25 de mai. de 2009

PROMESSA


Caio Martins

Leu algumas vezes o e-mail atrevido e impertinente, mesmo desaforado. Moça de pungente romantismo atávico e fora de moda riu, contudo, da provocação descarada e explícita. Aquele sujeito era atípico, das entrelinhas fluíam sensações de zelo, cumplicidade e afinidade sem gênero, mas sonhadas desde a existência de pessoas. Sabia de há muito que a amava, por ela faria qualquer loucura, na paz e na guerra. O ridículo da situação retratou-se-lhe numa antiga letra de bolero brega: “- quem eu quero não me quer, quem me quer, mandei embora...” . Ele? Não ia!

Não se tratava de sexo somente. Num tempo de materialismo exacerbado e informação irrestrita, havia manuais para uso de qualquer máquina, em qualquer atividade; puxa daqui, cutuca ali, lambe de lá, estica do outro lado, enfia acolá, enfim, nada mais era segredo, para o melhor e o pior. Era, isto sim, a questão eterna de sentimentos além da razão, das ciências e crenças, dos instintos e das probabilidades. Das possibilidades, ainda que num tempo permissivo e caótico onde qualquer doidice tinha defensores. Não era o caso, agora.

Tudo contra: era boêmio e briguento, imprevidente e irresponsável, mulherengo e cachaceiro, abusado e, complicando o cenário, poeta... O desgraçado escrevia feito um deus, brincava com palavras desconsideradamente, rápido feito um bombeiro em frases nas quais o que parecia não era, e o que era não parecia. Difícil, lidar com um homem sempre metido em entrelinhas e que arrastava, na vida, baú de histórias terríveis e sublimes, de vitórias e derrotas incredibilíssimas, de sedução e confronto com um batalhão de mulheres.

As conhecera, quase todas. Quase todas dedicaram-lhe velado ciúme imemorial e instintivo, sem que jamais, aparentemente, algo houvesse feito para merecê-lo. Talvez, só a simples existência justificasse, de menina a mulher sempre tímida, recolhida, recatada e indisponível, ao contrário delas, sempre de caráter e atitudes fortes, apaixonadas e beligerantes. Fora amado, o mandrana feioso e aventureiro... Vem-lhe ao palco, subitamente, a clássica obra Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, século XVII. Busca na Internet.

Cyrano é um herói romântico, que combate a covardia, a estupidez e a mentira”, calcado na vida de escritor boêmio e espadachim com mais de mil duelos. Ele ama sua prima, Roxane, que fruía ao ser cortejada com palavras bonitas e originais, e sofre profundamente por achar-se feio e indigno do amor da moça. Só ao morrer ele, em seus braços, descobre que o amara, sim, uma vida inteira, até através de outros. Suspira fundo, olhos marejados. Clássicas lagrimitas de terna tristeza correm pelas arestas do pentágono do riso e da dor; sufoca um soluço.

Lê novamente a frase crítica do e-mail: “... amo você desde sempre, não importam razões, soube conviver minha vida com esse amor que me incinera, e quero que o mundo se foda! ”. Rebelara-se, no final. Sentiu-se leve, quase feliz, mesmo vaidosa. Seguiria especial além do tempo, para o finito e terno tranca-ruas, como desde a longinqua vez em que assustada, jamais se explicara, nele se roçara sensualmente e lhe cravara, mais que um olhar expectante, laços eternos de cumplicidade cada vez mais forte e transparente. Outra lagrimita, sob a sinfonia de um suspiro de cortar pedra.

Nesse imbróglio medieval, exaustivamente clássico, abre o e-mail de resposta e num lance, sem pensar ou refletir, escreve aleatória e manda, com um mísero e único beijo:

“Não te preocupes, amado meu: levarei tuas cinzas ao mar...”.

(img: leca99 - cartaz de cyrano de bergerac)

8 comentários:

  1. A promessa vale. Afinal, "o mar é o único local digno de sepultar um almirante batavo." Semelhante ao herói do texto.
    Abraços.

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  2. Ficou tudo no ar, morreu? Não morreu? Só jogo de cena e resposta da menina na mesma altura do fulano (amor que "incinera" e ela diz que não tem grilo, joga as cinzas no mar)? Dá pano para qualquer manga do jeito que está, mas morri de pena do Cirano no filme, ainda mais com o feio-lindo Depardieu. Escreveu uma história muito complicada mas que mexe com a gente.

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  3. Guilherme Jr.26/5/09 16:01

    Duas palavras definiriam o conteúdo: incinera e cinzas. Mas o suspiro de cortar pedra e a disparidade de índoles formam um mar de dúvidas, como diz a Talita. Talvez explique-se tudo com a ilustração, já que uma imagem fala mais que mil palavras...

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  4. MILTON MRTINS26/5/09 19:41

    Caio
    Comprendi bem o significado de crônica e a relação que faz com Cyrano de Bergerac. No final, pelo e-mail de resposta,uma proposta de amor eterno ou enquanto dure:
    "Não te preocupes, amado meu: levarei tuas cinzas ao mar...”.
    Bonito. Milton Martins. Piracicaba

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  5. Cris Dunch26/5/09 23:56

    Que cumplicidade! Cyrano e Roxane somos todos nós num dado momento da vida. Ele sabe que ela sabe e vice-versa, o que parece não ser jogo tem matizes de refinada inteligência. Muito sentimento, até na brincadeira. A rsposta estilo tragédia é tão truncada que não se sabe mesmo se ele morreu ou é só duelo de palavras num jogo fechado. Riquíssimo! Bjs.

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  6. Jacy FMoreira27/5/09 01:23

    Recebi mensagem do Ferreirinha (o do bode sem cabeça que corria atrás das moças) e vim ver. Tu tem mais mão pra cronista que redator de discurso político. Também com bichim assim até mandacaru vira capim-santo, mais não é? Bem contado e acho mais é que é para cada um lembrar da prima ou primo que deu aquela apaixonite um dia que dessa ninguém escapa, não é não?

    Moreira, de Campina Grande.

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  7. João Oliveira T.28/5/09 14:05

    Caião,
    você descreve paixão crônica das brabas na crônica e faz vazar sentimentos. A história de Rostand é universal mas trágica mas aqui temos a comédia fina, sutil e inteligente. Os personagens são marcados e opostos em tudo menos nos laços já antigos levados de maneira leve e com cumplicidade, e o mundo que se dane (ou f... como diz o primo). É capaz mesmo dela levar cinzas ao mar um dia, mas na situação revela muito bom humor. A imagem de ilustração não poderia ser melhor,linda mulher. Observei que não há a dele, a heroina da história é ela. Ele é só o pretexto e os atores somos nós, como disse a Dunch. Também lembrei algumas histórias com essa crônica como todo mundo e fiquei emocionado. Como disse o fqualma,cê é f..da, cara! Nunca pare de escrever. Já pagou caro por isso.

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  8. Margot Saint'Anne - RJ1/6/09 00:04

    Cena VI - Cyrano agoniza e ela pede às freiras que ajudem:
    ...
    ROXANE, se relevant pour appeler
    - Ma soeur ! ma soeur !CYRANO, la retenant
    - Non ! non ! n'allez chercher personne ! Quand vous reviendriez, je ne serais plus là. Les religieuses sont entrées dans la chapelle, on entend l'orgue.
    Il me manquait un peu d'harmonie... en voilà.
    ROXANE
    - Je vous aime, vivez !...

    É o momento mais lindo da peça.

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Na busca da excelência aprende-se mais com os inimigos que com os amigos. Estes festejam todas nossas besteiras e involuímos. Aqueles, criticam até nossos melhores acertos e nos superamos.

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