30 de jun. de 2009

RITUAL


Caio Martins
Para Márcia e Jorge.

Nada poderia ficar ao acaso, não seria justo. Passou o dia limpando a casa, cada desvão, saliência, até a exaustão. Depois foi ao mar, ficou um tempo em estado de graça, entre as ondas. Voltou a passo, memórias enfileirando-se sem pressa, num biquíni escasso disfarçado pela canga de cores fortes. Havia prazer ao respirar, o ar cálido envolvia e invadia sem arestas. Tirou sal e areia no jardim, secou-se com velha toalha verde de estimação, vestiu o corriqueiro, entrou no carro e partiu sem ansiedades.

O prazer da estrada. Aprendera cada código, cada mistério e a lidar com o imponderável com o namorado... não, não era um namorado: era seu amante, anjo da guarda sem-vergonha, seu terno dono improvisado. Chegou ainda dia, entrou abraçada com um buquê de rosas amarelas. Cortou pedacinho dos talos, pôs num vaso azul de cristal talhado e as festejou um tempo. Quando chegou cheirando a trânsito, cigarro e suor, não se deixou sequer abraçar, quanto mais beijar. Meteu-o no chuveiro, mesmo que reticente e, até, de péssimo humor.

De novo na estrada, rosas cuidadosamente embrulhadas no banco de trás, em companhia de uma bolsa com um potinho de mel, um vinho raro, o frasco de óleo de oliva e um vidro com coisicas como sal gema, pedras de incenso, mirra, lavanda seca, além de três grossas velas azuis, curtas. Ele ficara amuado, calado, coisa esperada. Cheirara as rosas, quisera meter a mão nos trecos, ainda tentara abraçá-la, porém, fora vencido. O prazer do jogo. Meio do caminho, lua despudorada iluminando a serra e, muito abaixo, a planície até o mar, quebrou-se o silêncio.

- Pode me dizer que é que está armando? Eu conheço essa cara... Pode?
- Não! Ainda não aprendeu que gosto de silêncio de vez em quando?
- E você ainda não aprendeu que tenho bronca com surpresas? Pra quê complicar?

Já na casa, desfez-se a incógnita. Centrados, ajoelhados nus sobre uma esteira e cercados pelo equilátero das velas e pelas rosas, ficaram um tempo em silêncio. Ao ver os trens, ele entendera, falaram há tempos dessas liturgias. No alguidar de barro, as brasas tiravam perfumes dos cristais, raminhos e resinas. Entre os dois, potinhos com os outros elementos. Beberam vinho da mesma taça. Deu-lhe uma pedrinha de sal, recebeu outra, tocou-o suavemente na testa, lábios, no peito, no sexo com o azeite. Recebeu os roces de volta, depois foi o mel e beijos como de mar, vezes.

Pela lua, ou pela luz azulada das velas, ou por raríssima energia, cercaram-se de rarefeita luminescência. O cenário, a memória dos corpos, a paixão e emoções acariciadas como se dançassem tango, os levou a terem-se como futuras divindades cibernéticas, como demônios primitivos gregos, enfim, como singelos animais. Exaustos, fartos, frouxos, enroscados livres sobre a esteira, derreteram-se em mansas carícias e intermináveis olhares. Beijou-o sobre o coração e, num repente felino, mordeu forte, até sangrar. Não reagiu. Retesou-se, o grito travado e a mão no ar.

Já quase dia, uma corruíra estrilando pelo jardim, entrou no carro e partiu. Deixou-se nua e quieta na esteira, olhos grudados no teto, até que desolada, mas, com doce alívio nas veias. Tudo findaria ali, num improvável ritual de nunca mais.

(trecho de “zero hora: um anjo perdido" - 1999.)
(img: brocado rosa - acrílico sobre tela- fabian pérez).


21 de jun. de 2009

AMOR


Caio Martins
Para Cristina Lima











(img: "janaína/cvm" - augusto coelho)

Com rara artesania
neste lugar
que nos conhece tanto
o amor armou seu canto.

Magoados, abertos, tontos
não houve mais pranto
só a sensação penetrante
de uma tragédia de bar.

Meu deus, Cristina, que cenário!

Os músicos não mais tocaram
calou-se o vozerio
e o garçom, ponta-de-pés
mantinha o ar estacionário.

Sorriam? Nada víamos...

O amor semeava e colhia
luzes sombrias em nosso olhar
e os olhares gerais recolhiam
traços de mel, e espanto, e sal.

Tudo, nunca mais
seria igual...

Só esse amor, morto num canto...

(penã cauan - julho de 87)

19 de jun. de 2009

O MATO


Caio Martins


Cercado, meteu-se na mata, serra acima. Tirou do carro quebrado e furado de bala apenas a chave de roda, um tapete de borracha, alguns metros de corda de náilon e documentos. No chaveiro, um antigo canivete. Era o que precisava. Não sabia quem eram os perseguidores, mal os vira quando o fecharam com um caminhão velho e, sem aviso, passaram a atirar. Não atinava com motivos, assalto não fora, naquela estradinha safada que ia do nada a lugar nenhum, nela entrara achando que cortaria caminho até alguma via principal.

Não tinha tempo para recriminar-se. Quando ocorre o desconhecido, há que buscar o que se conhece. Num lance entre pedras, já bem acima, viu o caminhão e um carro chegando, os homens saindo de armas na mão. Um deles levava uma carabina. Olharam ao redor, encontraram o rastro, dois ficaram e cinco vieram atrás. No trecho a mata se adensava, havia uma trilha. Desfez, nela, suas marcas com um ramo e meteu-se nas brenhas. Não brigava com as plantas e o terreno: deslizava entre eles.

Sempre para cima, sabia que tinha poucas horas até o fim do dia. A cada fio d’água, bebia o que podia. Avançava devagar, precavido. O perigo maior era uma coral, uma jararaca, jaracuçu, escorpião, correição de formiga, um ninho de quenquém rajada, bichos. Conhecia bem as matas e nada temia, estava em casa. Empurra daqui, rasteja dali, desvia do outro lado, volta e contorna, vai ganhando terreno. Para em intervalos, ouvidos atentos, olhos fechados. Só havia o canto dos pássaros e o zumbido dos insetos. Tinham-lhe perdido o rastro.

Num trecho denso, encontrou a raridade de um jequitibá esguio e muito alto, coberto de cipós desde o topo. Atou as tralhas, buscou o caminho e alcançou a copa, já morrendo o dia. Vistoriou e não havia vizinhos perigosos. Amarrou-se pela cintura e em três pontos dos galhos, o tapete por baixo de encosto, testou o esquema e aprovou. Já passara o medo, o susto. A questão era o porquê. Remexeu cada dia da vida, durante a noite, buscando algum erro, injustiça ou atitude que merecesse ser punida com morte. Nada. Muito longe, clarões denunciavam cidades.

Acordou com a passarada, fim de madrugada fria, mijou no tronco, tirou insetos das roupas. Ali, ele era a comida. Tremia um pouco, ao descer, meio dolorido. No lusco-fusco, acertou o rumo pelo clarão do sol, seguiu noroeste em marcha batida. Ouvia, de muito longe, um rumor permanente. Devia ser a rodovia. Viu um canudo curto saindo de um tronco e comemorou: abelha jataí. A chave de roda foi providencial. À frente, cortou um palmito, achou larva de pau, depois um fio d’água. Fartou-se. Deu graças ao sargento que queria matar, quando no exército.

Meio do dia, ajeitou o tapete num claro e deitou-se. O ruído da rodovia, próxima, o incitava a apressar a caminhada, a razão mandava esperar. Vendo um pedaço de céu, ouvindo o barulho do vento e, de repente, como se lhe caísse um galho na cabeça, atinou: a morena. Há dois dias parara num posto, na barraca de caldo de cana estava a moça linda, que com ele se encantara; pegara um quarto na pousada dos caminhoneiros e, lá, fora a noite de delícias. Ela pouco sabia das coisas. Seriam os irmãos, o pai, namorado, vai saber.

Andou, durante a noite, vários quilômetros até chegar a uma cidade. Lavou-se no posto, comeu, comprou uma mochila, alguns equipamentos úteis e comida em lata. Fez caminho contrário na pressa, de manhãzinha já tocaiava. Conta ao moço da cidade, rindo das memórias de tanto tempo, que, no momento certo, achegou-se ao balcão. Atrás, a morena triste. Fora surrada. Ela confirma, diz que largou tudo e, com extrema cautela, pegaram a estrada do nada para lugar nenhum e sumiram no mato.

(apiaí - dezembro de 1986/2009. img: vale do reibeira - adriano gambarini .)

13 de jun. de 2009

O VELÓRIO


Caio Martins

Tanto tempo passado e continuava a angústia e o sobressalto ao toque do telefone, ou ao abrir o correio eletrônico; de noite, então, piorava. Os sonhos insistiam, mudavam somente cores e cenários, ela nos meio-tons de cinza e semitons dos sons de cordas desafinadas. Ah!, mas não era durão, já não trocara chumbo com bandido, terçara faca com psicopata, saíra sozinho na mão com meia-dúzia (enfim, um tranca-ruas ainda que bem intencionado)? Agora, caído naquele estado lamentável de paixão desgraçada e degradante, amando em seco, a auto-estima em cacos...

De um lado a TV muda, de outro o som sem imagens do estéreo com Tchaikovsky e a Entrada 1812 pela Filarmônica de Berlim. Coisa fina... Na frente, a telinha do PC. Nela, a imagem de olhos e cabelos negros, traços severos, seios líricos, o corpo em curvatura felina, longos braços e pernas e pés e mãos de joalheria. No peito o aperto, nos olhos a lágrima na boca do destape, mudou o fundo de tela. Deixou sóbrio cinza. E foi aí que aconteceu o desastre: o telefone tocou. Um choque, como raio, correu do peito ao cérebro. Respirou fundo, os canhões disparando, na música.

No repicar dos sinos, a Bastilha tomada, pegou o aparelho. Era ela. Cancelou a sinfônica, perguntou-lhe o nome bestamente, a porcaria da voz tremelicando ao tentar impostá-la. Seca, disse que lhe morrera a mãe, onde e a hora do velório, exata como equação linear. Destravou-se e transmitiu-lhe a pena que sentia. Gostava da ex-sogra. Perguntou-lhe se estava bem, ela disse ser dura e firme, agüentava bem as cacetadas da vida. Perguntou-lhe se queria que ele fosse. Respondeu que a mãe gostava muito dele, qualquer coisa menos que sim. Disse, assim mesmo, que iria.

Inícios da manhã entrou no local. Abraçou um que outro no caminho, nem viu como e estavam frente a frente, esbranquiçados. Deu-se um abraço longo e intenso, colado, quando soluçou ela pediu-lhe que não chorasse. Murmurou que não era pela ex-sogra, mas por ela. Como, sentindo-lhe o cheiro e o calor, os braços a enlaçá-lo sem pejo, de amante, outra coisa seria? Sentiu-lhe um estremecimento, soltou-a. Pessoas da ex-família vieram, não o viam desde a separação, queriam lamentar-se, saber dele, contar-lhe estórias. Suportou, sufocado, umas duas horas falando de banalidades.

Então, algo rasgou por dentro. Evitara ficar perto ou mesmo fitá-la, mas naquele momento o fez. Viu-a miúda e encolhida, tensa, nos mesmos tons de cinza dos sonhos. Nada a ver com a sensualidade do plano de fundo do PC, ou dos delírios dominantes até se com outras mulheres. Alegou compromissos e despediu-se polidamente de cada um. Enfrentados, novo abraço denso, agarrado, sôfrego, agora com platéia patética e hipnotizada na frente do espetáculo, passaram a milésimos de beijo indecente. Ele, amarelado, em fuga. Ela, enrubescida, quiçá na beira da asfixia.

Disse amar, pediu-lhe que o deixasse ir. Partiu impávido, sem olhar para trás. No trânsito, deu estrondoso berro dentro do carro, catando-se os cacos sem glórias, heróicas lágrimas lavando-lhe a honra e a memória. Naquele velório enterrara uma ilusão, despedira a esperança, cortara definitivamente os laços, achava-se, enfim, liberto!

Ao menos, até o próximo telefonema...

(img:cvm/cris/0702)

12 de jun. de 2009

CANÇÃO À AMIGA


Caio Martins
Para Jane Vieira.










(img: marte, desarmado por vênus, cupido e as três graças - jacques louis david - 1822)


Vem, amiga!

Eu te espero lançado
entre a angústia e a desolação,
entre a solidão e a dúvida, quieto
pelas sombras de teus caminhos.

Pousa teu corpo em meu corpo
descansa tua face em meu ombro
deixa-me desmanchar teus cabelos
com carícias bobas, de brinquedo.

Leva-me a vida, deixa
que em teu sentir eu me consuma
até restares lívida, pálida
rosa que perdeu o sangue.

Após tua ida embora, sem apelos
o mundo que se exploda, desatine
quando não mais te puder enlaçar
no cansaço deste amor inconsequente.

Fica
em minha desconformidade qual criança
que se alumbra ao som do próprio coração
cismada, desconexa, expectante.

Vem, amiga!

Lança na noite teus receios
absorve meu corpo em teu corpo
deixa que eu te viva doídamente
num momento de ternura...

Nova Friburgo. 13/02/1968.


8 de jun. de 2009

SÁBADO


Caio Martins
(trecho de “zero hora: um anjo perdido” 1996.)


Perdido depois de dramática separação, cultivou seu luto alguns meses. Então, um passo após o outro, Daniel começa a se reerguer, forçado por amigos atentos que não o deixam só. Volta ao emprego, restaura o apartamento, encara alimentação, exercícios e rígida rotina de tempos. Quando Letícia, agora tão longe, quer assumir-lhe os pensamentos, fala com pessoas queridas não importa a hora, amigos são para isso. Neste sábado concorda em sair à noite, talvez suba ao palco e diga poemas que, antes do desastre, emocionavam encontros e solidões. Está temeroso mas, feliz.

É esse homem assim renovado que, por volta das vinte e três horas, entra no bar onde fora personagem querida e habitual. Amigos e conhecidos, especialmente convidados, confraternizam-se e deixam-no mergulhar no ambiente alegre e reconfortante, pleno de intenções, onde reservou-se o direito e meios de demonstrar satisfação, atenção e generosidade. Meio da noitada, a balbúrdia correndo solta, pedem-lhe que declame Vinícius de Morais. É bom, nisso. Não escreve um verso, mas vive os do Poeta como se fossem seus.

O público silencia, etéreo músico inicia improvisos dissonantes ao violão, fica um foco de luz frisando a figura fantástica e seus fascínios: Daniel iridescente, sensibilizado e cego diz cada palavra com o frêmito de nela acreditar, incorpora O Poeta e é magistral em cena. Tons de voz, ênfases, expressões, gestos corporais dão-se com a força e naturalidade de limites tocados e não forçados. O álcool faz o resto, a platéia embevecida é todo o público frequentador que aplaude, aplaude e aplaude... “- Porque hoje, é sábado!”...

Voltando para a mesa, esfogueado e secando o suor muito e lágrimas poucas, é abraçado freneticamente por uma amiga, que diz-lhe ser um monstro, o máximo, o melhor que já viu, lambuza-lhe o rosto e pescoço a beijos, antes de ser delicadamente afastada. Os comentários são gratificantes, sabe ter atingido cada qual a fundo. O êxito causa-lhe intenso bem estar. É quando a amiga volta, puxando jovem mulher pela mão.

- Daniel, esta é uma amiga que quer conhecê-lo. Lauma: Daniel! Daniel: Lauma!

Nariz arrebitado, boca franca de doce sorriso, negros cabelos trançados com fita azul, o traje negro, negros olhos curiosos, talhe delicado, Lauma é beijada três vezes na face:

- Não é para casar, não! É porque gosto de beijar mulher bonita...
- Obrigada! Gostei muito do que você fez! Depois vou lhe mostrar uma música...

- ... ela canta igualzinho à Elis!...
- ... e espero fazer por você o mesmo que você fez por mim...

Não pode terminar, puxam Daniel para outra mesa, alguém começa a cantar. Música, agitação e vozerio diluem existências pessoais. Lauma vai para a pista com as amigas, desentende-se do grupo e deixa-se levar pelo som como se em transe, bailando só, instintiva. É boa nisso, o dom da dança equivalendo-se ao dom da palavra, sucessivamente as pessoas vão parando, abrindo um claro, o som é nitidamente latino, tumbadoras em salsa encantada. Na coreografia, improvisa e inventa; olhos fechados, lábios entreabertos, vertigem de roupas negras, a fita azul esvoaçando e braços nus seduzem inclusive os músicos, até então apenas preocupados em cumprir horários. Desperta, para, e é festivamente aplaudida.

Há encabulamento no sorriso parco da boca linda, deixa-se abraçar e beijar sem resistências. Ao líder da banda, que a quer como bailarina, após ouvir entusiástica rasgação de seda pergunta se pode cantar. Escolado, a leva até o teclado e põe-na à prova sem microfone, sob pretexto de acertar o tom. Detesta amadores. Encanta-se e é ao som da voz absoluta e cristalina, macia e aconchegante de Lauma que a noite se encerra. Homenageia Elis fechando com “Quem quiser falar com Deus” num timbre próprio, macio e de comovente intensidade. Finda-se, enfim, o espetáculo, fecha-se o bar e cada tribo sequestra seus pares, para a entrega em domicílio.

Uma com Vinícius, outro com Elis, vão-se para suas madrigueiras com seus ídolos mortos, planetas sem eira nem beira, saídos da madrugada do sábado para a solidão do domingo.

(img: estudio para monica, de fabián perez) (Vale a pena conhecer!)

3 de jun. de 2009

CATEDRAL


Caio Martins











(img: cvm - sé catedral da guarda/portugal - liv tyler )


Teu corpo, templo
de transformadas pedras
em mitos triturados,
imbricado átrio, nave
de convulsa arquitetura
côncavos, convexos
secretos passadiços...

Estratificas heresias
em cânticos calcários
mas, somente transformada
em águas, declinas
meu corpo adjacente
irrompendo em góticos
estigmas de mulher...

1 de jun. de 2009

ROTINA


Caio Martins

O apartamento era simples, espartano. A janela da sala, de canto a canto, dava para o Norte. A parede Leste recobria-se de pano cinza-chumbo, na Oeste a cor era azul escuro. Ao Sul havia mesa de imbuia maciça, seis cadeiras artesanais e um grande armário de aço cinza. Sobre o piso de tacos, grandes chapas de papelão branco, aparentemente em desordem. Um aparador de fórmica separava as metades da sala, pelas laterais havia equipamentos novos e antigos. Cheirava a casa de fazenda, haveria um bolo no forno.

Enquanto esperava, observava cuidadosamente o ambiente. Dissera-lhe para ali estar antes das onze, teriam hora e meia para trabalhar. Uma assistente, quase uma menina, media a luz com um fotômetro. O outro limpava lentes na mesa dos fundos, em meio a pincéis, flanelas e um aspirador pequeno e barulhento. Quem pensasse em encontrar holofotes, refletores de guarda-chuva, focos de luz-do-dia, nada acharia: nem um flash de torre, sequer. Não sabia por que a escolhera para a revista, nem mesmo perguntara. Seria um bom dinheiro por pouco tempo de câmara.

A menina foi depressa para o quarto da direita, transformado em escritório. Ele veio limpando óculos, barba desgrenhada, meia camisa fora das calças e a eterna cara de papai-noel. Sorriu-lhe, pediu que viesse à luz da janela. Olhou-a de alto a baixo, sussurrou-lhe que fosse ao escritório, tirasse blusa e sutiã, vestisse uma camisa branca masculina de tecido leve e prendesse os cabelos num coque de bailarina, além de limpar a maquiagem. Voltou em minutos, para a escada de três degraus e plataforma na parede Oeste. Encantava-se com o rigor do preparo da seção.

A mocinha rondou, com o fotômetro na mão e fazendo anotações. Espalharam a cartolina em volta, algumas folhas inclinadas. O sol de fim de outono batia de Nordeste e viu-se envolvida numa estranha luz. Disse-lhe que desabotoasse a camisa até o quinto botão, e fizesse exatamente o que ele mandasse. Respiração, umedecer ligeiramente os lábios, postura reta sem forçar, olhar em frente, rosto ligeiramente de lado, mãos nas coxas, braços soltos. Seguia as ordens sem pensar, duas máquinas clicando intermitentes e a menina cantando números. Sentia-se bem, gostava.

Ouviu-o pedir as veteranas Hasselblad e a Pentax para preto e branco; flashes leves dirigidos ao teto quase não eram percebidos. Disseram-lhe que podia descer. Foi ao quarto-escritório, repôs as roupas e voltou. Na mesa, cafezinho feito na hora e bolo de fubá com erva-doce. Todos falavam ao mesmo tempo, sentou-se, recebeu elogios, ele dizia que tinham aproveitado ao máximo o momento mágico. A luz, garantia, naqueles instantes de horário revelava, mais que a imagem, a essência, a alma das pessoas. Segundos a mais, segundos a menos, todo o trabalho estaria perdido.

De repente, o silêncio baixou. Os assistentes foram desmontar o cenário parco e passar as fotos para o computador. A menina disse que revelaria as P&B e trancou-se no banheiro, na porta um aviso: “Não abra! Perigo de vida!”. Estendeu a mão fina e delicada pela madeira escura. A mão pesada a envolveu com carinho. Olhos nos olhos, assim permaneceram um tempo. A menina, saindo do banheiro-laboratório, quebrou o encanto, dizendo entusiasmada que saíra linda de morrer... parou, olhou uma e o outro, várias vezes.

- Vocês são uns cretinos, ‘tá? Toda vez é essa merda... Posa logo, pô! Se casem, juntem os trapos de uma vez... Que saco! Pior que criança, meu!

Ele inclinou a cabeça, coçou a barba. Ela olhou para o forro.

- Vai posar nua?
- Não! Nunca!
- Então, não caso! Cacete!
- Está ótimo! Nem que fosse o último fotógrafo no mundo!

Os assistentes se foram em seguida. Aquilo iria longe. Discutiriam a tarde inteira, se amariam perdidamente, sairiam para jantar, a levaria para casa e, novamente, nem se casariam, nem a fotografaria nua. Rotina da última dezena de vezes em dois anos.

(img:cvm -denise297-2002)

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