita, de tom azul-escuro e impecável na composição, sem assinatura. Intelectual, culta e judiciosa, nem por isso deixava ao acaso encantamentos e magias femininas, certo charme sóbrio e instigante. Restava ainda raro fragmento de alguma essência tão sutil que tornara-se, com o tempo, quase imperceptível. Dizia, num trecho da última:

“... e tens, quiçá, certeza deste teu querer que me dizes assim tão forte, se sabes que é impossível e que somente a loucura ou a tragédia honrariam? Ousas tanto por tão pouco, meu querido amigo... Nada sou senão folha que águas definitivas levam, no rio da vida e tu, pássaro de voo alto, aos ventos, no tumulto das tempestades. Chegasses tempos idos e saber-se-ia quê seria, se deuses ou demônios outro destino se nos oferecessem? Não há que nisso pensar... Ater-se a sonhos e utopias, hoje, seria por demais penoso e indesejável por inatingível. Tens tua vida e teus caminhos, eu os meus. E “Se vires que pode merecer-te/ Alguma coisa a dor que me ficou/ Da mágoa, sem remédio, de perder-te”, lembra-te que não saberei jamais de tuas carícias, nem tu de meu dispor. Não te sendo possível ser apenas e tão somente meu amigo querido, tiras-me a decisão do prazer de ter-te confidente, e me obrigas a não mais escrever-te. Eis que me impede, a honra, de transgredir compromissos assentes e invulneráveis... A menos, como eu disse, quiséssemos a tragédia, filha dileta da loucura...”

Um convite, talvez? Casada! Era casada... Por isso não assinava. Faltavam-lhe as cartas do outro jamais encontradas, mas intuía o conteúdo, quisera saber-lhe da forma e se também tão refinada. Certamente, uma dama. Como seria, como se vestiria, como andaria, comeria, choraria, cheiraria, riria, amaria? Seria desbragada e louca, ou pudicamente quieta como que contendo um vulcão? Num trecho de outra incidia, após discutir causticamente Bakunin e o Tomismo declinante:


“... Não me digas tais tolices, a elas sou alheia... Como ousas pensar em minha pele, meu calor, que se amenos são por femininos e portanto idênticos a todas as mulheres, apenas a ti te chegam por sermos naturalmente tão desiguais, porém intelectualmente tão semelhantes? Aqui, querido amigo, residem os laços: te amas em mim, porque te reconheces. Não são bem aceitas as que, como eu, invadem teus domínios e se apossam do privilégio de teus conhecimentos. O que nesse campo houver e vier a existir, é de meu interesse e gosto, me fascina, mesmo que me censurem os homens por intrometida e as mulheres por atrevida; tal peso não me arca, mas não serei por nenhum, jamais, considerada promíscua pois que motivos não os darei... Não me digas o que dizes, entre mesuras e mesinhas, às que te facilitam a saciedade de teus impulsos. Fala-me sem jaças de teus pensamentos, digas como vês o universo e o mundo, luta comigo por tuas idéias, ideais e conceitos sem tremores, e homenageia-me com a delicadeza de jamais esqueceres que sou como tu, porém diferente, por mulher. Tens meu carinho e afeto.”

Durona! Casada com marido toupeira... Sem dúvidas, um mercador, militar, navegador, membro da corte, beócio prepotente que, contando moedas, acharia estar cumprindo sua função social... Por certo, para transbordar luxúrias, meter-se-ia em bordéis para perfazer, com prostitutas, as esbórnias que conceitos arcaicos o impediriam com a esposa. A esta caberia certamente a administração doméstica, a criança dos filhos e a apresentação em cerimoniais nos quais posaria, patética, de mulher de fulano de tal, e transar por um buraco na camisola... Mal amada? Provavelmente. Porém, lia. Sabia das visões de mundo, ávida por debatê-las sem arroubos e valentias por amante das refregas, nas quais o argumento valeria mais que exóticos bigodes, vozeirões e medalhas no peito. Por isso, o fascínio pelo outro, parco em posses e definitivamente pródigo em prosopopéias...

Catou, desconsolado, a pasta com as velhas cartas recém descobertas num relicário de antiga escrivaninha, desligou o computador e meteu-se na garoa fria, ruas molhadas e multidão bovina, inconformado por não viver há mais de século atrás e conhecer a mulher sem nome que, por certo, o amaria. Como ao silente bisavô boêmio, músico, poeta e anarquista.

(img: o nascimento de vênus - alexandre cabanel) (v.califórnia, 22/10/10)

20 de out. de 2010

PRAÇA DA SÉ

Caio Martins









(img:cvm - torres sé - 2007)

Escadas rastejantes jogando
pasadas de bípedes cansados
zumbindo passivamente
saio do buraco
do metrô na Sé.

Cara a cara
com a negra torre do relógio
martelando vagarento sete horas
nos seus mecanismos atrozes
de solução final.

A Praça da Sé se move.

A catedral arrota
medieval solilóquio
de seu bojo estufado.

A catedral estatela-se
de costas, com graça
de gorda matrona gótica
de torres como ameaçadoras tetas
espetando a escuridão pastosa,
escadas de cabeleira
cheia de insetos transitando
em suas bocas.

A catedral boca.

Rara soma arderá
em seus altares solífugos,
enquanto Cristo passeia, cósmico
por outros mananciais.

A Praça da Sé se move.

O camelô vende milagres
um pivete vende santinhos
a zabumba bumba
funcão agastado
a xoróca zabaneira
e vunge
vunza no bolso do otário
que vasconceia, lúbrico
lambidas em seu pescoço.

Na distância de um pulo
a menina canta hinos
às bestas do apocalipse
o fim dos tempos
a palavra final...
Sedutora
vozinha
afinadinha
fatal...

A sanfona agita a bunda
tremelica os peitos
de cafona moça seminua
abrindo coxas e braços
e a dentadura alva
enrubescendo a calva
do marco-zero da cidade.

Não quer ser salva...

A menina hina hinos
olhando faceira o menino
que vende santinhos roubados
da mesa dos cardeais.
A polícia policia
suspirando aliviada
após a tensão formidável
de concentração sindical.

Na catedral o cardeal
absolve e o gado
se retira do quintal.
Em roda
ladrões, pivetes, saltimbancos
travecos, profetas, mascates
traficantes, bicheiros, ladrões,
vigaristas, craqueiros, putas
rondam a multidão passiva
entrassaindo do metrô
e a zabumba bumba um funcão
a catedral sina seu sino
os pregadores ameaçam o universo
e as bestas do apocalipse saem
dançando funque-forró.

A Praça da Sé comove
como a carcaça de um cão
atropelado e marginal
esfarrapado, e só.

(Pensão da Zulmira - 13/07/1987.)

27 de set. de 2010

TRAVESSURA

Caio Martins
Para Cristina Lima











(img: PB & cores - Isabel Filipe)


Te amei... Como te amei...

Quando te conheci, teu cio
temia as profecias de um amante.
Meu vazio nada temia,
não tinha mais acertos.

A ti, te inventou deus ciumento
zeloso de sua cria.
A mim abortou-me apressada
deusa renegada
bêbada de ironia.

Te vestias de negro, eu
o branco
sujo de tantas cores.
Eras arredia, olhavas
desconfiada um homem sem alvuras.

Te levei a ver a lua...

Na ida ao teu corpo
perdi-me, porém cada poro teu
eu reconheço.
Sabes, hoje,
da minha geografia.

Como te amei... e foi tão pouco!

E no crivo do olhar,
frágeis espelhos findos,
duas crianças se contemplam nuas
assustadas,
rindo.

Pensão da Zulmira
23/06/1987

17 de set. de 2010

OFÍCIOS

Caio Martins








(img: charles chaplin - arquivos)

A Peña Folclórica Los Hermanos
era providencial:
ficava na frente
dum hospital.

Perto ficavam bombeiros
um pouco além,
a Polícia Militar.

Falhando tudo isso
tinha lá uma capela
onde se podia rezar.

Como noite após noite
pela grade da capelinha
(sob os risos dos bombeiros
e às vistas da polícia)
o bêbado roubava as esmolas
com esmero artesanal.

Assobiei
acenei-lhe como sempre
da janela de minha nave
ancorada no bar.

Parou
bamboleou ectoplasmático
riu torto e como sempre
retumbou:

- Vai pra puta que te pariu, me’rmão!...


... e seguiu, solene, em seu ofício
enquanto a noite principiava
devagarinho a chorar...

(s.b. do campo - 07/03/1986/03:00h.)

9 de set. de 2010

AMOR SEM-VERGONHA


Caio Martins


Varou a noite na diagramação. Seis da manhã, a passos rápidos e sem olhar sequer as graças das meninas do ponto de ônibus, meteu-se na padaria, engoliu às pressas um copo de café e dois pães de queijo, comprou cigarros e voltou na mesma toada. Fechou o arquivo como .ps, fez a última revisão técnica e mandou por ftp. Dez minutos, e o chefe ligou dizendo que estava limpo. Respirou aliviado. Abriu o correio, leu as mensagens e resolveu responder pela tarde. Despiu-se e desabou na cama.

E a mulher novamente visitou-lhe o sono, com seus olhares azuis, seu sorriso de beijos. Desta vez, em sombria viagem por estranha cidade, pedras de calçamento polidas e edifícios antigos, estátuas, quadros, vitrais. Ela eram elas, num forte cheiro de incenso e mar. E veio a descida aos trancos para o inferno. Sumia, sumia... Dante escrevera, por sua amada, talvez um dos mais belos poemas. Ele? Acordara no grito suando, já buscando de onde viria a porrada, depois respirara aliviado. Ao lado, o apito histérico.

Era o chefe, ao celular. Mandariam novo trabalho como sempre para ontem. Almoçou no boteco a dois quarteirões, voltou e o telefone, a partir de então, não mais parou. O jornalista nervoso por ter esquecido metade das legendas, o fotógrafo pedindo pelo amor de deus que tratasse as fotos de definição deplorável, o chefe perguntando se já estava pronto. Armou-se da costumeira paciência, ligou o pc, descarregou os arquivos e... adeus, tela. Fora-se, para merecido descanso, o tubo do monitor.

O leve cheiro de queimado foi o atestado de óbito. Dois minutos e destripou o velho amigo. Suicidara-se, talvez cansado de tantos maus tratos. Veio o pânico. A cpu, felizmente, segurara-se no no-break. Fim de mês, já no vermelho e crédito estourado, todos os amigos micreiros desaparecidos por esticarem o feriadão, precisava levantar dinheiro, comprar outro monitor. O sonho, pareceu-lhe, fora uma advertência. Mas, não cairia em nenhum abismo. Revirou a casa, encontrou as alianças.

No dia de apocalipse, em meio a uma discussão idiota, a mulher jogara a aliança na escrivaninha, depois do bate-boca se fora, levando seus badulaques, roupas e o gato. Coração pequeno, apertado, queimou pneus até o banco. Penhorou... Miseravelmente pela metade do preço do ouro no mercado. A moça da caixa disse-lhe que poderia resgatar em noventa dias. Meteu-se num supermercado, comprou um lcd de ocasião, olho no relógio e, de novo, disparou pelo trânsito.

Instalou, já horas atrasado, calibrou as cores a olho, e foi liquidando página a página do jornaleco nanico freneticamente. O telefone ali, insistindo: vinha bronca e palavrão, ia bronca e palavrão. Perto das oito da noite, sua deadline, novamente acionou o ftp. Nem respondeu ao "ok!" festeiro do chefe. Ficou ali parado, olhando a tela em branco. Sem pensar ligou para a paixão antiga irremediável e insolúvel - que jurara, mil vezes, nunca mais procurar - contou-lhe o sonho, a correria e disse-lhe que penhorara as alianças da "ex". O silêncio o fez voltar ao planeta; lamentar-se não adiantaria, a besteira já estava feita.

- Ainda está aí?
- Posso ser franca?
- Deve! Já me arrependi de ter ligado... 'Tá azeda comigo?
- Não é isso... Não seria menos complicado ir ao jornal e resolver tudo lá? Até mesmo pegar um monitor emprestado? Por que você sempre complica tudo? Mané... Cabeção!
- ‘Tá rindo por causa das alianças, é? Gostou?
- Ah! Meu deus... Nada a ver, desencana! ‘Tô rindo porque você é burro! E sem-vergonha...
- Você vem? Ou quer que eu vá?


Silêncio. Desses de pegar na mão. Finalmente, ela diz-lhe o nome duas vezes, num suspirão. Responde um “eu”, tenso. Pausa, pergunta-lhe novamente quem iria. A moça ri e murmura, como que lamentando-se, charmes:

- Eu... sou burra e sem-vergonha...

(img: cvm - leca002b/2008 - grato pela imagem de ilustração).

26 de ago. de 2010

COISAS TUAS

Caio Martins











(img: dance3 - isabel fillipe)

Teus passos leves
tuas palavras mansas
tua presença...

Teu sorriso calado
teus gestos inconsúteis
teu pejo...

Teus momentos breves
tua entrega esconsa
tua fragrância...

Teu ser entranhado
teus nãos inúteis
teu beijo...

É quando, febril,
te suplico angustiado:
Vem, amor! Dançamos uma valsa?

Tua ausência...





(Valsinha - Chico Buarque e Vinícius de Moraes)

17 de ago. de 2010

O PICADEIRO MÁGICO

Caio Martins.

Ao Carlos Drummond










(img: cdandrade - edit.bestbolso)

O circo cinza
estremece
cinzas espalha e pó
e nós tocamos um clarinete afônico
menor.

Caem
as cortinas de teu palco
onde foste, impretérito,
palhaço, público, equilibrista
ator.

Lá na porta estrafalária
do céu da poesia
o Vinícius, o Andrade, o Bandeira,
tantos outros,
a te receber.

É então
que choras enfim liberto,
poeta, quando
vestida de canto azul
Elis vem te encantar.

Nós ficamos
olhando teus óculos
o mundo nos teus óculos
num peso, numa
pena danada.

(BsAs –06/07/1988)

1 de ago. de 2010

A CASA DA ESQUINA




(Elis - Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim - 1968.)

Caio Martins
(Terceiro Exílio)














(img: cvm - den230/2001)

A casa fincada na esquina
era sempre uma escolha,
uma decisão, ninguém
ficaria além do necessário .

Já da rua anterior à casa
vieram amigos, conhecidos
poetas, os artistas todos
boêmios, bêbados, mulheres
da vida, baratas e de luxo,
os suicidas
um amontoado de crianças tristes
avisar do som de passos
que a vida seria punida.

Já antes, na casa, a mulher
beijara meu rosto, a face
parcamente em lágrimas
enquanto um homem sério perguntava
o endereço de lugar nenhum
mudo
farto de despedidas.

Já antes dos sons de passos
silenciosos pela rua escura
trouxera das mãos só frases tronchas
e da boca nenhum verso esfarrapado.

Em cabeças ocas as palavras
ressoam imponentes e fáceis
acelerando o sangue nas veias
pedindo, as pessoas tontas
perdão por crimes impossíveis
tempo nenhum praticados:

- Mea culpa! Mea culpa! Mea maxima culpa...

Vieram os passos silentes
e a casa da esquina ruiu
pedaço a pedaço, devagar
e gritos de revolta
não feriram meus ouvidos.

O mundo já estava torto.

Elevaram-se cantos lamentosos
a mulher viu-se inocente e destruiu
a casa das decisões mais graves
e o epitáfio do amor mais lindo
com simples palavras claras
rasgando paredes sujas:

- Perdão! Eu te amo!

Ficou na sombra a frase amarga
nas mãos o verso inóspito
na garganta teu nome embriagado:

- LAURA!... Laura...

O mundo já estava morto.


(CASCS-17/04/1968 - SP-29/07/2010.)

1 de jul. de 2010

INTERMEZZO

Caros leitores,


encerramos nosso trabalho deste primeiro semestre agradecendo a todos que nos acompanharam na rota imprevisível da Internet, neste ano e meio.

Voltaremos a primeiro de agosto e pedimos que, nesse intermezzo, percorram o blog desde o início, em fevereiro de 2009. Basta clicar nos meses, na coluna à direita e, neles, encontrarão publicações que normalmente terminam esquecidas.

Até lá, desejamos a todos muitos sucessos profissionais e pessoais, prosperidade e caminhos abertos, paz e harmonia. Forte abraço, muito obrigado e muito carinho.



(De Vinícius e Tom Jobim. Gal e Tom no "Concert for Planet Earth", Rio, 7/o6/92)
(img: cvm - poeta e musa - jul2010.)

29 de jun. de 2010

ROMANCE EM CIO MENOR


Caio Martins
Para Lua Celta de Assis.











(img: boris vallejo - erotic fantasy)

Dez horas da noite. Tristes
apitam fábricas em si menor...
Nos enroscamos aflitos
num banco de jardim.

Nosso amar é complicado.

Exigimos estrelas, luas, brisas
mas entre gases, pó, venenos
dá-se alucinado beijar.

Somos intensos, quase rudes
teu seio cabe em minha mão
tuas mãos, qualquer lugar.

Nada sabe esse beijar
deslizar impudico de mãos
da cidade que se infiltra.

Na penumbra do subúrbio
(céu escuro na face desta terra destroçada)
a sinfonia de sons confusos
dá ao nosso enredo
o fundo musical.

Preferiríamos Chopin, Lizst, Debussy, Bach...

Engolimos livros, músicas, poemas
assembléias, discursos, conferências
filmes, jornais, teatro, pinturas
porém os corpos frementes
se esmagam ansiosos
transgredindo pecados mortais
num reles banco de jardim...

Porém não, não te angusties!

Ainda assim não profanamos
o cio simples dos animais.

(cascs - 23/12/68 - sp - 29/06/10)

24 de jun. de 2010

O MEU AMOR

Caio Martins
Para Jeanne D'Arc













(
img: moon goddess - josephine wall )


Meu amor, amor,
não tem fim
nem tem começo
não tem regra
não tem preço
não tem pressa
ou endereço...

Dirás, amor, que amar

é sempre eterno mar
que pusesse em tua boca
um gosto de sal, de sol
de mel, de maresia.

Que uivarias à Lua

nua, molhada, fugidia
predadora presa em agonia
aos teus infernos, pedindo
que te levassem ao fundo
tumulto de licores e venenos
a rasgar teu chão, teu mundo.

Ah!, meu amor, minha menina...

tão mais singelo seria
nesse amar tão só receios
só o mar, só o amar
lambendo tuas feridas
de tantas idas e vindas
enquanto descanso cicatrizes
de guerra entre teus seios...







19 de jun. de 2010

BECOS


Caio Martins












(img: cvm - janaína/76-02)


Dos becos, em teus cabelos
das tuas sombras me fitas
vagos olhares, aflita
quem sabe ira, ou apelos.

Destinos tolos, sem grita
silêncios largos de zelos,
enrodilhados novelos
entre teias, contraditas.

Ah! teus olhos, tua boca
vincados e sem sorrisos
inexpressivos, sem ecos...

Quisera deixar-te louca
roubar-te beijos de avisos
e perder-me nos teus becos.

19/06/10 - SP.



5 de jun. de 2010

O CARRO DE BOI


Caio Martins

Solicitamos, a quem reproduzir, que respeite a autoria. Encontramos, em alguns sites, plágios descarados deste livro. Não é ético, é imoral e criminoso. Nada a obstar às citações honestas, que mencionem autoria e fonte. Tudo a combater contra "vampiros" e "sanguessugas" que se aproveitam do trabalho alheio. Esta é uma causa de todo escritor honesto e leitor consciente.

1. O carro

Tem carro de boi, e tem carreta. Carreta, ou carroção, tem roda raiada e é muda, não canta. Carro de boi tem roda inteira, e canta para se ouvir de léguas, seja gaita, pombo ou baixão . É coisa de sertanejo, é uma saudade doída de um tempo onde se ia devagar, mas havia mais tempo para ver e entender as coisas. Saber de carro de boi, é mexer com magia, é entender a alma da madeira e do ferro, da terra e do fogo, da água e do ar... [...]

(img: capa -1ª edição- 1997 - esgotada)


Veja matéria completa em http://caiovmartins.blogspot.com/p/o-carro-de-boi.html

30 de mai. de 2010

VISITA


Caio Martins

À Jane Vieira










(img: cvm - elaine16 -/decker)


Fui semente entre severas pedras.

Profetizando tempos de colheitas
nasceram flores mesquinhas
violentando mais e mais a colina.

Areias desoladas clamavam
e debatia entre mistérios
o amor como uma casca.

Em vão tentaram os ímpios socorrer.
Que sabem das tocaias dos vermes
em silêncio nas sementes?

Em vão tentaram, imaculadas virgens
interiores, impudicas e uniformes
resgatar com cantos e mel...

Que sabem desraigados
da deterioração intransponível
das farpas das solidões?

Mas, vieste umedecer o silêncio
com teu corpo (e)terno
capaz, porém, de tantos rituais.

Vieste, então, perplexa murmurar
aos ouvidos tronchos palavras desconexas
pungentes apostasiando a vida.

Vieste...

Como que trazendo perdão
entre prantos sem riso ou música
apoiaste tua face
em minhas mãos qual criança cansada
de brincar
e tanto brincas que me confundo
e meu beijar se repete lasso
e parco
e áspero.

Por que vieste?

Se sabias que de meu canto só nasce
o que não tem tempo de ser semente
e fere quem dele se assenhoreia?

Se sabias que a semente silenciosa
apenas estremece em sortilégios
a inexorabilidade da morte?

Que brotaria inóspitos
cardos e pedras e lajedos
por que vieste?

Fui semente entre severas pedras...

Meu corpo é tenso em teu corpo
minha boca arde em tua boca
e parece-me, no momento,
dilacerar as fímbrias da vida...




"Eu te amo" - Chico Buarque e Tom Jobim - com Telma Costa


18 de mai. de 2010

ONÍRICA


Caio Martins






(img: kboing)


Por que? Por que me olhas assim
onírica, de minhas paredes
lépida, ágil, intrépida
enquanto nestas madrugadas frias
traço com pobres palavras
notícias
relatos de amores, guerras
preces, paixões,
luzes e trevas
e as Musas
ingratas me abandonam
desterram
e ficas como dona, e deixo
encantado em teus mistérios
minha linda lagartixa? ...

9 de mai. de 2010

HOJE


Caio Martins

Ao poeta Luiz de Miranda.










(img: fabian perez - autoretrato)

Hoje, poeta, escrevo
não mais como quem chora
lamenta ou enlouquece,
como quem foge
briga e apanha e bate
e crê salvar-se ileso
e aos faltos do universo.

Hoje, poeta, escrevo
não mais como quem morre
escorrendo por complacentes
moçoilas no cio, vadias
vulgívagas elementares
crendo de amor falar
a torpes desesperados...

Hoje, poeta, escrevo
de caso pensado, sem alma
adrede e premeditado
sem ira ou rancor ou tédio
como quem solerte se exprime
suspeito e dissimulado
para cometer um crime.

Hoje, poeta, escrevo
como quem, por afasia,
declina da Poesia...

1 de mai. de 2010

CHORINHO


Caio Martins

Para Márcia


Saiu a pé pelo sábado choroso de outono, nem frio nem quente, um cheiro de mofo deprimente pelas ruas. Entrou num boteco esconso, trapiche onde estavam todos os amigos começando a noite que naufragaria, inevitavelmente, num oceano de cerveja, chope e cachaça... Todos os olhares cúmplices e solidários, solitários e comoventes antecederam os abraços, saudações, daí começou a alegria... Ou não fora ali o rei do cavaquinho, soberano nos diálogos com o violão do botequeiro e quaisquer vozes, nas místicas noites de chorinho e chorões?

Mastigou um torresminho devagar, ouvindo e desfrutando da zorra da moçada: qualquer desamado sofredor e desmamado, ali era personalidade, tinha ancoradouro. Estava com mal de amor... Tomou um martelinho de cachaça de a golinhos, entremeados por chope, já pegando o andar da carruagem quando a viu. Não a que se fora, mas uma carinha nova, de "olhar e voz envolvente, que atingia a perfeição”... Meteu-se naquele olhar profundo, no fundo decote e respirou, aliviado: o Barbudo, seu amigo, lhe enviava a cura...

Pegou o cavaco, afinou nos trinques e tocou como nunca d’antes na história deste país. Os olhos da moça não desgrudavam baixando-se, timidamente estratégicos, se focados. A galera extasiada nada via, ele entrara num estágio de magia irresistível e fora de questão. Quando pausou o ritual, foi um “- Aaaaahhhhh!” geral... Queriam mais, muito mais. Foi ao balcão de madeira escura (diziam que Cabral ali tomara sua primeira talagada ao chegar ao País das Maravilhas). Perguntou ao povo quem era a menina discretamente, macio feito um gato ladrão. Nada sabiam. Chamou o garçom e pediu que averiguasse se estava sozinha. Foi o velho astuto e perguntou-lhe se seu marido não queria nada. Estava só, com amigos...

Poderia antes, como Neruda, “escribrir los versos más tristes esta noche”... Todas as noites... Não, não o faria jamais: ela se fora? Que se danasse... Duro, todavia, o insistir da memória do corpo, os restos de energia eternamente entranhados, qualquer porcaria dentro e fora de casa lembrando e lembrando e lembrando... Venderia a casa, o carro... E as roupas, objetos pessoais, os móveis, o computador, os livros, mudaria para outra cidade, outro país, outro planeta... Outras mulheres? Estupidamente, no primeiro encontro pós-traumático, momentos decisivos, saíra-lhe o nome da outra; fora-se o doce enleio pelo ataque de ira, catar de roupas e o indignado bater da porta... Ali ficara na cama enorme pequeno feito um rato, chorando feito besta.

Ah! talvez revoltar-se ajudaria... Mas... como? Se ela nem saberia, senão por terceiros e notícia ruim de noticiário marrom, dos esparramos e desmandos? Entupir-se e naufragar em drogas, qualquer porcaria entorpecente e fulminante? Ir, a mão armada, e mostrar ao universo até onde um desesperado pode ser imbecil? Sair do emprego, cair na orgia, zerar a conta bancária e sair com a roupa do corpo pelas ruas atrás do fim do mundo? Procurar psiquiatra, psicólogo, terreiro, templo, mesquita, igreja? Não! Não resolveria... Fora-se? Foda-se! Ainda tinha o cavaquinho. Sorriu para a moça.

E, assim, conversaram sem pressa, de lá e de cá num chorinho vez por outra, lagriminha boba, escapada de um suspiro fundo, as mãos se tocando, litúrgicas. Horas depois, na porta do muquifo, despediram-se com beijo na face. Estava, como ele, em luto. Perdera também um grande amor.

(img:
fabian perez - study for the proposal)


20 de abr. de 2010

RETRATO DO MUNDO


Caio Martins


Para Cidinha Costa











(img: snowland -inga nielsen)


Busquei-te pela cidade toda.
Os lugares percorridos sabiam
de meus passos erráticos os sons
procurando sempre, desencontrando.

Mas te calavas
sentindo dor alguma
na convivência agre
dos desfadados da cidade ébria.

Não havia indigências
desconhecendo teu nome, tua voz
teu riso,
desconhecidos
os mistérios do teu corpo
outros que carregas
e não ousas confessar.

Estranha mulher, a liberdade...

Tolas tremuras cravam as ruas
remaculadas, e tudo foi súplica
falava-se em coisas impossíveis
a cidade mais e mais se iluminando
corpos buscando esconsos vãos
para dormir, a sensação de ausência
apertando, dando seu preço.

Busquei-te pela cidade toda.
Pediria esmolas, não fosse
o meu orgulho de aço...

O peito, agora, descansa frio
sem peso algum que o reconheça, sem
possibilidades de ficar menor.

O peito do poeta, neste instante
é um retrato do mundo.

(Casa do Estudante - XI de Agosto - 09/05/1967).




Com Maria Bethânia - De Chico Buarque e Gilberto Gil - Censurada em 1973.



12 de abr. de 2010

O FIO DA VIDA


Caio Martins


À Elodi Barontine










(img: el federal café - fabián perez).

A fluidez das palavras desgastadas
confirmam que a certeza de viver
tanto amor descompassado
morreu! Sempre é partida...

Talvez se brinque, talvez se grite
talvez se brigue, talvez se seja
eternamente nada mais que talvez.

Dos olhos da cidade
maldita
a multidão espia:
hão de querer o poeta, o anarquista
pendurado pela perna em fio de aço
pirueteando sobre o Vale do Anhangabaú...

Hão de querer versos prematuros,
improvisados prantos e risos,
o aguardarão sempre pronto no palco
decorado, precisos
gestos encenados com apuro,
o poema pulando da boca
rápido qual um beijo ou cuspida.
Diferenças? Nada!

Sempre é partida...

Dezenas de metros sob a corda bamba
baba a multidão esperançada
de mais um desastre passional.

Rompesse o fio da vida e ficaria
o silêncio de chumbo oprimindo a vivência
mas ficam
a corrosão de tantas palavras requentadas
latejando nos ouvidos, teu canto
tua música, tua permanência cravadas
febrilmente em meus sentidos
destartalados...

É sempre a vida dispersando
a vontade confinada
aos precários confins do corpo
e infinitos ardis da memória.

Sempre, amor, a vida
é sarcástica partida.

(viaduto do chá - 1968 - editado em 11/04/2010)



6 de abr. de 2010

OS PRAZERES DA PÁSCOA

Caio Martins
"Carácoles! Como és pascua nos fuimos a comer conejitos..."

      Assim falou meu querido amigo Juan Morcilla, no ano passado. Saí de um almoço de páscoa, agorinha, digno de trogloditas: coelhinho, carneirinho, leitãozinho,boizinho etc. ... Ninguém queria se meter na cozinha, fomos para a churrascaria.
     Horas depois, chegados à toca, heroicamente decido não dormir e babar no tapete, meu sofá já ocupado.
Cachaça no meio, estranhos pensamentos ocorrem dentre as volutas da fumaça do cigarro, enquanto contemplo, bestificado, as pernas da moça que resolveu ficar, sob desculpa de não dirigir bêbada. 
    Perfeitas... até demais. Dedinhos, pezinhos, joelhinhos, coxas terminando numa nano-calcinha bordô ridícula (pedirei-lhe, quando saia do coma agápico, o lacinho azul pouco menor que a peça para lembrar-me deste dia)...
    Paro aí, o resto enrolado na leve cortina recém lavada que não instalei e que virou lençol, sobrando-lhe, de fora, um lindo focinho ávido. Vibram, meus extraordinários instintos mais primitivos e atávicos! Uma citrullus lanatus ou opulenta representante das cucurbitaceae nas mesmas condições jamais causaria, sob todas ameaças das penas do inferno ou promessas de bênçãos celestiais, tal exaltação...
    Impávido, politicamente incorreto nato, contemplo extasiado e satisfeito, farto e lascivo, essa maravilhosa obra de arte da criatividade divina que aterrissou, lânguida e tépida e intrépida, confortável e feliz, no meu peji de elevadíssimas reflexões não traumáticas... Concluo que esse Deus ressurgido e comemorado - ou o deus, os deuses, fique-se democraticamente à vontade - deve ser, enfaticamente, meu amigo.
    Que me perdoem os fundamentalistas alimentares, abstêmios e castos, sou carnívoro. Luxuriosa e exaustivamente carnívoro. Definitivamente carnívoro...
(img: paola en el sofá - fabián perez )

3 de abr. de 2010

EL CANTOR


Caio Martins

A Sérgio Mansilla










(img: cvm - sinfonia cósmica)

Cantá, cantor,
seguí, nomás...

El momento de tu agonía
tiene de ser vivido
como el último aliento
de un condenado a muerte.

Rueda en tu voz
en las cuerdas de tu guitarra
el peso violento
de nuestra suerte.

Cantá, nomás, loco,
alucinado como los locos
los músicos, las putas
los poetas, los perros callejeros
los gorriones y los niños...

Cantás, seguí nomás
que todas las soledades amargadas
se te van aderir, apegar,
chuparte la sangre
y después, felices,
bailar una salsa
sobre tu cuerpo agotado...

Cantá, cantor
que el poeta, cual un brujo
las putas, como madres
los perros callejeros de guardianes
los niños de angeles
te resucitarán
para que cantes, cantes
y cantes
hasta explotar
y alumbrar el cielo
con las estrellas de tu voz...

(penã folklórica "los hermanos" - 11/03/1986)

23 de mar. de 2010

TEU POETA

Caio Martins
Para Fanny   














(img.art: lucie - tela - 2001)


Eu te vivi intensamente
como se fosses o derradeiro ar
a derradeira vista ao redor
a derradeira vontade de rir, de chorar
o derradeiro grito de revolta.

Não morri de desgosto...

Quis escrever carta sem desculpas
mas defendendo pontos de vista
de concepção de vida anarquista
tanto arrojo, tanta veemência...

Tanta incoerência ao falar de amor.

Poderia, quem sabe
te encontrar de novo distraída
e me dirias que teu amigo poeta
não é bem teu amigo, nem teu poeta...

Momento dos mais graves
estirados de bruços, rindo
da gravidade da vida.

Esta mão que empunha alarmes
deslizando em tuas costas
me pergunta quando poderá
de novo
dedicar-se a carinhos.

Te pergunta se voltará a colocar em papel branco
o canto de sempre, do jeito de sempre
entre
ensimesmado, revoltado, insensato
mordaz, terno, rabugento,
intenso, denso, preocupado,
chato.

As respostas perdem-se
entre um momento e outro
ao despreocupar-nos das conjunturas
estruturas, a oferta e a procura
a malícia das conspirações, loucuras
só restando
perdida num mundo de erros
enterros, desterros, a ventura
de ter-te vivido intensamente.

Tudo mais é um estertor nos ouvidos
esfacelando o amanhecer:

- GUERRA!




"Cantares" - Poema de Antonio Machado - Música de Juan Manuel Serrat
(23/12/1969 - Montevideo - Restaurante “O Cangaceiro”.)

15 de mar. de 2010

9 de mar. de 2010

IMPACTO


Caio Martins


Para Ana Lúcia.










(img: fabian perez - marmol negro II)

Já não seria, este
um tempo de lágrimas.
Que dizer, então,
palavras?

Fechadas as portas todas
farpados quaisquer caminhos
restaria, e nada resta,
senão
tuas formas bobas de beijar-me
eu, de morder-te
e polir velhas nuanças
de estruturas corroídas.

Que o meu amor nada é,
senão angústia e pânico
desconcertado de voltar
ao lugar-comum de gestos
parcos, solidão e vácuo.

Que, no salto intempestivo,
é acre o meu amor mais doce
desdelírio, sombra e sal.

Não, não!

Não seria, este
um tempo de sim, e sim
de espasmos
pois já não seria, era
será
o chocar com portas
farpadas
rasgar-se em cercas
fechadas...

Resta, meu amor,
por nada creditar ao amor
que não liberte,
este tempo ácido
cinza
de não.

2 de mar. de 2010

GESTOS NO BAR


Caio Martins

À Silvana - Peña Cauã.










(img:cvm -lucienne037 - tela)

Estes bares noturnos, moça
são antros de gente perigosa.

Em que pese, são (e)ternos
os músicos mercenários
as bem amadas triunfantes
os amantes latinos
as mal-amadas teatrais
os solitários de sempre
e até mesmo teu poeta
de incêndios orquestrais.

Hermético, teu gesto
jogando negros cabelos
tua afoita blusa exótica
deslizando sem escombros:

- Que belos ombros...

És toda uma mulher
e me assombro, moça
com tua cortante beleza
em sapatinhos de cristal.

A luz raquítica
musica arcos-íris
no compasso de teus braços,
movimento
de dança de teus seios...
(lamento a mesa te ocultando a cintura).

Que cores raras tem a música!
Que gula, no ritual de olhares!
Te falo, invento histórias
falo, falo, falo
e desmonta-se em frangalhos
tanto cenário, e calo...

Cabeça dura, teimosia
seguir querendo ver-te
em meu corpo
a bailar nua.

Guardamos nas sombras das roupas
nas dobras do tremor das ruas
arsenais de sorrisos
armadilhas de palavras
etéreos e afiados punhais.

Nos olhamos intimidados
cúmplices, irreais
o garçom passa e pisca
em fantasia pomposa.

É que estes bares noturnos, moça
são antro de gente perigosa.

(Peña Cauan. Pensão da Zulmira -15/04/1987).

24 de fev. de 2010

O JANTAR


Caio Martins

(Há um ano, "O Jantar" inaugurou o Poemas e Crônicas)

Acomodou o carro na garagem meticulosamente. Não fosse dar motivo para o salame do vizinho dizer que melhor aprendesse a dirigir, enfim, aquelas questões medíocres dos condomínios de luxo onde todos mandam e ninguém obedece. Porta do elevador, lembrou-se dos cigarros. Outro problema... Menina, e o bicho-papão era o sexo, com ameaças do inferno sob a égide dos pecados da carne fabricando gerações de infelizes, principalmente (como sempre) mulheres, durante séculos de fundamentalismo moral como base para a dominação político-ideológica. Entre queimar sutiãs e calcinhas e quatro décadas de guerra inclemente, agora eram livres e o mundo que se ferrasse. Entre a cama e o cinzeiro, nem tudo era só fumaças.

Foi ao botequinho ali perto, tomou um café cozido de máquina, pediu os cigarros sem remorsos e, feliz, olhou a rua com outros olhos, agora de um verde mais vivo sob cílios escuros impertinentes. Foi quando viu a mesma figura de décadas, jeitão de enfezado, passos largos e rápidos, claro que de cara mais enrugada e cabelos mais ralos, porém era ele, inteiro e elástico: amor de juventude jamais consumado, aquela paixão feérica beirando a loucura ainda enquistada nos ossos, com tantas esperanças quanto dilúvios em tantas fantasias densas e solitárias, até parecer completamente esquecido, e lá vinha subindo a ladeira, bagunçando-lhe a auto-suficiência. Parou no meio da calçada caprichando na pose.

Ele veio, veio e foi freando, ela miou-lhe o nome com o que achou ser o tom mais charmoso. Aí, reconheceram-se e deu até abraço, num segundo a vida posta em dia, ela alçando ombros e empinando retaguardas, ele olhando curioso, até meio sem-jeito. Rápida no gatilho, disse-lhe que no sábado haveria um jantar em sua casa, todos os antigos amigos de escola lá estariam, ele não poderia faltar. Tendo-o evasivo, fez beicinho, disse que era um desconsiderado, todos gostariam de vê-lo, seria a surpresa da festa, pediu e exigiu, implorou e choramingou, até uma lagriminha apareceu, vilã. Conseguiu o compromisso.

No dia, fez uma revolução no apartamento. Flores, incensos, lençóis limpos, velhas músicas de Johnny Mattis engatilhadas na anacrônica vitrola, as de Jobim, João Gilberto, Vinícius e outros no DVD-player, a comidinha caseira especial encomendada na medida no “dellivery” da esquina, um vinho branco geladinho, ganho nalgum fim de ano que ficara perdido na estante, luz de velas... Horas no banho, sais perfumados, hidratante, perfuminho aqui, corzinha ali, blusa transparente, bata fina, lingerie vermelha, enfim, todo o cenário pronto para o apocalipse. Vinha ninguém, não. Apesar das quatro décadas de atraso ele seria, finalmente, o prato principal da festa.

Atendeu à porta diluindo-se em sensualidades. Não fora, afinal, a ruiva mais deslumbrante da escola, gerando até pancadaria da moçada que com ela queria dançar, nos bailes devidamente vigiados por mães ansiosas de filhas desesperadas? Mas ele parou, perplexo. Olhou em volta, sorriu e balançou a cabeça, decepcionado e compreensivo. Nem sentou. Disse ter mulher a quem amava e que não ficaria, que o desculpasse e se foi, sem incomodar-se com suas lágrimas. Então, ficou ali sentada, chorando baixinho. Tantos anos passados e dela, que fora linda, ficara-lhe, como disse o poeta, apenas solitária lenda ante um jantar frio e o vinho quente, a frustração densa e o coração despedaçado a lamentar-se de que Deus não é justo com as mulheres.

(img: a ruiva jessica, em "uma cilada para roger rabbit".)

Atrás da porta - Elis Regina

Chico Buarque e Francis Hime



20 de fev. de 2010

AVENIDA PAULISTA


Caio Martins
Para Marici.











(img: av.paulista 1922 - pmsp-arquivos)

Esquina da Brigadeiro:
o pipoqueiro de branco
fecha a panela e zarpa
destartalada nave sem bandeira
em fuga do curral.

Um filho de puta baba
e dorme aos trancos, desbarrancos
num canteiro, mijado .

Negócios, formados em batalhão
arpoam a penumbra avermelhada
com seus vorazes olhos in(can)descentes:
tétrica beleza como restos de incêndio
na tragédia da tarde moribunda.

Vai o pipoqueiro de branco
navegando encardido na corrente do trânsito
que escorre pelo MASP como vespertino vômito .

Navega em pesadelos
o menino predador pardo
sacode um pé, range bruxismo,
o trânsito range cataclismos
nada há mais a despertar.

Turbilhão de ansiedades
nos flancos escorre
compacto rebanho remexendo
retensadas vísceras
coléricas, terminais...

O pipoqueiro é preso por não ter licença
e navegar na contramão
o pivete mijado salta e esca(pa)fede no ar.

Das casamatas bancárias fuzilam
raios cibernéticos no seu rastro
latitude 26,56 e longitude 46,64 graus...

Na esquina da Augusta
pipoca um tiro ocasional
a moça grita, tudo é nervo retesado
raspou, não feriu nem matou
para desconsolo geral.

Terminas, corredor
de orgias e latrina financeira
num buraco abrupto e estreito.

Esquina da Consolação:
indo sempre em frente, talvez
a gente consiga sair
- mesmo que poucos se salvem -
da (vora)cidade.

O poeta busca consternado
na ausência do olhar de Marici
os olhos de adeus de Marici
ancorado na esquina do cemitério
estatelado, a ver navios...

(13/07/1987- Pensão da Zulmira.)

6 de fev. de 2010

CALLE FLORIDA


Caio Martins

Saiu de Ezeiza sozinha, o táxi a deixou na Calle Florida com Lavalle, desceu apressada meio quarteirão arrastando a mala de rodinhas. Lá estavam: Papito e El Gordo. Já lhes sabia os nomes. Estranha descoberta, há uma semana. Passava, ouvira um bandoneón chorando e vira a aglomeração. Achara um canto para espiar. Debaixo de chapéu insólito, num terno de listras impecável e sobre sapatos luzentes, ele dançava tango com as turistas, mulheres que quisessem. Fascinara-se. Ficara ali, cravada, absorvendo cada passo, gesto, movimento. Quando se fora, a música permanecera nos ouvidos e dançara horas, só, no quarto do hotel.

Subiu no degrau da loja de roupas para melhor ver. Então cruzaram-se, os olhares. Finda a dança da vez, veio. Incomuns, os trajes de aeromoça num fim de tarde quente, no coração de Buenos Aires. Estava tensa, ansiosa, em plena síndrome de tensão pré-menstrual e, acima de tudo, ainda furiosa com um canalha que, na saída do avião, lhe passara a mão na bunda. Papito vem, como se a conhecesse desde sempre lhe beija a face e diz, sem sorrir: “- Bailás el tango, nenita?” - e a puxa para o meio da roda. Deixa a mala ao lado do Gordo, dizendo não saber, que não, mas a turma aplaude e grita: “- La azafata! La azafata!...”

- Gordo, metale “El dia que me quieras” ! - e a ela: - No te preocupés, nena, lo tenéz en la sangre! Yo lo sé! Solamente segui la música e dejate llevar!

Feito. "- Un, dos, un, dos - derecha - izsquierda - un, dos, tres - eso, de nuevo - pero sos un fenómeno - de nuevo...” - a voz grave e macia, o bandoneón, e tem a sensação de levitar, o tango acaba... - Gordo, metale "Sur" ! - e seguem, sente a saia justa prender-lhe os movimentos, percebe que ao perder o passo ele corrige, sente o corpo como que no cio, mas, diferente. Fecha os olhos, percebe que a mão, em suas costas, mal a toca. Esquece a rua, só existe a música, os movimentos harmônicos, sinuosos, perfeitos... E acorda com os aplausos, curvada para trás, os olhos muito velhos enternecidos fixos nos seus, a turba gritando: “ - La azafata! La azafata! La azafata! ” - porém, tem de ir.

Leva-a até a valise, El Gordo levanta, beija-lhe a mão e diz, baixinho: “- La requetecontra puta madre que los mil parió! Papito, és una diosa! Una diosa! Jamás he visto eso! Ni que hubieran mamado en la misma teta!” Sai rapidamente, por odiar expor-se. Cedo, terá outro voo de longa distância, não pode falhar. Levará a sensação mágica da dança delirante, os olhos velhos e os sons do bandoneón do Gordo: - Papito, volto la outra semana, te prometo! - e ele: “- Te aguardo, nenita! Te aguardo...

O Gordo, após esperar algum tempo, sai à procura do amigo. O encontra no Café Tortoni, fumando e tomando calvados, derrubado e sorumbático. Senta, pede um café. Papito sequer o olha.

- Che, que carajo que te pasa, boludo ?! Te esperé un montón, y te encuentro amargando una curda! Que te pasa, salame?
- La perdemos, Gordo... La perdemos...
- Que los parió, la perdemos quien, sorete?
- La nena del otro dia, la azafata... en ese avión que desapareció anteayer en el mar...
- Pero sos un tarado hijo de puta! Te enamoraste de la piba... Tás chifla’o! Puede ser tu nieta, pedazo de mula... Quién te dijo la mierda esa?
- Lo sé, Gordo, lo sé. Solamente lo sé! Pasado mañana no vá estar allá! Me duele el zoncora, Gordo! Y calláte, por Diós no digas mas una sola puta de palabrita, o te cago a palos!

Chega sereno, o Gordo já está lá. E, no reflexo da vitrine, ela. Cabelos presos num coque tenso, vestido sem costas colado, púrpura, de rasgo até o alto da coxa, saltos temerários. Ordena que toque novamente “El dia que me quieras”, vem, a toma pela mão, a enlaça e dançam. Pesa, na Calle Florida, denso silêncio. Dançam; quando fecha o último movimento, a tem pela cintura, curvada, solta... E a beija suave, delicadamente, antes de reconduzi-la fora das gentes que, perplexas, não aplaudem. Senta-se na calçada, diz ao Gordo que lhe dói o coração.

- Pero cabrón, bailaste con quien carajo? Tás chifla’o de piedra, te piantaste? Hablá conmigo... Hablá!... No te vayas, desgracia’o... No te vayas...

(img: estudio para el tango - fabian perez)
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El dia que me quieras
Carlos Gardel ( maldonado, 11 de dezembro de 1890 — mendelín,24 de junho de 1935 )


30 de jan. de 2010

RUA DA CONSOLAÇÃO


Caio Martins

Para Simone.








(img: cvm - den222A - 2003)

Menina de olhar claro
corre, me sinto mal...
Chama a yalorisha, me traz
um rum, rumpi, um lê
uma cachaça, porção de sal...

Ardo em desolação...

Corre, menina clara
vem, eu nada quero
só este vinho batizado
esta sopa de cebolas
estas sobras de solidão
feito restos de feira,
quero
levar São Paulo no bolso
explodir na Consolação.

Sôfrego, consumido
quero afagar delirante
teu corpo magoado
alucinar-me com o gosto
de teu suor, saliva, licores
beijar-te, beijar-te,
quero
tocar-te fundo, mais fundo
vezes, mais vezes
sobre mim
não pesarás...

Há um grito nas ruas.
No dolorido silêncio das ruas
há um fulgor na noite...

Será fulminante espetáculo
chama os bombeiros e vira-latas e suicidas
um poeta vai implodir no berço esplêndido
desta pátria mal nascida.

Escorro
pelos vãos de meus medos,
pelos vãos de teus dedos.

Menina de olhar claro
qui tollis peccata mundi,
miserere nobis...
mas, corre!... corre!

Ardo em desolação...

(06/07/1987. Pensão da Zulmira.)



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