9 de mar. de 2009

O OUTRO LADO DA LUA


Caio Martins

Para Louise e o palhaço Bolinha.

Passava da meia noite. Finalmente seu guerreiro dormira, depois de horas amargas. Providencialmente pedira à irmã que buscasse os filhos. De manhã, ao sair, era um executivo orgulhoso, firme e seguro. Meio da tarde, lhe telefonara para que fosse para casa, algo terrível ocorrera. Fora despedido. Encontrara um dos tais melhores amigos em sua sala, a secretária choramingando ao computador. Pedira à sócia da lojinha de badulaques domésticos que assumisse e, mente em branco, fora para o apartamento, entregara as crianças à irmã e logo ele chegara, pálido. No abraço, o pranto angustiado, sofrido, querendo sair aos trancos.

Achava doloroso ver um homem chorar; que não foram feitos para isso. Trouxera-o ao sofá, envolvera-lhe o rosto entre os seios sem dizer palavra, sentira, então, lágrimas quentes na pele. Durara uma eternidade. Depois, olhos cravados no chão, contara-lhe da traição, da jogada política para tirá-lo da frente e ele não percebera nada. Disse quanto trabalhara pela empresa, da lealdade e camisa sempre vestida, das muitas horas, roubadas à família, que trabalhara feito um demônio para que as coisas não dessem errado. Falou, falou, falou... Mal ouvira. Nada pensara, apenas deixara fluir, junto com seu calor, toda a ternura sempre, nunca igual, sentida por ele.

Olhou-o por algum tempo, acariciando-lhe os cabelos. Foi ao banheiro e demorou-se na ducha. Feito gata, cuidou zelosamente de cada fração do corpo. Veio ao quarto e olhou-se nua ao espelho. Na penumbra, a imagem como que sufocava. Parecia-lhe estranha, talvez reflexos da lua-cheia, vazando a janela, lhe dessem uma áurea tênue, talvez a irradiasse, os contrapontos de luz e sombra mesclados com raras iridescências dando visão fantasmagórica do corpo sensual, o rosto era um na sombra, outro na luminescência. Gastou seu tempo nisso e, finalmente, suspirou fundo. Gostou do que vira.

Era dela. Por ora, era definitivamente dela. Não importaria se não pudessem pagar as contas, nem que tivessem de mudar o filhotes de escola, vender tudo e mudar de bairro, viver parcamente nos limites dos recursos da lojinha. O levantaria passo a passo num tempo certo, assumiria o papel de provedora e trataria de fazer daqueles momentos, antes que ele voltasse novamente ao campo de batalha, os mais felizes de sua vida. Andou pela casa devagarinho, passo a passo, naquela nudez morena perturbadora, indigna de mortais olhares.

Veio para a cama mansamente, séria, distendida e mútica, cuidadosa e instintiva. Acariciou-lhe o rosto e beijou-lhe suavezinho os lábios, ele acordou devagar, rolou-se e se deparou com a mulher que era a sua, mas não era, nem teve tempo de lembrar-se da tragédia da véspera. Jamais a vira assim. Os olhos sérios no rosto sério deram-lhe um não sei quê na espinha, não conseguia parar de percorrer-lhe o corpo, como se pela primeira vez a visse.

- Amo você!

Madrugada adentro, mais que amar, tiveram-se desarmados, em silêncio, sem regras nem prazos, razão ou comedimento horas a fio até o cenário mudar lentamente. Primeiras luzes roseando as janelas, foram amenizando. Beijou-lhe a boca, subiu-lhe a suave curva da nuca, demorou-se nos seios num mar de delicadezas. Ficaram um tempo fixos em olhar intenso, sem máscaras.

- Safada!
- Não! Quer dizer, também... Sou só sua mulher e você é meu homem. É meu macho, sou sua fêmea. Sou o que você quiser... bobão!
- Eu te amo! Mas o que vamos faz...
- Nada! A gente se arruma. Está muito bom ter meu marido de volta... Mais um pouco ia até esquecer como é que se faz isso... Agora, eu mando e você obedece, eu digo e você faz... Agora você é meu... Depois pode voltar de novo pra sua guerra. Vem cá!

Luz do dia insistindo, a lua do outro lado, o riso clarinou pelas paredes. Entrelaçaram-se densos, comovidos feito o diabo, e a sensação de o mundo virar do avesso saiu recatada pela janela deixando um traço de maresia.

(img: cvm - louise 1999)

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Na busca da excelência aprende-se mais com os inimigos que com os amigos. Estes festejam todas nossas besteiras e involuímos. Aqueles, criticam até nossos melhores acertos e nos superamos.

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