31 de mar. de 2009

A MULHER DO SOLDADO


Caio Martins

Para Evanice.


Chegara de viagem e a mulher lhe dissera ter arrumado babá nova para o nenê. Era bem menina, recomendada pela vizinha. Falara com a irmã mais velha, já que a mãe sumira e o pai vivia com outra. Teria de dormir na casa, assim lhe faria companhia enquanto viajava vendendo envases para produtos químicos. Ante a decisão, não fez perguntas. Mal olhara a nova aquisição e se metera no chuveiro, jantara e fora para o quarto.

Ficava até quinze dias fora. Num dos retornos, ano e meio depois, a mulher dissera que a menina tinha um namorado, soldado de polícia. Que estava preocupada, saíra já algumas vezes, sábados, voltando na manhã de domingo. Acontecesse “alguma coisa” e poderiam ser responsabilizados. Domingo pela manhã, chamara o soldado. Tinham de conversar. O rapagão, a paisana, sentara à mesa da cozinha, tirara um Colt 32 “cavalinho” da cintura e o pusera perto da xícara de café. Pedira-lhe um momento.

Voltara com uma Gebruder Merkel 12 e uma Browing .38 e as pusera sobre a mesa, o rapaz patético e estupefato. “- Bom, você me mostrou o seu, eu lhe mostrei o meu! Agora, vamos conversar!” - dissera. Eram tempos em que o cidadão de bem podia ter armas. Olhar duro e fixo, voz baixa e cortante, crivara tanto o estafermo de perguntas que este começara a empalidecer. Depois, impusera condições de horário, dia de visita, enfim, nem o mais zeloso dos pais faria melhor. Não mais ouviram falar dele.

Conversara, ainda, com a mocinha. Quisesse ali permanecer, havia regras. Que a mulher a levaria ao próprio médico para exames, já que ficava a maior parte do dia com o menino, pois vai diabos saber onde o tralha metera o pinto antes de estar com ela. Chorara aos solucinhos, dissera que fora tudo um desastre, nunca mais queria ninguém. Assim ficaram até a separação. A mulher, farta da solidão, pegara o menino e se fora para a casa da família, em outro estado. A moça voltara para a casa da irmã.

Num domingo, cedinho, aparece-lhe à porta. Entra, senta-se comportadinha à mesa. A casa, à venda, uma bagunça. Diz-lhe estar preocupada com ele, e pergunta-lhe se podia falar algumas coisas, mas tinha vergonha. Reponde que sim. Olhando por baixo, os grandes olhos castanhos indecisos, enrubescida, pergunta se lembra de um verão quente, quando dormira na sala. Conta que o vira chegar, temera que a tocasse e só fora delicadamente coberta com um lençol azul. Mudo, levanta a sobrancelha esquerda, meio sorriso aparecendo.

Inquieta, diz que a ex-mulher falara que era cavalheiro e delicado, paciente e carinhoso, enfim, fizera muita propaganda. Ele? Lembrava-se, nunca saíra da memória, de olhares furtivos e principalmente da noite do sofá, ela descoberta, a camisolinha ao desamparo, pernas, braços, a calcinha rosa ridícula, cabelos úmidos de suor, os traços de impensável beleza. Mas, era um vendedor, jamais um ladrão. Tinha o sentido de tempo certo para fechar negócios.

- Se eu tivesse mexido com você, o que teria feito?
- De verdade? Nada! Eu sabia que você me olhava diferente... Eu queria.
- E ainda quer?

Faz que sim com a cabeça, sem olhá-lo, um riso nervoso de permeio. Já não era criança, tinha até título de eleitor. Mas, tinha também medo denso, o soldado toupeira a magoara muito. Não por grande: por bruto. Por fim, a moça levanta o rosto e o encara. Ali começa um período de amantes desbragados durando meses. Enfim, ele vende a casa, busca a mulher e a cria, ela caça o soldado e lhe ensina umas tantas coisinhas que um homem deve saber sobre as mulheres, mesmo sem garantias, para ninguém, de viverem felizes para sempre.

(img:cvm - lucienne234-alphaorionis-16002)

25 de mar. de 2009

A EXORCISTA


Caio Martins

Rola pra cá, rola pra lá, acabou sentada no pedaço da cama que lhe cabia, abraçada ao travesseiro. Ao lado, o fulano da vez roncava solto, contente feito rato no lixo. Era bonito, jovem e, principalmente, de outra profissão. De fora, chegava o som denso e pesado da cidade em madrugada fria de outono. O que incomodava eram seus demônios, lembranças de outro fulano, outra madrugada de outono, outros tempos.

- Puta que pariu!... – murmurou baixinho. Como podia não sair da cabeça, aparecer nos momentos menos adequados, estragar a festa na cama feito um Vadinho qualquer assombrando quem não era Dona Flor, nem tinha dois maridos? Entrar-lhe na razão e dar palpites quando lia um livro, via um filme, tomava decisões no trabalho, até quando se comparava às vaidades siliconadas que ameaçavam seus territórios?

Poder, não podia, mas a permanência fazia-se insuportável. Era na hora de trabalhar um tema, de meter-se no trânsito, de vestir-se e, pior, nos momentos íntimos com o fulano da vez. Achava-se tranquila, quanto a sexo. Sem essa de sentir-se invadida, ou usada: gostava, não tentava provar nada, era só uma forma, dentre infinitas, de receber e dar carinho. Achava bom, mesmo que o da vez fosse meio apressadinho.

O de outrora afirmara certa vez, fundamentalista, que o homem sábio não se preocupa com o próprio prazer por saber que, desatado o da mulher, o dele viria normalmente. – Cafajeste...! No mínimo, aprendeu na zona! – pensou. O da vez, até que estava aprendendo com ela, mas queria que fosse para ela (Lá estava o intruso novamente...). E, além de apressado, era metódico demais, suave demais. O outro? - Capeta! Safado! Sem vergonha! ...

Gelada e sentindo crescer a bronca contra o nó cego molhado, deu um safanão no da vez, arrancou o cobertor, enrolou-se e saiu do quarto batendo a porta. Pegou o telefone, digitou no capricho. Dois toques e a voz inconfundível, cheia de rabugice de gênio interrompido em hora imprópria, rosnou “Alô!” do outro lado. Exigira-lhe, há tempos, que não mais o procurasse se nada quisesse com ele, que não lhe alimentasse ilusões... jornalista cretino! Sacudindo os demônios, respirou fundo, o cobertor caindo e a nudez detonando o frio da sala:

- Palhaço! Cafajeste! Safado! Larga do meu pé, seu fiadaputa!

Deixando dois fulanos catatônicos, perplexos e apatetados na madrugada fria, bateu o aparelho, catou a coberta e foi dormir intrépida no sofá, apaziguada e feliz feito gata que comeu todo o creme.

(img: "mulher, imagens e poemas" - perfil&arte .)

22 de mar. de 2009

PREMEDITAÇÃO

Caio Martins

Ao Mestre Jorge Sader

Quieto no sofá surrado, tenso, ombros travados e doloridos, fixa-se com olhos injetados no alvo à frente. Cada vez que a moça se mexe ou fala, o sismógrafo interno pula ou se arrasta, pára ou desvaira.

No meio de uma garrafa de uísque de doze anos, poderia um avião cair sobre o prédio e seguiria nesse fascínio, pelo outro lado até a eternidade no inferno. Um cinzeiro antigo quase entupido continua recebendo mais porcarias. Irrespiráveis, ar e ambiente do apartamento fechado.

Não sorri. Nada diz. Na mão esquerda, como dizem ser de boa etiqueta, o copo de uísque alterna-se com os cigarros. Na direita, clandestino 38 niquelado carregado. A moça não vê a arma. Segue maneando-se, divertida, frente a basbaque como infinitos, sem pressa, devagar mostrando cada brinquedinho com zelo e, mesmo, desfaçatez. Diz em inglês que o ama, mas que não se mova, por favor. Requintada, não precisa de legendas; as coxas, bunda, seios, lábios e demais acessórios falam mais que palavras.

Aproxima o rosto, língua entre os dentes, meio sorriso e a mão sorrateira entre as pernas. Geme baixinho. Num arranque, simula lacinante orgasmo e começa tudo de novo. Sempre começa tudo de novo. Não toca na ereção incontrolável, numa mão o copo, noutra a arma. Ela não percebe a tensão dolorosa, concentra-se em ser fêmea no cio, vira, mexe, remexe, escolhe os ângulos mais favoráveis para toda sorte de obscenidades. Já vira esse filme infinitas vezes, obviamente igual, mas sempre diferente.

Aí, numa fração de segundo, tudo se transforma. A mão, pesada, aperta a coronha mas o indicador ainda permanece fora do gatilho. Por instinto a mulher percebe uma ameaça, os olhos molhados se ampliam, cobre-se precipitadamente com um toalhão azul, recua para o canto da cama gritando que não e não... Não é um homem, é um monstro assassino que lhe vem em cima. Polegar armando o cão, aponta com perícia, contém a respiração. Ela grita. Ele espera o momento exato.

O indicador entra no guarda-mato, espreme o gatilho suavemente. As molas, peças, o trinquete, o estalo, a agulha, a espoleta, fogo a quase dois mil graus, a violenta expansão de gases, o projétil cortando o curto espaço a uns trezentos metros por segundo... Direto na cabeça... Silêncio... Cheiro de nitratos no ar superando o dos cigarros. Paralisado, ouve com atenção e espera não ter acordado vizinhos. Respira aliviado, por fim. Não há telefonemas ou sirene de polícia. A cidade dorme, indiferente.

Toma novo e longo gole de uísque, contempla o estrago. A ereção se fora, ri de si mesmo sem lamentar-se, bêbado e relaxado. Abre a janela e aspira o ar já poluído da madrugada. Volta-se ao cenário, joga o 38 no sofá, espreguiça-se lentamente e se diz, solene e admirado:

- 'Táquepariu...! Zerei o maluco de merda!

Horas depois, mal acorda, sai para comprar nova TV.

(imgarte: cvm - wiki - lucienne2009)

16 de mar. de 2009

VOLÁTIL

Caio Martins















(imgarte: cvm
- silvana1999)


Explodes em cores
como quem tudo pode
e festejas
se te declaram guerra.

Frágil teatro
de conquistas vãs,
inúteis vitórias
onde és caça e predadora,
quase sempre
troféu.

E nem bem te atiças
e te entregas de novo,
com um só gesto estendes
a incessante armadilha de tons
irisados matizes,
transparências
agir volátil
de teu cio eterno.

Explodes em cores
e nelas me dissolvo
em preto e branco.

("mulher: imagens e poemas"  -1999).


12 de mar. de 2009

LEI SECA


Caio Martins
Para Mari, pela delicadeza de existir.

Lá ia, cidade adentro, madrugada de inverno, de táxi. Não estava trançando pernas, mas tomara mais vinho que o devido. O carro ficara solitário no pátio do bar. Ela? Sóbria feito uma harpia, beijara-o sem paixão, sequer sorrira ao pô-lo no táxi e dizer ao motorista que o levasse com cuidado para casa. Fiadaputa! Custava, levá-lo e, então, deixá-lo dormir no sofá até o meio-dia, acordá-lo com um café gostoso e quentinho, meter-se depois nua sob as cobertas?

- Merda! Prepotente! - murmurou, ausente do motorista especializado, depois da Lei Seca, em levar cachaceiro para casa. O gozador o olhava pelo retrovisor e sorria. No mínimo regozijáva-se pelo passageiro terminar a noite às secas. Tinha culpa se havia maluco demais pelas ruas, que sóbrios já eram um perigo e, bêbados, uma calamidade? Ele, não! Conhecia a máquina, tinha mais estrada que caminhoneiro mal-amado, zero acidentes.

Tinha, certa vez, ela junto, evitado uma tragédia. Chuva pesada, pista cheia, e houvera batida feia à frente. Vira, na cortina d’água, o clarão vermelho dos freios parados. Reduzira de quarta a segunda, pisara no freio paulatinamente e pegara uma mancha de óleo. O carro deslizara, na fração de segundo vira o ônibus em igual velocidade pelo lado direito, soltara o freio e acelerara, entrara e fora colhido na metade traseira.

Reflexos e endireitara, subira a guia travando e embicara numa árvore. Não fora grande estrago, mas evitara bater e engavetar com vários autos. Frio como rabinho de foca, descera, a pusera num táxi e ficara meio dia até ser liberado da confusão na qual, entre mortos e feridos, todos se salvaram. Olhando a pista à frente, a via pulsar neurótica, memórias de tantas outras situações de risco passeando pelo filtro etílico. E ela não confiava...

- Doutor, chegamos! - pagou, parou minutos procurando as chaves e entrou no prédio guiado por reflexos. O porteiro rosnou-lhe um boa-noite enregelado; elevador, o andar vazio. Abriu sua porta e percebeu, pela fimbria da do quarto, a luz acesa. Isso não era normal. Mão na maçaneta, trombou com a porta fechada. Bateu, e nada. Vai ver, metera a chave em algum canto, ou perdera. Depois, já sóbrio, veria. No momento a sala rodava, a cabeça zunia.

Xixi de praxe e foi para o sofá, roupas para todo lado. Cobriu-se com um edredom que lá não devia estar, abraçou-se com a solidão da almofada da preguiça e apagou em segundos. Acordou, meio-dia, a luz do sol pelas cortinas devassadas, o cheiro bom de café novinho, a xícara, a mão, o braço, o sorriso divertido, o corpo nu da mulher que já se aninhava debaixo da coberta, agora confiante, exigente e despudorada.

(imgarte: cvm - jaquie2001-bicodepena)


10 de mar. de 2009

ROSAS NÃO FALAM


Caio Martins
Para Cris e Lima, homenageando Cartola, eleito de Orum.

Entrara na área de diagramação meio tímida, assustada com aquele primeiro estágio caído do céu. O diretor de publicações a apresentara ao pessoal em bloco, dizendo seu nome e para que vinha. O chefe de edição a olhara de alto a baixo, com jeitão guloso e aprovativo. Na verdade fora assim com todos, única mulher na sala; menos o sujeitinho atrás do Mac com fones no ouvido, esparramado na cadeira e um palito cafajeste na boca. Ao lado, junto à tela, uma estatuinha preta, de santo, vestida de vermelho e branco.

- Esse aí é o nosso diagramador de arte-final. Tudo acaba aqui! Ô meu: ela vai trabalhar na revisão com a gente! - berrara o chefe.

O sujeitinho tirara um tampão do fone, a fitara nos olhos sem sorrir e dissera um “ôi!” inexpressivo. Pusera o tampão de novo e voltara à tela. Sentiu que era seu oposto desde o início. Ela branca sardenta, loira e grandes olhos azuis, corpão generoso, tímida e solícita. Ele, neguinho encolhido, pixaim rapado a zero, tatuagem tétrica nos braços, olhos apertados e traços duros. Ela, cria de apartamento e descendente de austríacos, finalista de jornalismo. Ele, sobrevivente de cortiço e sem traço nem raça definida, brasileiro... Era respeitado, todavia. Andava mole, jeitão de madraço, tinham cuidado ao falar-lhe pois vinha troco e gozação de graça, rápido feito bombeiro e numa gíria pesada ininteligível. “Puta profissional!” - afirmavam.

No tempo, não se incomodara mais com o olhar morno dos colegas, nem a indiferença do neguinho. Até o dia do churrasco de fim de ano ficaram cada um no seu cada qual. Aí alguém trouxera um violão. Depois de passar por Noel, Bezerra e as velhas-guardas, cantara “As rosas não falam”, de Cartola, e se lhe quebrara alguma coisa por dentro. O medo, talvez. Todavia, quem cantasse as rosas do Cartola daquele jeito só podia estar de bem com Deus... Ou com Xangô, o santo dele. E o mundo revirara, de estalo, em paixão desatinada.

De estalo os olhares cruzaram, azul no preto e vice-versa. Fora assim... Amasso maluco na porta do carro, ninguém dizendo nada, corrida muda para o motel e, no dia seguinte, acordando um olhando o outro com cara de fui eu. Avisara em casa que apareceria só no fim do dia. Ele não tinha a quem dar satisfação. Nunca dera satisfação nem cobrara. Passara muito perto do crime, vivendo no meio, para perder tempo com isso. O palito era para lembrar de quando vivia de sanduíches, a estatuinha, de quem o protegera até de tiro, estoriava.

Era seu contrário. Nunca transgredira e só sabia o que a mídia dizia. Fazia tudo certinho, crucifixo entre os seios, lia e estudava muito, ele só escutava samba e fuçava em informática. Mas juntos, cores contrastando nos folguedos entre lençóis, eram a mesma pele, sangue ardente, sentimentos loucos e a perda total e completa de freios e razão. Era tão forte que ela decidira mudar de estágio, ele de turno. Continuara escutando samba com os fones de ouvido, no turno da noite, o Mac na frente e a estatuinha de Xangô do lado. A galera só sabia deles pelos telefonemas, um de noite: - Nega, cheguei! - e outro de manhãzinha: - Nega, tô indo!

Perguntado numa roda de samba sobre o sumiço, diz:

- É que tô ferrado, tá ligado? É a frô loiraça aí! Essa nega alemoa aí, que amarrô meu santo e quebrô meu barato das parada e agora num tô mais de tôca, na charla barata e na morfa de fina, bicho! Tá sabendo o lero todo dia, manhãzinha, meu? Bota as butuca azul na mira com jeito de safada e diz macio: - Ich liebe dich! - e aí o malandro desatina, meu... Baba geral, perdido até o talo, mano!

Do outro lado da cervejinha, no meio do pagode solto, ela sorri, não diz nada, rosas não falam.

(img: cvm-2008)

CONTRADIÇÕES

Caio Martins
















(img: "mulher, imagens e poemas" cvm-leca98)


Num dia me diz te amo
no outro
me diz te mato!

É tanto beijo e sobressalto
que ninguém sabe mais
o que é amor
o que é guerra
o que é carícia
ou desacato,
o que é beijo
o que é mordida,
o que é paixão
o que é, de fato...

De noite me diz te amo
de dia
me diz te mato!


9 de mar. de 2009

O OUTRO LADO DA LUA


Caio Martins

Para Louise e o palhaço Bolinha.

Passava da meia noite. Finalmente seu guerreiro dormira, depois de horas amargas. Providencialmente pedira à irmã que buscasse os filhos. De manhã, ao sair, era um executivo orgulhoso, firme e seguro. Meio da tarde, lhe telefonara para que fosse para casa, algo terrível ocorrera. Fora despedido. Encontrara um dos tais melhores amigos em sua sala, a secretária choramingando ao computador. Pedira à sócia da lojinha de badulaques domésticos que assumisse e, mente em branco, fora para o apartamento, entregara as crianças à irmã e logo ele chegara, pálido. No abraço, o pranto angustiado, sofrido, querendo sair aos trancos.

Achava doloroso ver um homem chorar; que não foram feitos para isso. Trouxera-o ao sofá, envolvera-lhe o rosto entre os seios sem dizer palavra, sentira, então, lágrimas quentes na pele. Durara uma eternidade. Depois, olhos cravados no chão, contara-lhe da traição, da jogada política para tirá-lo da frente e ele não percebera nada. Disse quanto trabalhara pela empresa, da lealdade e camisa sempre vestida, das muitas horas, roubadas à família, que trabalhara feito um demônio para que as coisas não dessem errado. Falou, falou, falou... Mal ouvira. Nada pensara, apenas deixara fluir, junto com seu calor, toda a ternura sempre, nunca igual, sentida por ele.

Olhou-o por algum tempo, acariciando-lhe os cabelos. Foi ao banheiro e demorou-se na ducha. Feito gata, cuidou zelosamente de cada fração do corpo. Veio ao quarto e olhou-se nua ao espelho. Na penumbra, a imagem como que sufocava. Parecia-lhe estranha, talvez reflexos da lua-cheia, vazando a janela, lhe dessem uma áurea tênue, talvez a irradiasse, os contrapontos de luz e sombra mesclados com raras iridescências dando visão fantasmagórica do corpo sensual, o rosto era um na sombra, outro na luminescência. Gastou seu tempo nisso e, finalmente, suspirou fundo. Gostou do que vira.

Era dela. Por ora, era definitivamente dela. Não importaria se não pudessem pagar as contas, nem que tivessem de mudar o filhotes de escola, vender tudo e mudar de bairro, viver parcamente nos limites dos recursos da lojinha. O levantaria passo a passo num tempo certo, assumiria o papel de provedora e trataria de fazer daqueles momentos, antes que ele voltasse novamente ao campo de batalha, os mais felizes de sua vida. Andou pela casa devagarinho, passo a passo, naquela nudez morena perturbadora, indigna de mortais olhares.

Veio para a cama mansamente, séria, distendida e mútica, cuidadosa e instintiva. Acariciou-lhe o rosto e beijou-lhe suavezinho os lábios, ele acordou devagar, rolou-se e se deparou com a mulher que era a sua, mas não era, nem teve tempo de lembrar-se da tragédia da véspera. Jamais a vira assim. Os olhos sérios no rosto sério deram-lhe um não sei quê na espinha, não conseguia parar de percorrer-lhe o corpo, como se pela primeira vez a visse.

- Amo você!

Madrugada adentro, mais que amar, tiveram-se desarmados, em silêncio, sem regras nem prazos, razão ou comedimento horas a fio até o cenário mudar lentamente. Primeiras luzes roseando as janelas, foram amenizando. Beijou-lhe a boca, subiu-lhe a suave curva da nuca, demorou-se nos seios num mar de delicadezas. Ficaram um tempo fixos em olhar intenso, sem máscaras.

- Safada!
- Não! Quer dizer, também... Sou só sua mulher e você é meu homem. É meu macho, sou sua fêmea. Sou o que você quiser... bobão!
- Eu te amo! Mas o que vamos faz...
- Nada! A gente se arruma. Está muito bom ter meu marido de volta... Mais um pouco ia até esquecer como é que se faz isso... Agora, eu mando e você obedece, eu digo e você faz... Agora você é meu... Depois pode voltar de novo pra sua guerra. Vem cá!

Luz do dia insistindo, a lua do outro lado, o riso clarinou pelas paredes. Entrelaçaram-se densos, comovidos feito o diabo, e a sensação de o mundo virar do avesso saiu recatada pela janela deixando um traço de maresia.

(img: cvm - louise 1999)

6 de mar. de 2009

ETERNA

Caio Martins















Quando me vieres buscar
com teu olhar molhado
tua boca de palavras secas
teu corpo de brinquedos
parco de irreverências,
quando acolheres meu rosto
entre teus seios que não poderei beijar,
quando quiser te fazer esperar
para acariciar cada partícula de teu ser
até levar-te à loucura,
e quando
numa fração de tempo compreender
que és tão real
quanto a vida mil vezes vivida
agora esmorecendo sem pressa,
pela primeira e última vez
me deixarei vencer...

Mesmo assim,
ante tua beleza inatingível
só poderei dizer:

- Que merda!

Valparaíso/Chile - nov/98

ELIS

Caio Martins









img:aol.com/1982

Ah! Elis, que paixão...

Essa tua voz
de macio diamante
rasgando minhas veias
essa lágrima em dó menor
lascivamente molhando tua boca
e esse timbre mágico
corroendo um resto de esperança.

Essa mulher cósmica,
cômica,
alegremente triste
miúda e estranha
muda o lado do coração
em meu peito
feito menino
que pela primeira vez vê moça nua!

E a saudade, Elis
e o soluço, Elis
e a paixão explode nova
e como sempre dói
como sóe doer
a desesperança de vida
dessa pobre menina
morta entre um agudo
que comove o verso torpe
e uma porção de cocaína...

4 de mar. de 2009

CREPÚSCULO


Caio Martins

Aos golinhos, demorando delícias, tomou a caipirinha como quem beija, a imensidão de praia avermelhando-se na beira da boca-da-noite. Na serra, atrás, espasmos luminosos denunciavam tempestade magnética, não se ouvia um som. Apenas, o compasso do mar. Amava aquela solidão, gaivotas fuçando as areias, lá longe um vira-lata farejando sabe-se lá que mistérios. Do outro lado do mundo ainda havia cerejeiras. Lânguida, esticou braços e pernas da cor de canela, jogou os cabelos negros para trás, percorreu-se o corpo com as mãos em gesto vagaroso, mais que preguiça uma carícia, e suspirou fundo, como quem morre de saudade.

Ali, pouco mais que menina tímida, o conhecera. Rústico de ver, homem forte sem retoques, queimado de sol, cabelos e barba anárquicos, parado estático frente ao mar. Qualquer coisa o atraía, de muito longe. Atraída, chegara perto. Sentira certo calor, como que leve sufocação. Então a chamaram no idioma milenar. A disciplina nipônica a fizera saltar, num instante estava com a família. Dissera à irmã mais velha que olhasse, que era bonito. O cúmplice sorriso recebido de volta a tranqüilizara. Fora então para casa, olhando repetidamente para trás.

Apaixonara-se? Não soubera, naquele então, definir. Já noite, quando todos jogavam cartas, quase se lhe parara o coração. Um choque, ele entrando manso e cumprimentando ritualmente a cada um. Ela só respondera com curta inclinação de cabeça. Não lhe tirara mais os olhos, fora do planeta, em órbita errática. Cruzaram-se muitas vezes, os olhares. Não se intimidara, não sentira medo. Encolhida na rede, observara o homem à vontade, quando ria, ficava sério, discutia com os demais num linguajar estropiado. Choravam de rir.

No outro dia o reencontrara na praia, fins da tarde. Chegara decidida, murmurara um "ôi!" enfático e ficara ao lado, olhando nada. Sabia-lhe já o nome, que era poeta, tinha um rancho de pesca no local. Construía casas, era amigo da família. A mulher se fora, há tempos. Odiava o mar. Semanas depois, o rosto em seu peito e novamente soluçando num abandono infinito, ouvira coisas de amar, perdidamente amar.

Olhou para a casa por instinto. Lá estava, ocupando a altura da porta, os braços cruzados no peito, o olhar não mais perdido no horizonte; mas, nela. Foi lá, arrastando as tralhas e, ancestral, beijou o beijo, abraçou o abraço e sorriu o riso conhecidos de tantos anos, volvendo, envolvidos, ao mar em crepúsculo com seu jeito antigo de amar.

(img: tomioka eisen (1864-1905).


3 de mar. de 2009

A CORUJA

Caio Martins

Para Cristina e os que já viveram um grande amor, em tempos de fúria.

Na mente, a figura da coruja de madeira. Dele, não tinha mais idéia. Cidade infeliz... Barulho infernal, ar irrespirável, pessoas intratáveis, a cada passo a expectativa de tragédia. Pegou a Paulista, quebrou para a Bela Vista, determinada e repetindo que tinha de ser forte. Lá estava, no mesmo lugar.

Antes, chamava-se Cauã. A música latino-americana imperara ali, da emoção do tango à sensualidade da salsa, do candombe à cúmbia; rolaram paixões voluteando do sórdido ao sublime, com trilha sonora latino-americana, empanadas e vinho tinto. Agora, era um tugúrio pós-modernoso grampeado a som dilacerante, tribos estranhas espetadas de parafusos e rebites, tatuagens e cara de mula. Ali valia tudo. Cara limpa, roupa simples, tênis preto de corrida, pelas dúvidas. Era boa, nisso. Entrou trombando alienígenas irados, o som rasgando os tímpanos.

Esquivando-se, empurrando, fintando, chegou ao balcão. Lá estava a figura. Cabelos ralos prateando, a barba desordenada, faixa roxa na testa rutilante pela luz negra, virginal blazer branco, camisa negra e rubra gravata borboleta. Conseguiu sentar-se numa banqueta. Impecável, ele passou o pano na fórmica (antes era um tampo de jatobá) e perguntou-lhe: - Senhorita? Cravou os olhos negros nos olhos claros ilhados por rugas de todo tipo. Não sabia o que dizer, vinte anos passados. Viu-lhe a respiração sustada e o ar de espanto. Sumira no mundo há tanto tempo que nem pensara em ser reconhecida assim, de pronto. O barulho eletrônico, as personagens insólitas das tribos, tudo parou, sumiu. A memória do corpo voltou atrevida e impertinente. Passou a mão entre os seios e desceu até as coxas por reflexo. Cabelos curtos, os sacudiu como se longos fossem, gesto atávico de outrora. Finalmente, ele respirou fundo, pôs a mão sobre os olhos e, então, abriu os dedos devagarinho e olhou-a pelo vão:

- Você?
Fez que sim com a cabeça. Sem sorrir. Manteve o olhar firme. Viera buscá-lo. Se não o encontrasse, roubaria a coruja. Tinha de ser forte, não voltaria para a noite, não cantaria mais “O bêbado e a equilibrista” tentando superar Elis, não cederia à magia das madrugadas, porque tudo isso se fora. Ficaram, anacrônicos, assim pelo tempo de uma vida. Por fim, estendeu-lhe a mão, a palma voltada para cima, abaixo de seu queixo. Pôde rir. Era assim que ela fazia com os vira-latas da rua, que jamais a mordiam. Sorriu levemente em resposta, ao contato da pele. O outro garçom, cravado de metais na cara surrealista, assumiu o bar. Ocorria alguma coisa muito doida, ali.

- Vim buscar você! Não me pergunte como o encontrei.
- Não vou. Você sumiu e eu pirei, bichinho! Me ferrei de verde-amarelo! Nunca mais escrevi um verso, deixei a música, acabei aqui maluco depois de maluco, onda depois de onda, fiquei feito um balcão, cadeira, mesa... Eu e a coruja do Cubano. Mostrou-lhe, na prateleira mais alta, a escultura de madeira. Sem vacilar, ela subiu no balcão, pegou a peça. Estava empoeirada, com pesada patina de tudo quando é droga e bafo de onça de vinte anos.
- Vim buscar você! Lembra do que queria? Lembra do que me dizia ser seu sonho mais terno? Existe, ouviu? E você ficou aqui por saber que era o único lugar em que eu poderia achar. E eu achei. E você vem embora comigo. E a coruja!
- Você é maluca! Essa é a minha vida! E vem agora, do nada, depois de um século, me atazanar? E querendo que eu deixe...
- Cala a boca! Você tem a única coisa que restou. Esta coruja, está vendo? Está sozinho!
- Sai fora, menina! Estou muito velho para você... Parece ter vinte anos...
- Tenho o dobro, animal! E eu nunca deixei de amar você, entendeu? Só não aguentei mais ser mulher de poeta e músico noite após noite, o lanchinho da vez. Tenho uma pousada, na serra, lembra do que queria? Ainda quer?
- Você pirou de vez? Eu ficando careca, cego de um olho, meio banguela, a máquina travando? Não sei fazer mais nada, só servir balcão para galera adoidada. Já passei da garantia, moça, do prazo de validade... Logo viro comida de minhoca... Nem sei mais se dou conta...
- Cala a boca! E não vem com essa de morrer, não. Vaso ruim não quebra.Do resto, se ainda tem dedo e língua, serve! Palhaço! Você sabe qual o amor que fica... E tem mais: tenho um cavalo e uma charretinha. Dá para andar devagarinho, pensando nas coisas da vida... Como você queria...

Silêncio. Pesado, denso, olhos claros nos olhos negro, chorosos, a memória dos corpos insistindo, frenética. Ele baixou a cabeça, a sacudi-la lentamente de um lado para outro. Depois, tirou a faixa da testa, a borboleta e sorriu largo com todas as rugas, cicatrizes de inconfessáveis batalhas, os braços abertos, a lágrima rolando na barba e caindo no tampo de fórmica.

- ‘tá bem. Cata a coruja! Então, eu vou... E veio o beijo. Demorado, sofrido, as mãos viajando, os corpos espremidos na ânsia incontida, e um silêncio absurdo, cada um das tribos extasiado, até irromperem num grito crescente de guerra.

(img: coruja02 - márcia sanchez luz/2011)


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