Da interminável e densa e intensa batalha entre memória e história, o que resta são palavras. Só palavras.
Serão eventualmente garimpadas nos escombros do futuro. Estão convidados, porém, a revirar hoje o blogue pelo avesso.
4 de mar. de 2009
CREPÚSCULO
Caio Martins
Aos golinhos, demorando delícias, tomou a caipirinha como quem beija, a imensidão de praia avermelhando-se na beira da boca-da-noite. Na serra, atrás, espasmos luminosos denunciavam tempestade magnética, não se ouvia um som. Apenas, o compasso do mar. Amava aquela solidão, gaivotas fuçando as areias, lá longe um vira-lata farejando sabe-se lá que mistérios. Do outro lado do mundo ainda havia cerejeiras. Lânguida, esticou braços e pernas da cor de canela, jogou os cabelos negros para trás, percorreu-se o corpo com as mãos em gesto vagaroso, mais que preguiça uma carícia, e suspirou fundo, como quem morre de saudade.
Ali, pouco mais que menina tímida, o conhecera. Rústico de ver, homem forte sem retoques, queimado de sol, cabelos e barba anárquicos, parado estático frente ao mar. Qualquer coisa o atraía, de muito longe. Atraída, chegara perto. Sentira certo calor, como que leve sufocação. Então a chamaram no idioma milenar. A disciplina nipônica a fizera saltar, num instante estava com a família. Dissera à irmã mais velha que olhasse, que era bonito. O cúmplice sorriso recebido de volta a tranqüilizara. Fora então para casa, olhando repetidamente para trás.
Apaixonara-se? Não soubera, naquele então, definir. Já noite, quando todos jogavam cartas, quase se lhe parara o coração. Um choque, ele entrando manso e cumprimentando ritualmente a cada um. Ela só respondera com curta inclinação de cabeça. Não lhe tirara mais os olhos, fora do planeta, em órbita errática. Cruzaram-se muitas vezes, os olhares. Não se intimidara, não sentira medo. Encolhida na rede, observara o homem à vontade, quando ria, ficava sério, discutia com os demais num linguajar estropiado. Choravam de rir.
No outro dia o reencontrara na praia, fins da tarde. Chegara decidida, murmurara um "ôi!" enfático e ficara ao lado, olhando nada. Sabia-lhe já o nome, que era poeta, tinha um rancho de pesca no local. Construía casas, era amigo da família. A mulher se fora, há tempos. Odiava o mar. Semanas depois, o rosto em seu peito e novamente soluçando num abandono infinito, ouvira coisas de amar, perdidamente amar.
Olhou para a casa por instinto. Lá estava, ocupando a altura da porta, os braços cruzados no peito, o olhar não mais perdido no horizonte; mas, nela. Foi lá, arrastando as tralhas e, ancestral, beijou o beijo, abraçou o abraço e sorriu o riso conhecidos de tantos anos, volvendo, envolvidos, ao mar em crepúsculo com seu jeito antigo de amar.
(img: tomioka eisen (1864-1905).
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Categorias, temas e títulos
Anti-horário
(1)
Crônicas
(60)
Elis
(7)
Notas
(2)
Pensão da Zulmira
(19)
Poemas
(111)
Sertão
(4)
Vídeos
(26)
Zero Hora
(6)
ler todo o blog, muito bom
ResponderExcluirBelíssima crônica, Caio! Estou vendo todo o cenário descrito, bem próprio de quem tem muita sensibilidade e zelo ao escrever.
ResponderExcluirGrata pela partilha.
beijos