26 de set. de 2009

CHAMAS


Caio Martins
Para a escultora Maria Karini











(img:cvm - maria karini4/1998 - em "mulher, imagens e poemas")

Estilhaçar
teus cenários de concreto e aço
e perder-me sem misericórdias
no emaranhado de teus traços.

Na languidez fatal
imortal de teu abraço
denso, intenso, teu
olhar de susto e salto pronto,
entranhado
na confusão de teus apelos
pelos, cabelos, atropelos
e confrontos.

Daí, deslizar matreiro
por fendas de tuas esculturas
na contramão de teus sinais
vermelhos, em painéis
de pedras, bronze, metais
dilacerando teu sono
com meus cinzéis...

Mas, docemente
levemente perverso
assim
a pouco e pouco
em delicadezas jamais vistas
e requintes de suavidade
- enquanto arqueias irresoluta
entre suores e gemidos
palavrões e riso louco -
inventando às pressas que te amo
antes que incendeies o universo.

CIDADE


Caio Martins
Para Tati











(img: cvm - womanstudio-coygni - newyork/2000)

Quando teus olhos percorrem a cidade
que desliza sob a noite em tensas veias
de aço e óleo e ódio e chamas
ela como que estremece de espanto
enquanto não dormes, fantasias
o torpor lento dos amantes...

Percorre então tua pele
como se fora brisa, um arrepio
suave e o oposto do delírio
feroz de posse do cio frenético
ôco e mecânico e estático
das solidões perdidas pelas ruas.

Mas, se cai tua lágrima comovida
na face mergulhada entre teus seios
tens num leve instante um relicário
de sons e luz e espelhos
de alegorias vãs de mulher
alumbrada cidade de desejos.

20 de set. de 2009

TRATO COM O DIABO


Caio Martins

Aquilo era coisa muito antiga, diriam os amigos mergulhados em hi-tec, chips, TI e parafernália toda da nova era tecnológica... Mas, fizera um trato. Outra coisa fora de moda, característica sua, era a de cumprir compromissos e promessas. Ademais de estudar gramática, ler Castro Alves, Machado, Drummond, Guimarães, Veríssimo - a nata da literatura brasileira. Podia? Não, não podia...

Não fumava, não cheirava, de vez em quando tomava uma caipirinha aguada e ficava rindo feito besta. Era careta, sabia. Na indecisão, ficara uns dias na quietude de uma chácara, meditando. A velhinha encarquilhada e quase centenária lhe dissera, anos atrás, dedo em riste na direção do vulto que passava na rua em exagero de velocidade: - É o Capeta! Esse é o Diabo... - e correra, lentamente e resmungando, a acender vela branca, botar copo d'água no altarzinho da Virgem para o Anjo da Guarda. E cada vez que o Tinhoso, o Coisa Ruim passava com estardalhaço, largando fumaça e cheiro de enxofre, insultava corajosamente, apesar da idade.

Carregava o cansaço dos últimos da tribo, da galera nascida e criada junta, que agora se desfazia perigosamente, cada com seu par, outros destinos e desígnios e aquela fé e força que tanto os unira, destinava-se a objetos e pessoas fora do círculo acroamático original. O cyberespaço era infinito, a interação teclada substituíra, descontroladamente, aquele toque, aquela palavra, aquela troca de emoções miudinhas... até mesmo a boa trombada, vez por outra, por qualquer motivo fútil. Junto ao cansaço, trazia a determinação de mudar as coisas.

Daí, armara-se de coragem. Não tinha pelo menos uns mil e-mails carregados de intenções, propostas, promessas, sonhos, mentirinhas e mentironas, além das vezes em que, com jeito e manha, permitira levar-se ao topo do prédio e, dali, ouvira tantas vezes que tudo aquilo seria seu? Naquele dia, depois da meditação e passando longe dos incensos e velas da avó, agora mais que centenária, decidira-se: ia fazer a besteira. Foi uma longa preparação. Descobrir a hora e o dia certos, o lugar propício, preparar-se com requinte e, essencialmente, manter o mais absoluto e resoluto segredo.

Foi gentil, estava tão assustado quanto ela, porém, apesar de toda a paixão, a tratara como se delicada flor, precioso cristal. O trauma da virgindade perdida confirmara-se uma lenda, o outrora menino que infernara as ruas com a moto barulhenta e fedorenta mostrara-se muito carinhoso, paciente e cuidadoso. Choraram juntos. Esse, o trato... Terminando o dia, um pôr-do-sol fantástico sobre a cidade, ficaram abraçados quietinhos, sem nada dizer, comovidos feito o diabo.

(img: eros e psiqué - 1817 - óleo sobre tela de Jacques-Louis David)

16 de set. de 2009

A ESPADA


Caio Martins

Aproveitando propício momento, fora atrás do sonho ainda muito menina, uma criança. A “Primavera de Praga” sucumbira sob os tanques soviéticos, havia desencontros e confusões, agitação e tristeza por toda a Tchecoslováquia. Passou sua figura miúda e leve por manifestantes, soldados, chuva de pedras e nuvens de gás lacrimogêneo. Encontrou a ladeira de pedras antigas e a porta de ferro batido, as escadarias de carvalho e, numa sala soturna, iluminada por candeeiro a óleo, o velho sumido em trapos. A mão da mãe a soltou.

- Vim buscar a espada! - disse, num idioma inóspito e que lhe era estranho.

O velho indicou-lhe onde. Pesada, corroída pelo tempo, a madeira do cabo desaparecera há décadas, talvez, mais de século. Beijou a mão ressequida e frágil, pegaram a conquista e saíram apressadas. A relíquia passou alfândegas com funcionários relapsos e cansados de alguns países até, finalmente, chegar em casa. Levou-a, anos depois, a ferreiro perdido no fim do mundo, nas serras de Minas, e pediu-lhe a reconstrução. Esse também, sem palavras vãs, pegou, sopesou e pediu-lhe um mês. Estremecera de emoção. O pai, companheiro da empreitada, também.

Nos trinta dias, pegou-a. Perfeita, polida, o cabo de raiz de jacarandá amoldando-se em suas mãos pequenas como se juntos tivessem nascido. Pagou em ouro, moeda trazida de outras eras e herdadas em gerações. Lauma respirou fundo, intangível, verificando a arma ancestral milímetro a milímetro em busca de imperfeições inexistentes, e pegou o caminho de volta. Completara o ciclo. Teria, agora, vinte e um anos passados, de tê-la em ritual milenar, repor sua marca e intensidade para, finalmente, dotar-se do último elemento para a definitiva consagração espiritual.

Mas, havia um homem, frágil e perdido de si e do mundo, que lhe entrara pela pele e tornara-se, ao mesmo tempo, numa promessa de amor e perspectiva de um desastre. Daniel... reduzido, de líder emblemático e moderno guerreiro, a espantalho lamentoso por ter-lhe cruzado o caminho, na hora errada, um anjo perdido; fêmea primitiva e oblíqua, para quem o mundo começava e terminava nas genitálias e, pela graça e beleza, seduzia instintivamente os alfas de sua espécie. Letícia...

Conseguisse centrar-se, seria sua própria salvação, a libertaria para seguir sua saga e seus caminhos. Não podia permitir-se odiá-la, porém, odiava. Na sua linhagem e tradição, eram-lhe vedados humanos sentimentos banais; paixão e ódio, rancor e mágoas, desejo e medo... Filha do equilíbrio e da sabedoria, Lauma chorara apenas uma vez, quando aquele homem fraco a inundara de tanto carinho que perdera, além do controle, a férrea vontade e certeza de sexo ser como singela busca de alimento, madrugada em curso, num assalto à geladeira. Letícia era promíscua, indecorosa, irresponsável, indecente, impudica, compulsiva... E Daniel, um fraco. Ela? Uma vestal...

Teria de purificar-se e elevar-se, pôr-se acima e distante de inconsistências e vulnerabilidades cuja única função era pô-la à prova. A espada, de ferro batido e transformado em aço na têmpera em um ser vivo, quiçá um guerreiro, há séculos, era sua garantia de poderes tais que, num momento relapso, ao putear contra um homem, matara por tabela o cãozinho da família, oculto sob o carro. A espada lhe daria o controle e a sintonia de seu lado destrutivo. Seria sua garantia, na verdade contra si mesma, e sorte de muita gente.

Limpou-a cuidadosamente, em minúcias. Empunhou e cedeu ao peso. Não era para batalhas, em tempos ditos civilizados. Depositou-a carinhosamente num altar na parede norte de seu quarto, entre cristais - alguns preciosos - envolta em villuto carmim sob um atilho de seda azul, o mesmo que, trançado, lhe segurara os cabelos quando conhecera Daniel. Satisfeita, determinada e feliz, foi à cata dos elementos que utilizaria em sua liturgia, na noite em que a lua seria apenas uma curva imperceptível na escuridão do céu. Ervas, pedras, metais, terra, fogo, água e banhada em ar, outros segredos e mistérios.

Sentou-se na cozinha, espichando as pernas e braços, espreguiçando-se prazerosamente. O gato subiu-lhe em cima e, ronronando alto, aninhou-se-lhe no colo. Sentia-se bem, apenas a memória do corpo incomodando sutilmente com reprises do sexo desbragado com um homem instável que, curto tempo atrás, a fizera sentir-se estupidamente mulher pela primeira vez na vida.

- Sabe que mais, gatinho? A sua dona está ficando louca...

(img: cvm - têmpera - trecho de “zero-hora: um anjo perdido” - 1996)

12 de set. de 2009

OPERETA


Caio Martins










(cvm - teatro de vicenza/venetto - em "mulher, imagens e poemas" 1998)

Estarás sempre assim
com teus olhos tristes
tua boca de pejo
num palco de ausente orquestra
flutuando entre os fantasmas
de teus fantasmas
num teatro
esquecido do mundo...

Dizendo querer beijar, dizendo
querer, no fundo,
mais e mais fundo, para então
entre soturnas sombras
de tuas sombras
se lamentar.

Estarás sempre assim
com teu jeito leve
imponderável
de mito em cenário opaco
e quando eu esperar lágrimas
por certo irás rir
cantar
dançar.

E direi sempre que ao instante
previsto e desconcertante
ao te revelares só mulher
outro dilema virá, enfim
sob a música de teus lamentos
de fêmea
dissipando o espetáculo
devagar...

7 de set. de 2009

ETÉREA


Caio Martins












(img: cvm - lecazul - em “mulher, imagens e poemas” - 2001.

Por que fui querer assim
essa mulher de mistérios
que fala de amores perfeitos
e das sombras uiva à Lua
em cio, fogo, desconcerto...

Por que, querer assim essa mulher
perder o sono, a sede, a fome
ficar transtornado de desejo
se a sei eterna, louca, desconforme
e me desfaz em cacos, quando a vejo...

Ah! por que fui querer assim
essa mulher imprevista e fugidia
que oscila entre fuga e reconquista,
que me retalha e consome, feito
um anjo perdido, uma vadia...

2 de set. de 2009

A MOÇA QUE ATOLOU NO BREJO


Caio Martins

Ao Paulino Venâncio Martins, meu avô.

Diz que micuim de amor não tem juízo. Daí, que o fazendeiro de infinitas léguas, coroné de baraço e cutelo, pegou umas rosquinhas, uma garrafa de licor de jenipapo, a filha dum compadre de coronelice e farreio, moçoila alemoa solteira e fogosa, ponhou tudo no carrão recém chegado das Oropa e disparou pr'os lajedos do Rio Pardo, perto d'onde hoje ainda é a Fazenda Amália, só pr'a vadiá. Casado e renomado, quando passava com a máquina preta roncando, até galinha ficava uma semana sem botá.

Mas, perto do Águas Claras, a moça grudou ele, o fazendeiro perdeu o bridão do bicho e os dois meteram os quarenta cavalos no afamado Brejão do Sapo, do lado da estrada. E veio gente, tentaram com cavalo e burro de tropa, e puxa e repuxa, o trem parecia era cada vez mais grudado, nada de despená.

Aí, num carro de boi cantador de gaita, veio chegando o Paulino Venâncio, pai do contador que então inda era menino, devagar como se tivesse a vida inteira pr'a chegar em nenhum canto. Tinha oito boi na junta, desses de encher os zóio, cada beleza de animal que Deus fez só para se gabar.

Chegou, parou, assuntou e riu dum jeito matreiro, lá com seus bigodão. Não gostava muito do fulano, e aquela história ia correr o mundo. Ademais a moça era filha de terratenente jagunceiro arrespeitado. Diz-que acoitava o Dioguinho, é, mas ele, sim. E a mulher do atolado era uma jaguatirica de braba, dessas de capá marrote só de zoiá.

- Ô Paulino! Desatrela os bois, puxa e despena meu carro desse atoleiro desgraçado!
- Ô, Coroné!...Uai, sô! 'cê num disse que esse trem tem mais de quarenta cavalo? E tá pedindo ajuda de uns boizim?

E o outro implorou que desatrelasse os oito bois, a moça atolada dentro do carro chorando, aquele povo de capiau na flirtiva se rindo.

- Tá bão, cumpadre! Vou arresorvê! Vou tirá essa porquera pr'ocê!

Gritou para o Aquiles Grande, disfarçado de carreiro, que desatrelasse só a junta de guia, pois para tirar uma tranqueira daquelas, dois boizinhos bastavam. O Sacamoto e o Graúna, no aboio e som do ferrão e atolados até na barbela, foram puxando, estirando e, dai a pouco máquina, moça rindo, licor de jenipapo e rosquinhas estavam na estrada, tudo despenado.

Porque boi, contrário de cavalo, mula e burro, não dá tranco, arrancada, solavanco. Puxa estirado, vai aumentando a força devagar, na sabedoria. Aí, pr'a encurtar essa prosa que já foi longe demais, o fazendeiro disse que o Venâncio podia pedir o que quisesse, já que viu que ele não desgrudava o olho da alemoa, moça ancuda e volteada, parecendo 'té canga ajeitada nas curva das beleza lá dela, agarrada c'o a garrafa de licor e a lata de rosquinha.

Venâncio coçou a barba, ajeitou o bigodão, assuntando a moça, olho no chão, no fulano, foi e voltou, rezoiou, parecendo boi ruminando lá as maracutáia dele.

- Êh, trem bão... 'tá bão! Só que num sei se 'ocê vai dá concordânça! O que eu vô querê, acho que ocê num vai podê me dá!

O fazendeiro, que não queria ser o único a responder por descaminho de moça solteira, crime naquela época, filha de acoitador de jagunço - coisa pior ainda - já basofiou, montando empinado nas botas de canela alta embolostradas de barro:

- Pois, Seu Venâncio: é só pedir e pode levar!

A moça abriu o berreiro, soluçando fundo e magoado.

- Pois, Seu Fabrício: pode me passá o licor de jenipapo e os biscoito, aí, que inté 'tá bem pagado, pela tunda que meus dois boi deu nos seus quarenta cavalo...

*(“Causo” estoriado, de Jayme Venâncio Martins, e publicado no livro “Carro de Boi”, compilação do autor com base na tese de mesmo nome de Horácio Ramalho e apresentação de Luiz Tortorello, para a 8ª Festa do Peão de Boiadeiro de São Caetano do Sul, 1997. O vocabulário manteve-se fiel à gravação. Gráfica Romus. Img: carro de boi de quatro juntas, 1916 - arquivos)


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