29 de mai. de 2009

CANÇÃO ACRE PARA LILIANE


Caio Martins
02/02/1968 - Largo de S. Francisco.









(img: cvmO9 - jailson james -XI/O8.)


Ainda eu era menino
botar na linha quiseram.

Não deu certo...
ganhei sermão e pancada.
Desistiram, deram pra rezar.

Sei não, Liliane
mas rezaram errado
nenhum deus me cumprimenta.

Num canto estás
quieta e calada
nua.
(Meu deus, que vergonha!)

Rimos,
não nos deciframos.
(Para quê? Alguém
fugiria com os mistérios...)

Liliane
soltaram a canalha nas ruas
ouvidos secretos soldados
gente rezando errado
com medo de gente nua.

Te dedico meu segredo:
o deus que nos espreita
feroz, violento, forjado
meteria bala de aço
em meu peito aberto
truncado.

Uma bala de chumbo
uma bala de ouro
uma bala...

O resto, Liliane
está guardado na impaciência
de meus atos libertários
armas e livros clandestinos
e nas estórias em que eu,
menino,
alumbrado por tua nudez
desconcertado
sonhava .

25 de mai. de 2009

PROMESSA


Caio Martins

Leu algumas vezes o e-mail atrevido e impertinente, mesmo desaforado. Moça de pungente romantismo atávico e fora de moda riu, contudo, da provocação descarada e explícita. Aquele sujeito era atípico, das entrelinhas fluíam sensações de zelo, cumplicidade e afinidade sem gênero, mas sonhadas desde a existência de pessoas. Sabia de há muito que a amava, por ela faria qualquer loucura, na paz e na guerra. O ridículo da situação retratou-se-lhe numa antiga letra de bolero brega: “- quem eu quero não me quer, quem me quer, mandei embora...” . Ele? Não ia!

Não se tratava de sexo somente. Num tempo de materialismo exacerbado e informação irrestrita, havia manuais para uso de qualquer máquina, em qualquer atividade; puxa daqui, cutuca ali, lambe de lá, estica do outro lado, enfia acolá, enfim, nada mais era segredo, para o melhor e o pior. Era, isto sim, a questão eterna de sentimentos além da razão, das ciências e crenças, dos instintos e das probabilidades. Das possibilidades, ainda que num tempo permissivo e caótico onde qualquer doidice tinha defensores. Não era o caso, agora.

Tudo contra: era boêmio e briguento, imprevidente e irresponsável, mulherengo e cachaceiro, abusado e, complicando o cenário, poeta... O desgraçado escrevia feito um deus, brincava com palavras desconsideradamente, rápido feito um bombeiro em frases nas quais o que parecia não era, e o que era não parecia. Difícil, lidar com um homem sempre metido em entrelinhas e que arrastava, na vida, baú de histórias terríveis e sublimes, de vitórias e derrotas incredibilíssimas, de sedução e confronto com um batalhão de mulheres.

As conhecera, quase todas. Quase todas dedicaram-lhe velado ciúme imemorial e instintivo, sem que jamais, aparentemente, algo houvesse feito para merecê-lo. Talvez, só a simples existência justificasse, de menina a mulher sempre tímida, recolhida, recatada e indisponível, ao contrário delas, sempre de caráter e atitudes fortes, apaixonadas e beligerantes. Fora amado, o mandrana feioso e aventureiro... Vem-lhe ao palco, subitamente, a clássica obra Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, século XVII. Busca na Internet.

Cyrano é um herói romântico, que combate a covardia, a estupidez e a mentira”, calcado na vida de escritor boêmio e espadachim com mais de mil duelos. Ele ama sua prima, Roxane, que fruía ao ser cortejada com palavras bonitas e originais, e sofre profundamente por achar-se feio e indigno do amor da moça. Só ao morrer ele, em seus braços, descobre que o amara, sim, uma vida inteira, até através de outros. Suspira fundo, olhos marejados. Clássicas lagrimitas de terna tristeza correm pelas arestas do pentágono do riso e da dor; sufoca um soluço.

Lê novamente a frase crítica do e-mail: “... amo você desde sempre, não importam razões, soube conviver minha vida com esse amor que me incinera, e quero que o mundo se foda! ”. Rebelara-se, no final. Sentiu-se leve, quase feliz, mesmo vaidosa. Seguiria especial além do tempo, para o finito e terno tranca-ruas, como desde a longinqua vez em que assustada, jamais se explicara, nele se roçara sensualmente e lhe cravara, mais que um olhar expectante, laços eternos de cumplicidade cada vez mais forte e transparente. Outra lagrimita, sob a sinfonia de um suspiro de cortar pedra.

Nesse imbróglio medieval, exaustivamente clássico, abre o e-mail de resposta e num lance, sem pensar ou refletir, escreve aleatória e manda, com um mísero e único beijo:

“Não te preocupes, amado meu: levarei tuas cinzas ao mar...”.

(img: leca99 - cartaz de cyrano de bergerac)

21 de mai. de 2009

CORPOS


Caio Martins










(img: cvm - leca99 - “mulher, imagens e poemas”.)

Sempre
a mesma bebida amarga
essa distância imprudente
impudica e reticente
as frases largas de sempre.

Como se não houvesse
nas mesmas taças
o mesmo vinho
o mesmo veneno sutil
esperando em nossas veias.

Tudo seria tão fácil, transparente
se dos corpos em estilhaço, os copos
falassem sua linguagem sólida
sem espantos nem encantos
frágeis como metais.

19 de mai. de 2009

O BAIRRO E A BRUXA


Caio Martins

Há bairros que ainda são bairros, as pessoas ainda se saúdam, amiúde trocam comidinhas, cebolas, açúcar e muito mexerico. Ainda se casam entre si e são ligeiramente agressivos com estrangeiros. De certa maneira, tratam de proteger suas fêmeas, machos e crias, ante a imponderável ameaça que oscila nas fronteiras desde as ruas tal e tal. Lauma ama o bairro. Nascera dali. Manhã cedinho dessa sexta-feira, na porta da padaria, um alienígena sorve lentamente o seu café e dirige olhares pecaminosos para as mulheres que passam. Cada uma é devidamente desvestida, exposta pelo olhar morno e concupiscente ganhando, queira ou não, uma gracinha para estragar-lhe a manhã.

É nessa hora que estão presentes os comerciantes do lugar, seus funcionários, eventuais bêbados matutinos e a macharia local em peso. O alienígena não percebe os brilhos de pontas de faca nas miradas e, ousado, impecável no terno cor de vinho, a camisa creme pespontada suportando inacreditável gravata vermelho-sangue matizada de azuis, sapatos brevemente índicos ostentando insuportáveis fivelas douradas, a pasta imitação de jacaré, a xícara segurada no melindre das pontas dos dedos com o mindinho apontando o infinito, os óculos escuros estilo Matrix reforçando os cabelos estilo idem, enfim, tudo isso de otário e mais algumas coisas não perdoa representante do sexo feminino de menos de vinte anos que por ali passe. O concentrado de cafajeste gosta de piteuzinhos... Nem vê que o perigo ronda.

Nisso, devagar, vem Lauma pela ladeirinha, mansa-mansa, subindo com o sol da manhã que lhe põe brilhos nos olhos e acaricia. Sabe que ao passar pela padaria ouvirá coro de bons-dias, um que outro fiu-fiu e o Portuga a pedirá em casamento de alguma forma criativa e original. O camoniano ensaia sempre uma forma diferente na expectativa, talvez, de pegá-la desprevenida. Vem, e é bela nessa luz, atrás deixa perfume exótico muito sutil, entre capim molhado, manacá-da-serra e maciez de sexo. O alienígena vê a mulher, sorve golico de café, raspa a garganta. Tem bela voz, modulada, como convém a um vendedor. No instante em que ela cruza a escuridão dos óculos matrixianos, a gravata ridícula e pênis ligeiramente pulsante, escapa-lhe a temeridade:

- Tesão!... – e Lauma dá mais um passo, vira-se inteira olhando-o divertida, mas dura, nos olhos ocultos espantantes, o balaio de machos agitando-se-lhe pelas costas e, com voz clara, de meso-soprano, estampa-lhe a resposta contundente, vibrante clarinada a sacudir a manhã:

- Dá o cu que passa!

O pedaço de otário engasga-se, o último gole é da camisa, a galera explode em gargalhadas e aplausos, guardam-se facas e porretes. Deposita a xícara no balcão, paga rapidamente, retira-se com os risos e vaias mordendo-lhe o rabo, apoiados por agudos assobios e muito palavrão. Lauma curva-se à platéia e segue seu caminho, medindo passos miúdos nos saltos altos, belas pernas e redondezas, reentrâncias et cetera dançando suavemente em harmonia com o vento, o barulho do trânsito, a energia cósmica universal. Não ousasse, alguém, estragar aquele espetáculo de todas as manhãs...

Protejam festa para a noite, a frase “sabem o que a Lauma fez?” percorre o bairro. Quando volta, findo o dia, é cercada, pique-piques, aplausos, metem-lhe na mão um caneco de cerveja. O Portuga Manuel, de quase oito lustros, pespega-lhe sonoro beijo nas bochechas, ganha um na boca e quase morre de enfarte. Aparecem instrumentos e pedem- lhe que cante, bêbados e equilibristas sacudindo a vizinhança. Desfilam, horas, o relicário da flor e a nata da MPB.

O pagode só se extingue pelas duas da madrugada, quando um vizinho mal-amado chama a polícia, perdendo-se o mais etéreo da noite pelas amarguras e neuroses de algum desventurado. Mas Lauma explode com Gonzaguinha, cantando a vida e a pureza da resposta das crianças e só então vai para a toca, escoltada por muitos bêbados, os músicos, três soldados da Polícia Militar e uma imensidão de desejos. Não sabem, mas está só, já recolhida na própria intimidade, saboreando ainda o dia, a sensação gostosa de poder, da posição de mulher acima dos meros mortais que sempre, abobados, aplaudem. Pesadelo do mulherio não convidado para quem é, então e para todo o sempre, uma bruxa, uma cadela...

(img: cvm-denise291. trecho de “zero hora: um anjo perdido” 1996)

16 de mai. de 2009

TAINÁ


Caio Martins









(img: cvm - tainá/2002).


Não, não pensarias
ousada, com usadas
omissões dispersas
justificar as tuas graças.

Perderias tempo, bailando
como quem caça
num passo estravagante
febril e involuntário.

No fim, como quem dança
destrói os medos da platéia
terias, talvez, ares de rainha.

Mas, no teu momento solitário
nunca estarias tão só
tão linda, e tão plebéia.

10/11/2002.

O TROCO


Caio Martins

Se amavam de paixão ou apaixonavam de tanto amar, não fazia diferença. Brigaram no meio da rua destrambelhados e do amor se fez bronca tal, que nada viam ou ouviam, senão as vozes ardidas e olhos esbugalhados, palavras ásperas voando feito facas. Intriga da amiga, a loira que não lhe chegava aos pés, quanto a graça e encanto... Não que a tingida quisesse levar o sujeito na mão grande; não queria, mesmo, era vê-la feliz. Era tudo que não era. Veneno daqui, insinuação dali, houvesse falta de defeitos no rapaz e inventaria alguns, contanto de vê-la sorumbática e lamentosa. Na hora, ele percebera os fatos.

Se não era fácil ser mulher de músico, pior era ser músico de uma só mulher. Há muita solidão perdida, na noite. Na noite, tocando trompete, a flauta transversa ou, incisivamente, cantando com voz macia o que melhor havia da veneranda música popular brasileira, a mulherada entrava em transe... ou cio instantâneo, ou sabe-se lá que estado físico e mental as acomete em massa, e ele sabia dosar recursos chegando às raias da excelência. Ela? Dançava, cantava, tomada e comovida até o último neurônio, mas... alerta feito gata de primeira cria. Era, para todos os efeitos, a dona egoísta e possessiva que o levava embora depois da festa.

Saíra da discussão muito injuriado. Entrara num boteco, pálido, respirando na garganta, pedira o indefectível rum jamaicano e ficara um tempo ruminando amarguras, até que mão delicada tocou-lhe o rosto. Era linda, demasiadamente, até. Para quem não se liga com h2o2, poderoso desinfetante usado por morenas envergonhadas para aloirarem, era o sonho absoluto dos adoradores da autêntica morenice. Fora sua gerente numa empresa, empurraram muita pedra ladeira acima por algum tempo. Era amiga, irmã. Veio a idéia. Começou confidenciando sério, meio acabrunhado, em meia hora o riso corria solto.

Sábado seguinte, todo o mulherio e amigos estranhando sua ausência, entra na casa cheia de abraço com aquele atentado ao pudor com uma rosa vermelha nos cabelos negros, blusa transparente, saltos impossíveis e saia justa tão curta que, mais um pouco, seria só cintura. Foi um espanto no salão. Invés de ir-se ao palco onde seus parceiros já preparavam os instrumentos, sentou-se a uma mesinha na beira da pista. Mãozinhas dadas, olhares, gestos de amantes, enamorados, apaixonados, tudo a que tinham direito. Tive de gritar-lhe para que viesse trabalhar. A baixinha? Sumira de cena.

Fim de noite, a morena se fora antes, salão escuro, e ele vê, no canto do palco deserto, a figurinha encostada numa caixa de som. Finge que não viu. Ela vem, braços cruzados sob os seios, passos lentos. Por algum motivo, gerou-lhe apreensão. Não era assim. Havendo o que resolver, era direta, rodava logo a baiana e partia para os finalmente. Sem olhá-lo nos olhos, ela pára bem perto. Lentamente descruza os braços. Respira aliviado ao ver-lhe as mãos sem armas. Abre uma delas e, num gesto tímido, estende-lhe um pingente de ouro e pedra púrpura, ganho no primeiro ano de namoro, como se fossem Ezequiel e Ametista.

- Eu sei quem é ela, vocês são amigos. Você só quis me magoar e magoou muito. Muito mais do que imagina...

Tenta abraçá-la e recebe a mão no peito. Tenta falar e um dedo nos lábios o cala. Último olhar em lágrimas, põe-lhe o pingente no bolso da camisa e sai rapidamente. Da porta, a vê lançar-se aos braços de um homem alto, depois entrarem num carro e partirem. No desespero, chuta a porta, arremessa o precioso trompete no bar, quebra uma mesa e, depois, chora desconsolado.

No carro, riam à vontade. Disse ao homem que fora difícil e quase fracassara, mas, no dia seguinte iria procurá-lo, ele tinha de sofrer um pouquinho para aprender a dar valor a uma mulher enamorada. O primo só retrucou: - Truco!

(imgart: cvm - dama de espadas. ezequiel e ametista, de Lucia Meira)

12 de mai. de 2009

NOTURNO 1968


Caio Martins
Para Chyntia de Assis.









(imgart: cvm - jaquie 069 . fundo: delacroix 1830)

Perdido
neste mundo tamanho de deus
escondido em mistérios
tombei exausto sob minhas bandeiras...
Tamanho de deus...
Deus
deus
deus... E DAÍ?

Cynthia! Cynthia...

O arrebatamento, a surpresa
a sensação incontida
a perdida estréia
a tensão de bastidores sem platéia
a mão e a mão
a boca e a boca
o corpo e o corpo
a vida e a vida
eclodindo qual um raio
que me parta
ou o parto eu.

Seguia só, ia
soturno, taciturno
impenetrável
marcando na rua um compasso
no silêncio um traço
pelos desconsolados do mundo,
imundo
de humanidade
ia sujo nos ossos
pele, olhos, sexo, boca, ouvidos atentos
pulmões
contendo brados
murmúrio revoltado
e o espúrio senso do cansaço
de brigar com a vida
a refletida decisão
de brincar com a morte
porém seguia, ia
sem palavras novas
provas
de não ser o que sou, ou sou
que se dane!

Ao te encontrar, te perdi
ao chegar, tu partias.

Meu corpo tocou teu corpo
como folha que cai
pela terra que a consumirá.

Cynthia!...

Poucos são, e de fisionomias sujas
os que conhecem minha tímida ternura
a ríspida dor de minha noite partida.

Perdido
fui até cair exausto, abatido
até a última fibra inútil.
Mulher, mulher,
não te deixo mais
que um espasmo, rubra
orquídea no seio, a marca
de minha mão incontida.

Agora, sobre tuas mãos
amada
vês como pesa?

Cynthia!...

Eu só trago
este farpado carinho, a amarga
certeza de nada encontrar
feito.
Mulher, mulher minha
eu só trago meu jeito tosco
e meu amor por ti
é folha que se derruba atraída
pela terra que a consumirá.

Centro Acadêmico de São Caetano do Sul - 23/09/1968.


8 de mai. de 2009

EULÁLIA


Caio Martins









(img: cvm-eulO34-fractal)

É claro, mulher morena
que me demorei,
tonto
contemplando o agitar de teus seios
movimentos de cio de teus quadris
a reentrância atrevida de teu ventre
tuas coxas perfeitas demais para o momento.

Lá no fundo
(se me deixares conto)
ponto
incandescente de olhos negros
entre um dengo, um palavrão
tua sensualidade agressiva
abria espaços para tua forma de ser
na dor, altiva
no amor uma incógnita
na vida, guerreira
dura chama
que se espalha...

Mas
um carinho e te derretes
um empurrão
e explodes no alarido de mil putas.

E quando entreabres tua boca
úmida de promessas de beijos
quando cantas assim
e teu olhar se abranda
e danças leve, semovente
teu corpo no ritmo perfeito
então, Eulália
teu poeta te percebe
como se fosses uma bailarina
sobre um campo de batalha.

Bar Pão de Queijo - EBID. 14/04/1987-O3:OOh.

7 de mai. de 2009

ZERO HORA


Caio Martins


O quarto em desordem, a cama desarrumada, compondo-se com um Daniel descomposto na barba por fazer, roupas sujas espalhadas, no embotamento, no suor amargo, cheiro de urina vindo do banheiro, astenia, papéis esparramados, ardor nos olhos injetados, o revólver velho e manchado de ferrugem sobre a mesa há dias. Aos pedaços, fotos de Letícia pelo chão. O ímpeto descarrega-se numa cadeira chutada, no grito de dentes cerrados, o golpe na parede arranca-lhe a pele do nó dos dedos, o sangue mancha-lhe a camisa enodoada.

Daniel deixa o apartamento destrancado, a arma no bolso do blusão e as chaves do carro como partes de si mesmo. Quase dez da noite, recupera certo domínio e faz o percurso bem conhecido pela enésima vez, estaciona no alto da rua, fixa-se na janela do terceiro andar do prédio antigo. Luzes acesas, as cortinas não deixam ver o interior. Há intenso incômodo pela pressão na cabeça, vez por outra a fisgada fina no peito quase o obriga a desistir. Não pode.

Sabe que nas sextas irão jantar e depois para algum motel. Vê a luz apagar-se, logo após saem. Segue-os como fizera tantas vezes. Espera duas horas até saírem do restaurante simpático onde já estivera com essa mulher. Letícia provará o vinho, escolherá o cardápio, dirigirá toda a cena num clima de sedução perfeito. Comerá modestamente. Depois, no motel, quando o outro estiver satisfeito e derrubado, pedirá o que de melhor houver no menu. Comerá com gula, concentração e intenso prazer, então dormirá enrodilhada feito um bicho.

Quando saem, onze e meia, vai atrás pela rodovia, próximo ao motel tenta acelerar para interceptá-los, o carro falha, morre, fica no acostamento. Grita de raiva, corre, mão armada. Ao longe, já foram engolidos pelos jardins da entrada. Soluça, não há mais lágrimas. Volta, dá a partida algumas vezes, o motor pega. Sorri desalentado ante o prosaico da situação. Retorna à pista de mão dupla rumo ao interior, joga a arma fora. Acelera sem urgência, passa os cem, cento e trinta, quarenta e subindo. Há sensação de alívio, na vertigem da velocidade.

No oposto, vem pesada carreta de autopeças. O motorista não força na longa subida, a prostituta ao lado rindo sem parar. Do topo da descida solta as quarenta toneladas no declive desfrutando do poder da máquina e da suavidade das coxas da marafona, entre as quais desliza a mão sem receios.

Baixa os faróis para avisar ao veículo em sentido inverso que os dele estão altos, repete algumas vezes, solta uma enfiada de palavrões quando o outro atinge o ápice do morro varrendo a pista com potente luz alógena. O caminhoneiro diz à mulher que um profissional baixa as luzes bem antes de cruzar para não ofuscar os contrários, evitando acidentes, mas que os filhos da puta dos malditos domingueiros não respeitam nada. O clarão aproxima-se veloz, o motorista tira a mão das coxas da prostituta que se agarra no banco, assustada.

Os faróis chegam esplendorosos, por reflexos reduz marchas, toca cuidadosamente os freios, leva a carreta para a borda do asfalto para evitar o choque. A prostituta grita, ele trata de neutralizar o temível "L" do cavalo e a passagem da carga sobre a cabina. Há um tranco, salto curto e poderoso, a mulher escorrega para baixo do painel, apagam-se as luzes, para trás ficam explosão surda, violentos sons metálicos, o incêndio a esparramar-se pela pista. Seguro, pressiona freios com firmeza, reduz, músculos tensos quase na ruptura, mantendo o monstro alinhado com a pista, na trajetória, e não tomba.

Pára no acostamento de terra. Já desce com o extintor sem o pino, mandando a espuma para as partes em chamas; uma carreta estaciona perto iluminando o cenário irreal de fogo, fumaça e poeira vermelha. Outros viajantes somam-se ao auxílio com vários extintores. A carreta e a carga salvam-se, o combustível vazado queima declinante nos restos do que fora um carro e seus cacos pelo asfalto.

O homem ajuda a rameira histérica a descer tentando acalmá-la. Por fim, grita-lhe que pare de berrar, dá-lhe sonora bolacha e volta a abraçá-la. A deixa choramingando sentadinha no estribo, indo ver o que sobrou do outro. Nada, destroços. No motel Letícia se agita, arrebatada, gritando livremente, como um anjo perdido.

(img: cvm - trecho inicial de “zero-hora: um anjo perdido”).

1 de mai. de 2009

CECÍLIA


Caio Martins









(img: cvm - ceci e a rosa-2001/09)

Menina feita de mar
de amores, de maresia
de noite se faz de bicho
se faz de gente de dia.

De dia se faz de areia
de noite, de fantasia
Cecília feita de sal
de sol e de ardentia.

Desfaz mistérios da rosa
desfeita em ar de preguiça
de paixão sem endereço.

Mas quando Cecília nua
se enrosca no meu abraço
o mundo vira do avesso.

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