27 de fev. de 2009

O RETRATO


Caio Martins

Para Lucienne

Tremia. Joelhos instáveis e o estômago apertado, pálida e a respiração curta, travada na cadeira incômoda, esperava a recepcionista dizer seu nome. Aquele era um ambiente desconhecido. Atrás da porta antiga num cenário modernoso, estaria o monstro: o fotógrafo. Caminhos tortuosos, a mãe conseguira que um ícone da câmara lhe dedicasse duas horas de seu caríssimo tempo. Queria, porque queria, a filha nas capas de revistas, passarelas, “clips” de cosméticos e moda, enfim, no universo etéreo e intangível da fama sob os holofotes e rios de dinheiro. Ela? Tremia.

Quando a atendente chamou, o coração deu um pinote. Olhou, tensa como mola, para a saída. A mão da mãe catou-a pelo pulso, um tranco e já estava cruzando a velha porta. O sujeito, no centro, sequer a olhou. A mulher no comando de uma mesa de controle de luz sorriu-lhe e o rapaz sentado num tamborete mediu-a de alto a baixo. O do centro olhou-a, então, diretamente nos olhos. Mandou a mãe sentar-se num canto e ordenou-lhe que ficasse na frente de um telão cinza. Disse-lhe que fizesse exatamente o que ele mandasse, e meteu-se atrás de máquina do tempo do onça, de madeira e fole. Na frente, tétrica lente Carl Zeiss a espiava, ameaçadora.

E começaram as ordens. Eram curtas, impessoais, num tom duro e cortante, seco e firme. A palavra que mais ouvia era: - Respire! – e, por algum motivo mágico, de repente o medo passou, a raiva passou, passou a sensação de animal encurralado. Estranho calor, inoportuno por lascivo, a invadiu. Tudo perdeu perspectiva, menos aquele olho de vidro nos seus olhos. Luzes acendiam e apagavam, brilhavam e esmaeciam, o fotógrafo pegou máquina moderna, começou a clicar à sua volta. Percebeu que o objetivo era o rosto. A voz, agora, estava dentro de sua cabeça:

- Levante o queixo! Respire! Porra! Levanta essa merda, puta que pariu! Respira, cacete!

Quando mandaram-na descer da plataforma, o fez automaticamente. Saiu do transe quando a mãe veio abraçá-la. O fotógrafo conversava em voz baixa com os auxiliares. Então veio, o rosto cansado, cara de poucos amigos e disse: - Mande alguém pegar as provas em três dias. A mãe entrou na frente, ansiosa e insistente, querendo saber se tudo estava bem, quê ele achara e cometeu o erro crasso de inquerir por que a fotografara do jeito que estava, já que trouxera biquíni, lingerie, modelitos...

- Minha senhora: eu não fotografo roupa. Eu fotografo expressão. Sentimento. Em três dias a senhora passa, pega as provas para levar às agências. É só isso. Estão dispensadas. Mandem entrar a próxima!

E afastou-se, não dando margem a quaisquer argumentações. Gentilmente, a recepcionista as encaminhou para a saída. Na rua, a mãe não parava de falar, indignada e quase histérica. Que aquele sujeitinho era um safado incompetente, grosso e metido, mais um rosário de palavrões. Ela, quieta, nada ouvia. Entendera o processo e sentira a ação da câmara, conhecera o mistério das luzes e, principalmente, a magia da voz do mestre. Um sentimento de felicidade, miudinho, tezãozinha incômoda, dava-lhe prazer. Olhava as pessoas nos olhos, queria entender-lhe as expressões, conhecer-lhe os sentimentos. Todo o resto era besteira.

No estúdio, o Mestre, hora e meia depois, estudava o provão P&B das fotos da geringonça secular, recém reveladas . Sorriu. Chamou o povo. Mostrou-lhes e fixou-os de um a um, esperando comentários. Demoraram, satisfeitos. Então, jogou uma no retro-projetor e, sorrindo pela primeira vez, disse:

- Quase teve um orgasmo! Ela fala com a câmara! Tem caráter! Alma! Se enjaular a mãe e escapar da máquina de moer carne, vai detonar o coração do mundo...

No telão, a tomada em semi-perfil dominava o espaço. Não era um bichinho assustado, de joelhos tremelicantes. Era o retrato de uma mulher sem máscaras ou retoques, em branco e preto.

(img: cvm - lucienne 2002)

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Na busca da excelência aprende-se mais com os inimigos que com os amigos. Estes festejam todas nossas besteiras e involuímos. Aqueles, criticam até nossos melhores acertos e nos superamos.

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