31 de jul. de 2009

CENÁRIOS


Caio Martins

Bebera em demasia. Stela ficara à distância, com amigas, sequer o olhara até momentos antes. Lá no fundo, o noivo recém-abandonado ruminara terríveis vinganças, “... mulherzinha à toa, sem moral, cretinaça...” Sequer explicara, dizendo que tudo estava acabado, tome lá “seu anel de falso-brilhante sem dois pra lá dois pra cá, tô fora!” Tinha de ser o ordinário do músico, poeta delirante e boêmio, mulherengo e pudim de cachaça... Cantava para ela, escrevia versos safados, passavam o tempo olhando-se, canalhas...

Saiu do palco, sentou-se a uma mesinha abandonada, ao pé do janelão. Precisava de ar. Madrugada de inverno, o bar latino-americano, até então apinhado mas já esvaziando, lá fora a névoa deixando cenário enigmático, mesmo macabro. O boliviano clandestino trouxe-lhe um “pastel de choclo”, empanadas, um chope e uma cachaça, oferta da casa. Na penumbra, somente viu o brilho dos olhos negros de Stela. Jogou a cachaça pela janela. Alguém na rua, furioso, o puteou imediatamente.

Dissera ao noivo que tudo, numa mulher, era saber apertar os botões certos. O pascácio não entendera, pensara nos bicos dos seios e outros brinquedinhos sensíveis. O sujeitinho viera, de peito estufado e grandes bíceps, tomar satisfação. Chamara o Bolita, entregara-lhe sugestivamente uma navalha siciliana de palmo e dissera-lhe que a guardasse na caixa do violão. Depois, voz macia, entupira o pedaço de mula de papo de aranha e cachaça, tomada para mostrar que era macho, falando da alma feminina deidificada nas religiões e acima dos meros mortais. Eram todos vítimas e coisa e tal... Engolira.

O sujeito, por fim, soluçara. Agora, debruçado sobre a outra mesa, apagara feio. Levantou-se, olhou o ambiente e a ausência dos olhos negros. Saiu vacilando entre cadeiras, bêbados, drogados e soledades crônicas, ganhou a rua chuviscosa, entrou no carro e pegou automaticamente o caminho de casa, muito devagarinho. No trecho de rodovia, pareceu-lhe que a pista abria e fechava, ondulava e tremia. Chegou, todavia. O guarda-noturno o esperava sob uma quaresmeira. Bom sujeito, apesar de abstêmio.

Deu-lhe a chave do carro, como sempre. E, espanto: no jardim, o carrinho tão conhecido... Era ela. Tentando abrir a porta, Stela antecipou-se. Puxou-o (era miuda, chegava-lhe ao queixo), abraçou de pernas e braços, beijou-o, rolaram para o tapete em dança bizarra. Devassaram-se manhã adentro, sôfregos, quanto mais, queriam mais, até caírem destartalados. Stela observou atentamente os estragos, dos arranhões nas costas e no peito dele, às orquídeas pelo próprio pescoço e colo e coxas; e todo o resto do cenário para ver o que sobrara do apocalipse.

Depois, achegando-se e a cobri-los com uma antiga colcha de retalhos, o aninhou ao peito. Desfeito, ar abestalhado, sorriu a meias e disse-lhe prosaico “te amo” antes de desabar-lhe de vez entre os seios. Tinha um rosto bonito, traços fortes. Stela, descabelada e triunfante, o acomodou sob a coberta. Deixou escorrer um tempo, tocou-lhe os lábios levemente e disse-lhe, divertida e sem importar-se em ser ouvida:

- Palhaço!

(img: ary scheffer - os fantasmas de paolo e francesca
surgem para virgílio e dante - 1835)


26 de jul. de 2009

LIMITES


Caio Martins













(img: o beijo - auguste rodin - 1840/1917)

Chega-se ao impossível
como que chegando
às bordas dos limites
do absurdo irreversível
de envolver-se em amar
muito além do permitido...

Nessa insólita profusão
de sutilezas, jogo e risos
gestos sutis de desejo
engolimos uma bebida amarga
derrotados em loucura amena
misturando-se magias, e tantos ritos.

Jamais poderemos deslindar
essa bagunça infinita!

Só posso te dizer
que o tempo se perde, se esvai, corrói
em palavras doces e febris
dissimuladas e aflitas
e jamais doeu assim
um amor, como este dói.

13 de jul. de 2009

AMAR


Caio Martins











(img: cvm - leca98 - em "mulher, imagens e poemas")

Deixar-me de novo naufragar
fundo
nesse temerário mar noturno
de tua maneira de amar
improvisada, aos pedaços
eterno recomeçar
sem busca, sem destino.

Deixar o corpo
abusar de sua linguagem
mergulhado em tua tepidez inquieta
simples como um menino
nem um deus, nem um poeta.

Mas, no instante seguinte ao instante
de meu soçobro e teu delírio
de novo lançaria ao mar
este amor feito de nada.

Só caprichos, desatinos...

1 de jul. de 2009

O CÃO DE AVISOS


Caio Martins










(img: cvm - porta do cárcere da Central de Polícia montevideana, esquina de San José e Yi)

A estaca
estanca a corda
no caminho da rua.

Nesta madrugada em solitária
tudo foi gasto, perdido
na corrosão de mitos.

Já gritei, briguei, joguei
a sorte, a vida, a morte
preparei conspirações
quedas e ascensões.
Enjaulado
confesso ter perdido batalhas.

A estaca
estanca a corda
no caminho da rua.

Dentro da madrugada uiva um cão
louco e comovente
desde sempre preso.

Coleira, corda, portão
o caminho da rua e da vida
acenando do outro lado.
Solidarizo-me.

Sempre fui solidário
com vira-latas,
nem sempre minha mão ficou contida ...

Uiva, meu caro amigo.
Dentro da noite, noite adentro
uiva
até fundires teu lamento
ao cimento da tua estaca.

Uiva alto e a bom som
até fundirem-se, pele e couro
a coleira e teu pescoço, teu ódio
e o osso que roemos juntos.
Uiva, para a noite escutar.

De minha cela de prisão, compañero,
eu que já fui guerreiro
e já não sou poeta, mais nada
uivarei contigo
de meu poleiro.

(montevideo - 27/11/1969 - aislamento del centro general
de instrucción de oficiales de la reserva - cgior)


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